Poemas de Ho Chi Minh escritos na prisão são traduzidos pela primeira vez do chinês; leia

Para pesquisadores, versos do líder da independência do Vietnã combinam tradição e revolução

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Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

Cecília Antakly de Mello

Professora livre-docente da USP e especialista em montagem audiovisual e cinemas chineses, é autora de "The Cinema of Jia Zhangke: Realism and Memory in Chinese Film" (Bloomsbury, 2019), entre outras publicações

[RESUMO] Preso na China em 1942, Ho Chi Minh, líder da independência do Vietnã, escreveu mais de cem poemas em seu período como prisioneiro. Pesquisadores apresentam dez deles, traduzidos diretamente do chinês pela primeira vez, nos quais o autor, na forma concisa do quarteto, deixou amplo legado poético de insubordinação contra as mazelas de toda espécie.

Em 29 de agosto de 1942, aos 52 anos, Ho Chi Minh (1890-1969) foi preso no sul da China, na província de Guangxi. Naquela época, ele já era líder do Viet Minh, coalizão de inspiração comunista que lutava contra os franceses colonizadores e os invasores japoneses.

Ele viajara para a China a pé, disfarçado de geomante, com a intenção de chegar até Chongqing, cidade para a qual o governo nacionalista de Chiang Kai-shek havia transferido a capital do país durante a Segunda Guerra Mundial. Não há certeza sobre o real motivo da viagem, mas a hipótese mais aceita é a de que Ho Chi Minh almejava angariar apoio dos chineses comunistas e dos americanos para a sua causa no Vietnã.

Na imagem, é possível ver Ho Chi Mihn apontando para posições em um mapa aberto sobre a mesa enquanto conversa com quatro pessoas que o observam dentro de um acampamento militar
Ho Chi Mihn (ao centro), reunido com generais e líderes militares, em 1954, antes da vitória sobre as forças francesas que ocupavam a fortaleza de Dien Bien Phu, na Indochina. - Reuters

Do mesmo modo, não há certeza sobre a razão de sua detenção: ou fora suspeito de espionagem para os japoneses ou de ser um comunista infiltrado em território nacionalista.

Nos 12 meses seguintes, Ho Chi Minh foi transferido de prisão em prisão —estima-se que tenha passado por 18 cárceres, até que o governo chinês aferiu sua real identidade e achou por bem soltá-lo, evitando maiores conflitos com o Vietnã, que já tinha em Ho um líder carismático.

Revolucionário de ideologia marxista-leninista, liderou o movimento de independência de seu país, instaurando a República Democrática do Vietnã em 1945 (presidida por ele até 1969) e derrotando a França em 1954, marcando o fim da Primeira Guerra da Indochina.

Foi uma figura-chave na Segunda Guerra da Indochina, a Guerra do Vietnã contra os Estados Unidos (1955-1975). Com a reunificação do Vietnã do Norte e o Vietnã do Sul em 1976, a antiga capital deste, Saigon, foi rebatizada de Ho Chi Minh.

Durante seu período na prisão, Ho Chi Minh escreveu mais de cem poemas, posteriormente agrupados sob o título “Diários da Prisão”. Os poemas foram escritos diretamente no idioma chinês e não em vietnamita, em parte por imposição dos guardas prisionais que deveriam ler e eventualmente censurar o material escrito.

O fato é que o idioma chinês —logográfico, monossilábico, tonal e livre de flexões gramaticais— estava em consonância, ou talvez tenha evocado e prescrito, o estilo poético clássico esposado por Ho em seus versos.

Os dez poemas aqui selecionados, traduzidos pela primeira vez do chinês para o português, foram escritos no estilo “jueju” (quartetos), a metade da forma mais básica e matricial “lüshi” (octetos). O “jueju”, literalmente “frase cortada”, é considerado o formato mais difícil dentro do chamado estilo novo (“jintishi”) que marcou a virada na poesia chinesa durante a dinastia Tang (618-907), a era de ouro da literatura clássica do país.

O estilo novo diferencia-se do estilo antigo (“gushi”) pelo excesso de regras métricas e pelo rígido esquema tonal e de rimas que rege seus versos. Para os “jueju”, a regra determina que cada verso de um quarteto possa ter cinco ou sete morfemas, ou seja, caracteres que correspondem a palavras.

Os quartetos são considerados um formato poético mais desafiador do que os octetos, já que devem conter em menos versos a mesma densidade de conteúdo e sentimento —ou seja, o poeta deve enfrentar necessariamente o desafio da concisão.

