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Sabor latino que achei nos EUA virou parte da minha música, diz João Donato

Músico fala sobre encontros e obras que o moldaram na juventude

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João Donato

Nos anos 1950, me chamaram para fazer uma gravação com meu conjunto, ainda na época do 78 rotações por minuto. O convite era para gravar a música “Invitation”. 

Quem pediu foi Ramalho Neto, um dos diretores artísticos da Companhia Brasileira de Discos, e eu disse: “Como é que é a música, tem a partitura?” “Não tem.” “Tem o disco de alguém?” “Não tem. Mas tem num filme passando aí no cinema, você vai assistir e aprende”.

Assisti ao filme várias vezes, porque era a única referência que tínhamos. Eu não sei mais o conteúdo, porque fui motivado pela música. Era sobre um convite, mas não lembro mais nada da história. Não tinha gravador nem celular, tinha que ver o filme e memorizar.

Só que a música não é muito fácil, é sofisticada. Tive que ouvir muitas vezes para aprender. Precisei até inventar um pedaço, que eu não sabia como concluir uma frase musical lá que era muito intrincada.

Era de um compositor polonês, Bronislaw Kaper, autor de várias trilhas de filmes. No tempo da guerra, o Kaper saiu da Polônia bombardeada, chegou a Paris e as bombas caíam com mais eficiência ainda, então foi para Hollywood, que era mais seguro, claro. Acho a música dele maravilhosa, marcou muito a minha vida. Até hoje, quando eu me distraio, me vejo tocando “Invitation”.

Depois a CBD também me pediu para gravar “You Belong to Me” em 78 rpm, mas me deram a gravação para ouvir. Facilitou. Esse era um período em que eu tocava acordeão para a Rádio Guanabara.

Trabalhavam também lá Elizeth Cardoso, Chico Anysio, Fernanda Montenegro, Orlando Silva... Outro que estava na mesma estação, Altamiro Carrilho, foi uma vez chamado para gravar com seu conjunto um disco, “Brejeiro”, e me convidou para ir tomar parte na gravação. Foi essa a primeira vez que eu entrei num estúdio.

Isso foi uns bons anos antes de eu ir para os Estados Unidos, aos 25 anos, em 1959. Fui buscar novos horizontes, aprender mais sobre o jazz, essas coisas. Chegando lá, descobri que já estava meio morto. Nunca foi uma coisa popular, o jazz, nem muito comercial. Tinha poucos lugares para tocar. Descobri que os músicos de jazz estavam nas orquestras latinas, que tinham trabalho por causa dos bailes de fim de semana. 

Logo que cheguei aos EUA, fui encontrar com o pessoal da Carmen Miranda, que me ofereceu um trabalho de duas semanas. Quando terminou, eu fiquei sem emprego, não me levaram adiante porque acharam que eu estava muito americanizado. Estava vindo do Brasil: minhas referências eram João Gilberto, Tom Jobim, Johnny Alf. Aquela coisa do “um cantinho, um violão”. O pessoal da Carmen ainda estava com o “Tico Tico no Fubá” na cabeça.

Não me entrosei, e me deixaram a ver navios em Los Angeles, sem ter o que fazer nem onde morar. Uma situação bem embaraçosa. A dona da minha pensão me disse que eu não poderia ficar mais lá, porque não tinha pago a semana. Eu achei que ia ficar no meio da rua. E estava frio.

Eu me virei com sorte. Entrei num motel de Hollywood, estava explicando ao gerente que eu era um músico brasileiro e ele comentou que lá havia um compositor cubano. Logo ele se aproximou, Armando Peraza, e eu o reconheci pelo nome nos discos. Ele disse “qué pasa?’, eu contei e ele pagou para mim —nunca tinha visto o homem mais gordo na vida. Ficamos amigos para sempre. 

Por intermédio dele, fiz um teste para pianista numa orquestra latina —eles chamam de “audition”. O cara lá falou que eu não sabia tocar latino. Eu estava recém-chegado, não sabia que negócio era esse de tocar mambo, chá-chá-chá.

Então fiquei para ver o conjunto à noite. Fui saudando todo mundo como se fosse velho amigo, e me ofereceram para dar uma canja. Gostaram do meu estilo e me adotaram. “Você é nosso pianista, pronto.” De não cubano, só tinha eu e um contrabaixista mexicano.

Não gostava muito era do gênero. Por que ter que trocar meus lindos acordes e melodias por esse ritmo que se repete tanto? Toda vez que eu saía daquilo, eles diziam “não!”. Essa disciplina eu fui aprendendo com o tempo, e esse sabor latino hoje faz parte da minha música. Eu me encontrei nessa mistura.

Quando estava para sair dos Estados Unidos e voltar ao Brasil, em 1972, fui fazer uma visita à casa onde morou Carmen Miranda, em Hollywood, com uma equipe de televisão. Eles iam fazer uma reportagem sobre a casa de Carmen. De lá de dentro, aparece um senhor e se apresenta: “Bronislaw Kaper”.

Era ele que estava morando lá agora. Eu quase levei um susto. O pessoal que estava comigo não sabia do que se tratava, “você está assustado por quê?” “É que esse cara é o bicho.” 


João Donato é compositor, cantor e instrumentista.

Depoimento a Walter Porto.

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