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Marcos Lisboa, Ricardo Paes de Barros e José Alexandre Scheinkman

Com técnicas inovadoras, Langoni mudou a forma de analisar a desigualdade no Brasil

Economista, que morreu em junho, foi pioneiro na utilização de metodologia que renovou o estudo sobre a relação entre educação e renda

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Marcos Lisboa

Economista, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula), é colunista da Folha

Ricardo Paes de Barros

É economista e professor titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna, do Insper

José Alexandre Scheinkman

Professor da Cátedra Charles and Lynn Zhang de Economia da Universidade Columbia

[resumo] Autores relembram a fundamental contribuição do economista Carlos Geraldo Langoni, morto em junho, aos 76 anos, para a compreensão da desigualdade no Brasil. Langoni foi pioneiro na utilização de uma metodologia que inovou o estudo sobre a relação entre educação e renda, mas a rejeição injustificada a seu trabalho atrasou por décadas o debate aprofundado de nossos problemas.

No dia 13 de junho, Carlos Geraldo Langoni morreu, aos 76 anos. O economista foi professor e diretor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas, presidente do Banco Central do Brasil e desempenhou funções no setor privado. Fez também uma imensa contribuição para o entendimento da economia brasileira em dois trabalhos acadêmicos seminais no começo da década de 1970.

Em sua tese de doutorado na Universidade de Chicago, de 1970, Langoni calculou a taxa de retorno das diversas possibilidades de investimento com impressionante cuidado técnico. Essa taxa variava entre 32% na educação fundamental e 12% no ensino superior. No caso de setores econômicos, o retorno oscilava entre 22% na mineração e 4% na indústria têxtil.

Menino empina pipa na favela do Mandela, no Rio de Janeiro - Carl de Souza/AFP

Essas estimativas sugeriam que a ditadura estava optando pelo caminho errado. A política pública priorizava o investimento em setores produtivos e, em menor escala, no ensino superior, não na universalização do ensino básico de qualidade.

Em 1973, Langoni desenvolveu técnicas inovadoras para analisar a distribuição de renda no Brasil. Seu livro “Distribuição da Renda e Desenvolvimento Econômico do Brasil” surpreende pela sofisticação dos métodos empregados e pelo cuidado ao analisar as bases de microdados.

Na mesma época, instrumentos assemelhados foram desenvolvidos na academia americana por Alan Blinder e Ronald Oaxaca. Nas décadas seguintes, essas técnicas foram crescentemente aperfeiçoadas para tratar de temas relevantes, como a discriminação no mercado de trabalho e a desigualdade de renda.

Langoni, entretanto, foi muito além das regressões com microdados, simulando os impactos das variáveis observadas na renda dos indivíduos. Ele identificou que o principal fator associado à variação na distribuição de renda do trabalho era a desigualdade na educação, agravado pelo aumento do retorno por ano de escolaridade.

 O economista Carlos Geraldo Langoni no Seminário Internacional de Comércio Exterior em Brasília, em 1988
O economista Carlos Geraldo Langoni no Seminário Internacional de Comércio Exterior em Brasília, em 1988 - Felipe Carpinelli/Folhapress

Diversos fatores poderiam explicar essa associação. Langoni propôs que esse aumento de desigualdade poderia ter resultado do rápido crescimento na década de 1960, que elevou a demanda por trabalhadores qualificados, o que o país, pelo baixo acesso à educação, não dispunha. Tal quadro incrementou a renda dos mais escolarizados.

Essa, porém, não é a única história compatível com os seus resultados. Políticas de repressão à liberdade sindical ou de menor reajuste do salário mínimo poderiam ter reduzido, relativamente, a renda destinada aos mais pobres e menos escolarizados, aumentando a desigualdade.

Estimar os determinantes do aumento do retorno à educação passava por aperfeiçoar os métodos de análise dos microdados introduzidos por Langoni, à semelhança do que ocorreu na pesquisa acadêmica em outros países depois das contribuições de Blinder e Oaxaca. Muitos avanços técnicos ocorreram desde então, permitindo identificar a relevância da educação para a produtividade e para a renda dos indivíduos, assim como o impacto do salário mínimo.

