[RESUMO] Num momento em que a vida intelectual no Brasil está sob ataque, afirma autor, parece estranho que Caetano, figura central da cultura brasileira, alimente uma disputa entre concretistas e uspianos que fazia sentido quatro décadas atrás, mas atualmente enfraquece um campo já combalido pela tragédia em curso no país.
Não se pode acusar Caetano de envelhecer mal. Aos 78 anos, segue inquieto e capaz de provocar: bastou uma afirmação na tevê sobre a revisão de suas convicções liberais e logo as redes e jornais se agitaram para entender o que se passava. Por isso chama atenção uma frase na entrevista à Ilustríssima no último domingo. Ali Caetano diz: “Esses uspianos estão sempre mil furos abaixo dos concretos”. É uma afirmação que parece saída diretamente de 1985.
A agitação começou depois de uma entrevista de Caetano a Pedro Bial, em 4 de setembro, a propósito do lançamento do documentário "Narciso em Férias", de Renato Terra e Ricardo Calil. Caetano se diz insatisfeito com o argumento consagrado, em que sempre acreditou, de que os totalitarismos de direita e esquerda se equivalem. O responsável por essa mudança é o teórico italiano Domenico Losurdo (1941-2018), que lhe foi apresentado pelo jovem historiador e influenciador digital pernambucano Jones Manoel.
Um dos muitos a reagir foi o colunista Pablo Ortellado, que escreveu sobre o episódio em seu espaço na Folha. Caetano teria deixado de lado as complexidades do tropicalismo e se rendido à “irresponsabilidade narcísica, incensando o stalinismo”. Na entrevista do último domingo, o editor da Ilustríssima, Marcos Augusto Gonçalves, perguntou a Caetano sobre a afirmação de Ortellado. Foi em resposta a essa pergunta que o compositor lembrou a polêmica entre uspianos e concretos.
A menção parece fora de contexto. Nada na entrevista leva água para esse moinho. Mas Caetano vê na opinião de Ortellado ecos do pensamento de Roberto Schwarz e situa os dois sob a mesma pecha de “uspianos”. Como contraponto, lembra que sempre foi mais afeito à leitura do Tropicalismo feita por Augusto de Campos. Augusto e os concretos, por serem poetas, “com a mão na massa”, falariam da posição de quem conhece as agruras da criação artística, em contraposição aos insossos teóricos da Universidade de São Paulo.
Em 1985, a boutade faria sentido. Naquele ano, Roberto Schwarz e Augusto de Campos trocaram farpas nas páginas deste jornal. Schwarz via na visão de literatura dos concretos uma “bobagem provinciana”. Augusto rebatia o que considerava o “sociologismo de ascendência chatoboy”. A polêmica teve novo capítulo em 1989, quando Haroldo de Campos (1929-2003) publicou ensaio sobre o “sequestro do barroco” na "Formação da Literatura Brasileira", a obra fundamental de Antonio Candido (1918-2017). À época, a clivagem entre concretos e uspianos podia ter lastro efetivo. Em essência, é apenas uma diferença de sotaque sobre o papel da história na forma literária, mas naquele ambiente isso mobilizava paixões, opunha as faculdades de letras da USP e da PUC-SP e ajudava a entender o campo intelectual paulista.
Hoje, isso virou um saudoso anacronismo. Nos últimos anos, o principal esforço de conferir consistência teórica à obra musical de Caetano vem do “uspiano” José Miguel Wisnik, a quem ''Verdade Tropical" é dedicado. Wisnik, aliás, sempre se equilibrou com habilidade na disputa entre concretos e uspianos, reconhecendo as contribuições importantes de cada lado e escapando ao fogo cruzado.
Em 2012, Roberto Schwarz publicou um esforço notável de interpretação, o ensaio “Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”. São 52 páginas de leitura cerrada do livro de Caetano, o que por si já constitui elogio. No prefácio à nova edição, de 2017, Caetano rebate de forma enfática os pontos que de discorda. Mas discordar das conclusões não impede de reconhecer o empenho intelectual por trás do texto, de um refinamento raro no pensamento brasileiro. Não faz sentido compará-lo à coluna de Ortellado. Duvido que o próprio colunista ambicionasse tanto ao escrever sua provocação.
Ortellado é um pesquisador atento aos movimentos de grupos políticos nas redes sociais. Foi dos primeiros a valer-se de métodos objetivos para entender as bolhas de direita e esquerda no Facebook e no Twitter. Em sua coluna na Folha, empenha-se em não ser identificado com nenhuma das bolhas. Seu modo de entender Caetano vem mais desse traço frequente do colunismo atual – a busca por uma imagem de independência – do que de sua formação uspiana.
Caetano tem relação com os concretos desde o início da carreira. Há em sua obra diálogo intenso com o concretismo, tanto no pensamento teórico como na produção poética e musical. Ele sempre teve lado na disputa e isso não é novidade. O problema é seguir vendo nessa clivagem uma referência útil para entender a cultura brasileira.
