Descrição de chapéu Memorabilia

Tudo o que fiz esteve contaminado pelos modernistas, diz Adriana Calcanhotto

Cantora lembra sustos que teve com Oswald de Andrade e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos

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Adriana Calcanhotto

Quando tinha lá meus 16, 17 anos, minha mãe, que não era frequentadora de livrarias e sem saber exatamente que livros me sugerir, inscreveu-se no Círculo do Livro. Mensalmente, eu podia fazer minhas encomendas a partir de uma revista-catálogo e os livros eram entregues em casa. Esquema ótimo.

Muitas vezes escolhi títulos complicados só porque eram complicados, acreditando que assim “aprenderia” qualquer coisa. Eram livros de filosofia e, como eu não sabia o que era filosofia, não cheguei a “aprender” coisa nenhuma, embora tenha passado os olhos por alguns autores importantes. Entre essas escolhas tão aleatórias, chegou o “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade” em volume de poesias reunidas. 

O humor, a iconoclastia, a falta de cerimônia, a falta de pontuação, o descaramento, os samples literários arrancados da carta de Pero Vaz de Caminha ou dos anúncios de nascimentos das famílias burguesas nos jornais de São Paulo, tudo me fascinou e por causa do livro fui descobrir tudo que estivesse a meu alcance sobre o modernismo brasileiro dos anos 1920.

O livro abria com um texto de Haroldo de Campos, então conheci o poeta concreto ao abrir as poesias reunidas de Oswald. Daí em diante tudo o que fiz ou pensei esteve contaminado por esse grupo. Seus desdobramentos na minha trajetória à cata de mais informação sobre as ideias modernistas promoveram encontros importantes com estudiosos do assunto, de quem fiquei amiga. 

Se não me falha a memória sempre falha, foi nesse mesmo ano da minha descoberta que Augusto de Campos lançou o seu livro sobre Patrícia Galvão, a Pagu. Devorei-o, com ou sem trocadilho, e muito mais que isso, descobri Augusto de Campos

Aí, sim, a descoberta de um trabalho vivo, de uma voz de poeta em construção, que de lá pra cá me provocou tantos espantos e de tal ordem que posso dizer, com ou sem tranquilidade, que sou o que sou por causa exatamente desses sustos. No mesmo ano, foi lançado o filme de Joaquim Pedro de Andrade, “O Homem do Pau-Brasil”, completando assim minha dose de antropofagia, razoável para uma iniciante.

Uns cinco anos depois da chegada em casa do “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade”, como segui pesquisando e me maravilhando com o assunto e com as obras, com os quadros, com os poemas e seus ecos manifestados na arte até aqueles dias de, agora, 1987, estreei um show em Porto Alegre chamado “A Mulher do Pau Brasil”.

No repertório, a leitura de trechos da carta de Pero de Vaz de Caminha, “Geleia Geral” de Gilberto Gil e Torquato Neto, enfim. Aquela era uma Mulher do Pau Brasil depois de Carmen Miranda, pós-bossa nova, que era a música que meu pai ouvia, pós-Jovem Guarda, e isso era dito no figurino à la Wanderléa, pós-tropicalismo e com uma aura pós-punk, que era a do circuito de vanguarda da cidade na época e que Luciano Alabarse, diretor do espetáculo, instaurou para que ninguém confundisse o lance com homenagem ou “resgate”.

Em um piscar de olhos passaram-se 30 anos e eu, em pleno Jardim da Sereia, em Coimbra, Portugal, fiz um show ao ar livre e de graça para me despedir do semestre acadêmico e da residência artística passados na cidade.

Como um trabalho de conclusão de curso, eu falaria sobre o que passei o semestre inteiro pensando, e o show chamou-se “A Mulher do Pau Brasil”. Como uma “segunda dentição” do primeiro espetáculo, com algumas canções do roteiro original e gritos de “ele não!” nas plateias da turnê brasileira.

Hoje, encaixotando os livros que levarei mais uma vez para Coimbra, onde passarei mais um semestre —ritual esse que vem se repetindo há quatro anos— dei de cara com o volume do Círculo do Livro, que achei que não tivesse mais. Gratíssima surpresa, melhor que encontrar dinheiro no bolso do casaco.

Folheei de novo os lindos desenhos da Tarsila, os poemas, a falta de pontuação, de vergonha na cara, tudo lá, no mesmo lugar. Tudo novo outra vez, que livro, que livro.


Adriana Calcanhotto é cantora, compositora, ilustradora, antologista e embaixadora da Universidade de Coimbra, onde dá aulas.

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