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Raquel Marques

Chegamos ao ponto em que é possível cancelar um mandato nas redes sociais

Recebi milhares de votos como codeputada e, acusada de transfobia, fui expulsa sem poder me defender

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Raquel Marques

Codeputada pela Bancada Ativista do PSOL na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), é sanitarista, mestre em saúde pública, doutora em medicina preventiva, feminista, mãe e bissexual

[RESUMO] Desligada de mandato coletivo da Assembleia Legislativa de São Paulo, autora diz que decisão sobre sua expulsão, tomada a portas fechadas e sem direito à defesa, foi motivada por postagens cujo significado foi distorcido para acusá-la de transfobia.

A cultura do cancelamento chegou à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, e a cancelada neste paredão sou eu. Mas, ao contrário do que acontece no Big Brother, eu recebi milhares de votos que confiavam na minha permanência neste cargo por um período de quatro anos e, se tiver que deixar esta Casa, não é por vontade própria.

Recebi na tarde de segunda (1º), com espanto e indignação, uma nota da Mandata Ativista —mandato eleito por meio do movimento Bancada Ativista, que integro como codeputada estadual democraticamente eleita desde 2019— informando que fui sumariamente desligada de minhas atividades do nosso mandato, sem nenhum procedimento ou direito à defesa.

A Mandata Ativista foi idealizada para que seus integrantes pudessem formular, construir e lutar em conjunto, dentro da política institucional, pelas diferentes pautas que já defendiam nas ruas e nas redes. Juntava nove codeputadas ativistas de diferentes partidos, eleitas coletivamente para ocupar um único gabinete de deputado estadual em São Paulo, em exercício desde março de 2019.

Porém, nós sabemos o quão difícil é fazer política de maneira coletiva. Boa parte do tempo gastamos tentando fazer com que os diferentes pontos de vista se entendam e se respeitem.

Essa decisão de expulsão do mandato foi tomada a portas fechadas, a toque de caixa e sem a minha presença. Isso só se agrava se pensarmos que, à atividade parlamentar, são reservadas várias proteções legais e que a perda do direito para se exercer um cargo para o qual se foi democraticamente eleito é recurso extremado, demorado e não raro não acontecem com políticos que exercem, por assim dizer, o velho jogo político.

Portanto, o que faz com que, no centro de um projeto político que se pretende inovador e democrático, se observe um conflito que resulta em uma solução violenta e autoritária que aponta para tantas perdas para a democracia?

Tal fato deve ser tratado como o resultado de um processo de erosão dessa democracia com a qual um dia sonhamos dentro desse mandato coletivo, em um projeto de poder que tem sido colocado em prática desde nossa posse pelo Movimento Esquerda Socialista, uma das correntes de dentro do PSOL à qual a titular da Mandata Ativista, Mônica Seixas, participa.

A justificativa chocante para tal atitude descabida foram duas postagens em que eu defendia a importância dos direitos das crianças e adolescentes que tiveram seu significado distorcido para acusar a mim, uma mulher LGBTQ+, de transfobia.

Nas postagens, teço críticas ao fato de que acredito que o campo da esquerda tem olhado com pouca atenção às nossas crianças e adolescentes, que estão sendo negligenciadas de sua educação pela forma como tem se discutido a iminente reabertura das escolas nesse período de pandemia.

A pandemia castiga a todos, mas, em especial, mulheres, crianças, jovens e estudantes. Uma pesquisa do Instituto Datafolha, sob encomenda do C6 Bank, mostrou que 8,4% dos estudantes entre 6 a 34 anos abandonaram os estudos devido à pandemia. Esse valor representa 4 milhões de alunos, mais do que a população uruguaia.

Para os motivos do abandono, 20% respondem ter dificuldade para acessar o ensino remoto, 22% por estarem sem aulas e 24% por questões financeiras. Repensar a manutenção das escolas para o retorno seguro das aulas é urgente para combater o crescimento da evasão escolar, que já era alta mesmo antes da pandemia.

De acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 8,5 milhões de mulheres tinham deixado a força de trabalho no terceiro trimestre de 2020 (último dado disponível), na comparação com o mesmo período do ano anterior. Assim, mais da metade da população feminina com 14 anos ou mais ficou de fora do mercado de trabalho.

A taxa de participação na força de trabalho ficou em 45,8%, uma queda de 14% em relação a 2019. Se a sobrecarga das mulheres no cuidado com filhos, enfermos e atividades domésticas já era um problema, com a ausência das crianças e adolescentes na comunidade escolar, as preocupações das mulheres aumentam.

Meu posicionamento em defesa das crianças e dos adolescentes, da reabertura segura das escolas e da necessidade de diálogo para chegarmos a um consenso sobre esse tema, de natureza complexa por conta da pandemia, não surpreende aqueles que acompanham minha trajetória de militância e minha atividade parlamentar.

A distorção que tentam atribuir à minha fala vai contra a minha história, a minha militância e de encontro a tudo que defendo. Sou uma mulher bissexual, ativista feminista há 20 anos, fundadora e presidente da Artemis, a primeira ONG brasileira dedicada a combater a violência obstétrica. Portanto, a luta pelos direitos humanos sempre foi o que defendi.

Como mulher, como mãe e como ativista, tive que recriar minha rota pessoal e política inúmeras vezes durante minha trajetória. Terei que recriá-la novamente? A quem será preciso recorrer para preservar meus direitos, minha história?

Recebi incontáveis mensagens de apoio, incrédulas e indignadas. No entanto, as mais difíceis de serem lidas são as que me perguntam a respeito dos milhares de votos que foram confiados ao meu projeto junto a essa proposta. As pessoas se sentem, justamente, enganadas.

À pergunta "o que vem agora?" eu ainda não sei responder. As mães me indagam: quem vai tratar da preservação dos nossos direitos na Mandata? Quem vai dar continuidade às pautas que fizeram com que confiássemos a esse projeto nossos votos?

Uma coisa é certa. Minha trajetória começou há 20 anos e não termina aqui. A luta das mães por reconhecimento do seu papel político e econômico é uma das mais antigas, mas não avançamos o suficiente. Vou seguir defendendo os direitos das mulheres e das crianças e continuar buscando ocupar o espaço institucional na política que nos é sistematicamente negado.

Colaborou Renata Rodrigues, jornalista

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