[RESUMO] A presença de médicos com síndrome de burnout vem aumentando com o agravamento da pandemia e o colapso de hospitais, avaliam autores. Esta situação crítica demanda que a conduta de profissionais da saúde seja embasada em parâmetros claros e coerentes, o que permitiria o compartilhamento de dilemas éticos com a sociedade.
Médicos da linha de frente do combate à Covid-19 chegaram ao pior momento da pandemia justamente em seu pior momento pessoal. Cansados física e mentalmente, divididos entre o cuidado da família e o cuidado dos pacientes, além de expostos diariamente ao risco da infecção, os médicos precisariam de férias. O colapso nos hospitais públicos e privados, no entanto, não permite tempo para o descanso.
Com isso, tem sido cada vez mais frequente nos consultórios psiquiátricos e psicológicos a presença de médicos com a síndrome de burnout, quadro clínico de esgotamento profissional caracterizado por exaustão emocional, sentimentos de incompetência e fracasso e distanciamento afetivo do trabalho.
Diante desses casos, os profissionais da saúde mental vivem também o seu dilema: seria ético recomendar ao médico que se afaste do trabalho por uma ou duas semanas pelo fato de não estar nas melhores condições de trabalho, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde?
Com curvas ascendentes de contágio, os pacientes lotam os pronto-socorros, mas não há recursos para todos. Há falta de insumos básicos, como oxigênio ou medicação utilizada para intubação.
Nessa situação, médicos vêm encarando dilemas éticos de difícil solução: tirar alguém do respirador para ceder a vaga a outro paciente em piores condições ou auxiliar na morte digna desse paciente com menor sofrimento?
Embora não existam respostas simples para essas questões, é preciso que a sociedade civil compartilhe esses dilemas morais e as entidades representativas da classe tenham respaldo jurídico para suas decisões quanto aos critérios utilizados.
Pensando nisso, diversas associações médicas ao redor do mundo, inclusive no Brasil, uniram-se para elaborar documentos minuciosos que contém os pressupostos éticos e legais para embasar as condutas técnicas dos médicos em caso de esgotamento de recursos. Sem isso, médicos e pacientes estarão expostos ao risco de decisões precipitadas ou enviesadas e ficarão ainda mais sobrecarregados emocionalmente, o que impacta diretamente em sua capacidade de decisão.
Em um artigo publicado no jornal The Telegraph, o médico paliativista inglês Mark Taubert debate um aspecto específico da pandemia que impacta ainda mais a saúde mental de todos: a impossibilidade de visitas aos pacientes. A política restrita de visitação aos pacientes de Covid-19 irá produzir uma geração de enlutados que não puderam despedir-se de seus familiares, amigos e amores em seus momentos finais. Frequentemente, quem está próximo desses pacientes na hora de sua morte são os profissionais de saúde, já sobrecarregados.
Sabe-se que a eutanásia não é permitida no Brasil, mas tampouco é permitida a mistanásia. A mistanásia pode ser descrita como uma morte infeliz, miserável e evitável. A falta de insumos básicos, relacionada com deficiências estruturais no sistema de saúde, aumenta o risco de que isso aconteça com boa parte dos pacientes que morrem.
Não bastasse a aflição causada por esses dilemas morais, quando o pesadelo passar, os médicos terão que se deparar ainda com o risco de famílias questionarem na Justiça os procedimentos realizados no tratamento e morte de seus familiares: quais foram os critérios para a decisão? Por que um paciente foi escolhido em detrimento do seu familiar? Houve interferências políticas e financeiras na decisão?
Neste momento, a sociedade brasileira está exaltando os médicos, retratados como heróis nacionais, mas os ventos mudam e, certamente, erros ocorrerão aqui e ali. Alimentadas pela polarização política, tais condutas poderão ser alvo ainda de manobras por parte de políticos oportunistas, e não sabemos se esse apoio incondicional será irrestrito no futuro. Por isso, é necessário que se estabeleçam critérios claros e coerentes para as decisões, que devem ser pautadas em valores compartilhados pela sociedade.
Frente ao colapso do sistema de saúde e da saúde dos médicos, é preciso coragem e lucidez de toda a sociedade para apoiar as difíceis decisões que serão tomadas daqui para a frente pelos médicos dentro dos hospitais.
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