No caso do Brasil, contudo, essa agenda de pesquisa acabou não tendo desdobramentos durante quase duas décadas. A contribuição inovadora de Langoni foi severamente rejeitada no país à época, pois parecia eximir a ditadura da principal responsabilidade pelo aumento da desigualdade. As técnicas utilizadas foram ignoradas. Não se discutiu cuidadosamente a robustez das estimativas realizadas. Rejeitou-se o trabalho porque a proposta de que o aumento da desigualdade resultasse do alto crescimento era politicamente inconveniente.

Os críticos não fizeram o contraditório com a mesma profundidade técnica de Langoni. Aparentemente, não entendiam o que havia sido feito e/ou não tinham instrumental para avaliar com o cuidado necessário as suas implicações.

Identificar as causas da relação entre aumento da escolaridade e aumento da desigualdade requereria aprofundar as pesquisas com microdados. A ironia é que os fatos encontrados por Langoni eram compatíveis com muitas conjecturas, inclusive as defendidas por seus críticos.

Em vez de aprofundar o debate técnico, no entanto, optou-se por rejeitar integralmente o trabalho de Langoni, denunciando-o como a serviço da ditadura. Bloqueou-se a agenda de pesquisa, interrompendo-se o aprendizado com o que havia de mais moderno à época no estudo sobre desigualdade de renda, ao contrário do que ocorreu na academia americana nas décadas seguintes.

Cuidado técnico e preocupação com as implicações mensuráveis da política pública não estavam na ordem do dia. A academia deixara de lado a contribuição da ciência para o debate público e para o aperfeiçoamento das políticas de desenvolvimento e de inclusão social.

O Censo de 1970 revelou que a desigualdade de renda no Brasil aumentara na década anterior. A renda apropriada pelos 10% mais ricos, por exemplo, passara de 39% em 1960 para 48% em 1970.

Albert Fishlow propôs em 1972 uma interpretação das causas do aumento da desigualdade. Por meio de medidas sintéticas de decomposição dos fatores agregados associados à distribuição de renda, ele apontou indícios de que a diferença no grau de escolaridade entre os indivíduos podia explicar parte da desigualdade de renda.

Além disso, especulou, a política do governo poderia ter contribuído para esse quadro. O menor reajuste do salário mínimo, a repressão ao movimento sindical e a condução da política macroeconômica, sobretudo a alta inflação, teriam favorecido os ganhos de capital em detrimento dos salários. A variação dos ganhos de capital, porém, não explicaria o aumento observado nas diferenças de renda do trabalho.

As medidas de estímulo setorial, continua Fishlow, teriam privilegiado os grupos de maior renda. Mesmo no caso da educação, a política pública favoreceria desproporcionalmente o ensino público superior, no qual predominavam os grupos de renda mais elevada, em detrimento do ciclo básico, aumentando a desigualdade no acesso à educação.

Muitos estudos em economia, demografia e sociologia têm por objetivo obter o impacto de mudanças em um fator determinante (diferenciais salariais por nível educacional, por exemplo) sobre o progresso ou retrocesso em um resultado de particular interesse (desigualdade de renda).

O procedimento adotado invariavelmente consiste em contrastar o resultado factual (observado ou observável) com o que teria acontecido caso o fator determinante tivesse seguido uma outra trajetória (conhecida como contrafactual).

Estudos dessa natureza têm uma longa tradição na análise da transição demográfica e em sociologia e economia nos estudos sobre discriminação. Mudanças no fator determinante afetam o resultado para cada um dos indivíduos envolvidos, o que requer uma análise detalhada dos microdados. Em alguns casos específicos, contudo, há uma alternativa mais simples.

Eventualmente, existe uma relação estável entre o fator determinante (diferenciais salariais por nível educacional) e o resultado de interesse (a desigualdade de renda). Nessas situações, pode-se utilizar essa relação para estimar o impacto de uma mudança do fator determinante. Assim funcionavam essas metodologias até a contribuição revolucionária de Langoni.

Uma das grandes limitações dessa abordagem sempre foi a dependência da existência dessa relação estável entre o resultado agregado de interesse e o fator determinante. Conforme Langoni deixa muito claro, no caso do estudo dos determinantes da desigualdade de renda, essa situação só ocorre em condições muito particulares de interesse prático bem limitado.