Uspianos e concretos (e basicamente toda a vida intelectual no Brasil) estão sob ataque. A pesquisa profissional, o cosmopolitismo, o culto à erudição e ao pensamento complexo que ambos representam nunca valeram tão pouco. O governo Bolsonaro cultua o mesmo clima de opinião que prendeu Caetano no fim dos anos 1960. Para que alimentar essa disputa? Obviamente Caetano não seria inábil a ponto de relativizar o autoritarismo de esquerda no auge do petismo. Naquele momento, Mangabeira Unger e Eduardo Giannetti estavam no foco de suas predileções. Seu atual aceno à esquerda combativa tem peso político e isso é relevante no momento de abissal retrocesso por que passa o país. Mesmo avesso aos alinhamentos automáticos, Caetano não precisa rejeitar o ethos “uspiano”. Ele nunca será reduzido a esse rótulo.
Em torno de Caetano se conjugam fatores raros. Seu nome se confunde com a canção popular brasileira, tornada nas últimas décadas a principal expressão da cultura do país. Ele é a encarnação de uma trajetória decisiva para a compreensão da indústria musical no Brasil, da apropriação de um conjunto de linguagens para o léxico da MPB, da atualização do discurso modernista, da resistência cultural ao regime militar, da junção entre registros eruditos e populares que responde pelo traço distintivo com que a cultura brasileira se apresenta ao mundo.
De longe do universo acadêmico, ele consegue um feito incomum: chamar grandes nomes da universidade para a conversa. Os críticos literários da linha de frente não andam discutindo os romances mais recentes, mas a obra de Caetano. Os exemplos de José Miguel Wisnik, em chave generosa, e de Roberto Schwarz, em chave combativa, não deixam dúvida a respeito.
O que a atividade literária representava como segmento mais prestigioso da cultura se dissolveu em diversos pedaços desde os anos 1960: música popular, cinema, estudos universitários, indústria cultural. A obra e a trajetória de Caetano parecem recolher esses cacos e alçá-lo a um ponto singular, onde conquistou legitimidade para falar como “intérprete do Brasil”.
Um traço comum à maioria dos movimentos de vanguarda é que eles forjam a própria interpretação. As versões sobre seu significado costumam sair de integrantes do grupo, o que torna difícil fugir a um círculo vicioso. Incansável teorizador da própria trajetória, Caetano é fundador da Tropicália e ao mesmo tempo seu porta-voz mais ilustre. Mas não é preciso seguir os passos apontados por ele – ou seja, pautar-se pelo "Verdade Tropical" ou por seus textos e entrevistas – para entender o alcance de sua influência.
Uma história da contracultura que envolva Hélio Oiticica, Torquato Neto e Jorge Mautner, por exemplo, vai necessariamente incluir Caetano. A história da cultura assimilada, que envolve a Rede Globo, Roberto Carlos, Chacrinha, também esbarra nele. A poesia concreta, fonte das maiores ambições de erudição da inteligência brasileira, aponta nele um herdeiro legítimo. Artistas de todos os quadrantes, de Nuno Ramos a Maria Gadú, lhe prestam reverência. Caetano está por toda parte.
O episódio recente em torno do stalinismo é só mais uma demonstração disso. O ponto central não são as teses de Domenico Losurdo, que ganharam ressonância inédita nas redes sociais a partir de sua entrevista com Pedro Bial. O que chama a atenção é a relação de Caetano com Jones Manoel, o jovem militante que viu sua popularidade explodir depois da entrevista. A parceria lembra uma prática que o compositor adota há tempos: aproxima-se de jovens que se destacam, unge o novato com seu prestígio e colhe em troca o ímpeto de renovação, num antídoto eficiente contra o envelhecimento.
Nem mesmo a recaída à esquerda é um dado novo. Basta lembrar as recentes visitas de Guilherme Boulos ao apartamento do casal Lavigne-Veloso no Rio de Janeiro, os shows em parceria com o MTST e a ligação com a Mídia Ninja. A novidade é colocar em questão a equivalência entre os totalitarismos de esquerda e de direita pela via de uma voz como a de Jones Manoel. Aos trinta e dois anos, Jones é parte de um núcleo vibrante da discussão de esquerda nas redes sociais – algo que não se vê em Brasília ou na oposição formal ao governo Bolsonaro. Losurdo e o stalinismo não são novidade. Jones é. Caetano, como de hábito, viu antes de muita gente.
Justamente por isso é estranho que siga alimentando uma disputa que não vertebra mais o ambiente intelectual e que enfraquece um campo já combalido pela tragédia em curso no Brasil. Caetano é inquieto o suficiente para rever suas convicções liberais a essa altura da vida. Talvez não seja tarde para rever isso também.
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