Frente a essa dificuldade, Langoni pioneiramente reconheceu que nada impede de retornar às informações de cada indivíduo (como salário ou outras características comuns) e estimar como a mudança no fator determinante (diferenciais salariais por nível educacional) altera seu resultado. As estimativas podem ser, então, agregadas para se obter a estimativa contrafactual desejada (como a variação na distribuição de renda).

Langoni utilizou as bases com microdados disponíveis —como os Censos de 1960 e 1970, as informações do Imposto de Renda e a Lei dos 2/3, que determina um mínimo de 2/3 de trabalhadores brasileiros em empresas— para simular a distribuição de renda que ocorreria em 1970 caso as diferenças de salário por nível educacional fossem as que prevaleciam em 1960, mantidas constantes as demais características dos trabalhadores (idade, sexo, região onde trabalham etc.). Em particular, mostrou que a contribuição das diferenças na educação para a variação de renda entre os indivíduos aumentou em 33% entre 1960 e 1970.

Todos os estudos que se seguiram ao de Langoni (seja na análise dos determinantes da desigualdade, seja de outros resultados de interesse social, econômico ou demográfico) seguem exatamente o mesmo princípio. Na ausência de uma relação agregada entre o resultado de interesse (desigualdade de renda) e o fator determinante (diferenciais salariais por nível educacional), eles recorrem a simulações, em que os contrafactuais são construídos para cada indivíduo no universo de análise.

Pesquisas dessa natureza têm se tornado cada vez mais complexas, expandindo a partir de uma única relação (característica do trabalho original de Langoni) para sistemas interligados de relações, em que a análise incorpora fatores não observados nos dados disponíveis (uma omissão no livro de Langoni, que foi tratada duas décadas depois por outros pesquisadores).

Esses trabalhos, no entanto, baseiam-se no mesmo dispositivo proposto originalmente por Langoni: obtenção do resultado contrafactual agregado a partir do seu cálculo para cada indivíduo ou grupos semelhantes de pessoas.

Uma advertência merece atenção. A engenhosidade de Langoni consiste na forma como a simulação é conduzida, que supera muitos dos problemas com as metodologias tradicionais nos anos 1970. Isso não significa, contudo, uma constatação de causalidade.

A técnica introduzida por Langoni permite apenas melhor estimar a correlação entre as variáveis observadas. Por isso mesmo, como já comentamos, algumas histórias são compatíveis com os resultados do seu trabalho. Identificar os fatores causais é tema bem mais complexo, que tem sido investigado pela pesquisa em economia nas décadas seguintes. A causalidade é determinada pela adequação das equações e dos experimentos que dão base à simulação, e não pela forma como é conduzida, ponto em que reside a engenhosa e inovadora contribuição de Langoni.

A inovação metodológica de Langoni e seu cuidado com as estimativas foram ignorados no debate que se seguiu à publicação do seu livro. A agenda de pesquisa com microdados em outros países, assemelhada à iniciada por Langoni, permitiu, por exemplo, identificar a associação entre políticas de salário mínimo e movimento sindical com a melhoria da renda dos trabalhadores menos qualificados.

No Brasil, contudo, a agenda da pesquisa com microdados ficou interrompida por duas décadas. Os críticos de Langoni ignoraram os avanços metodológicos do livro de 1973.

Houve quem apontasse que os resultados de Langoni podiam decorrer de uma causalidade reversa: os filhos das famílias ricas teriam maior renda e também maior acesso à educação, explicando a correlação observada nos dados. Nesse caso, educar os filhos dos mais pobres não aumentaria o seu salário. Meio século depois, as evidências disponíveis indicam que esses críticos estavam equivocados.

A pesquisa acadêmica internacional mostra hoje uma relevante relação entre educação, produtividade e renda. O maior aprendizado dos filhos das famílias pobres aumenta a sua produtividade e a sua renda. O debate interditado dificultou compreender com profundidade as causas dos nossos problemas e avançar na política pública.

Ignorar o trabalho de Langoni contribuiu para adiar o investimento em educação básica no Brasil por 30 anos. Em 1965, o Brasil tinha maior renda per capita que Coreia do Sul, Singapura e Taiwan, mas a população desses países já era mais escolarizada. Hoje, a renda per capita deles supera entre 3 e 7 vezes a nossa.

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