Os poemas de Ho Chi Minh não aderem totalmente a certos padrões de rimas e tons consagrados nos “jueju” da dinastia Tang, mas seguem a forma prescrita pelo “jintishi” em sua métrica, na objetivação da linguagem, no eu lírico não explícito, mas por vezes subentendido, e na elisão das chamadas “palavras vazias” (em geral classificadores, conexões e pronomes).

Para além de sua filiação formal, contudo, a pergunta que se impõe é por que Ho Chi Minh escolheu o formato rígido dos “jueju” para sua exploração poética e revolucionária no cárcere?

Não espanta a descoberta de que seu pai havia sido um literato confucionista no Vietnã e que Ho havia aprendido o chinês clássico ainda criança. A isso, soma-se o fato de que o grande líder comunista chinês, seu contemporâneo Mao Tsé-tung, vinha empregando desde a Longa Marcha, nos anos 1930, o estilo poético clássico para falar do presente.

Já nos anos 1940, a partir de sua base em Yan’an, Mao discursou a favor do uso das formas artísticas e literárias do passado desde que atualizadas em seu conteúdo, lição devidamente incorporada por Ho, mesmo que indiretamente, em suas aventuras poéticas.

Diante desses poemas que combinam o presente e o passado, a tradição e a revolução, coube-nos enfrentar o desafio de Roman Jakobson, segundo o qual a poesia é, por definição, intraduzível, restando apenas a transposição criativa. Aqui cabe uma referência aos pressupostos da “transcriação” e da “tradução-arte”, tais como praticados por Augusto e Haroldo de Campos e por Décio Pignatari.

No Brasil, foram publicadas duas edições dos poemas de Ho Chi Minh, mas traduzidos do francês (“Poemas do Cárcere”, tradução de Coema Simões e Moniz Bandeira, ed. Laemmert, 1968) e do inglês (“Diário de Prisão”, tradução de Harrisson Salisbury, ed. Difel, 1971). As traduções aqui apresentadas são as primeiras feitas diretamente do chinês.

No exercício, tentamos responder a algumas questões. Como transpor eventuais rimas, aliterações, assonâncias e repetições? Como manter a simplicidade e a concisão e, ao mesmo tempo, construir a linguagem poética? Deveríamos apelar para o eu lírico naqueles poemas nos quais ele permanecia subentendido?

Buscar algum tipo de formalismo nos pareceu de pronto essencial —sabíamos que o verso livre e os coloquialismos não condiriam com o projeto. A linguagem deveria ser poética, formalista, resolver-se em soluções métricas, mas não em excesso, já que os poemas de Ho incorporam na eventual ausência de rimas e de combinações tonais um viés mais libertário.

Esta pequena amostragem procura tornar os poemas de Ho Chi Minh legíveis em português, como autônoma experiência poética. Pelo testemunho humano de suas memórias do cárcere (escritas na dor, no frio e no calor do momento), projetam-se, como a demonstração de um legado, a indignação da revolta, a insubordinação contra as mazelas de toda espécie e a manifestação por justiça em um mundo cada vez mais fora da ordem e miserável não só eticamente.

1. diário da prisão
corpo na alta cela,
alma além chancela,
se almejas grandeza,
vá espírito, ascenda.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

2. entrando na prisão de jingxi
por velhos prisioneiros, os novos são acolhidos
cristalinas nuvens perseguem a clara chuva,
e passam as nuvens enquanto a chuva flutua,
e assim deixam os homens livres seres cativos.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

3. noite
findo o jantar, a oeste o sol mergulha,
há canções folclóricas em toda parte,
melancolia deserta da clausura,
torna-se de súbito uma Belas Artes.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

4. lua cheia
não há vinho nem flores no catre,
noite sem açoite, o que nos resta?
uns olham a lua pela janela,
e pela fresta a lua espia o vate.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

5. crepúsculo
o pássaro cansado pousa no arvoredo,
a nuvem cruza o firmamento, desolada,
a jovem camponesa moe seu milheto,
e na fornalha vermelha brilha uma brasa.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

6. Tian Dong
merenda: uma tigela de mingau,
a barriga está sempre a suspirar,
a minha paga deixa o arroz à míngua,
caro como as pérolas de um colar.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

7. recém-chegado na prisão de Tianbao
de dia, cinquenta e três quilômetros e pronto,
chapéu e roupa molhados, e sapatos rotos,
de noite, sem paz nem lugar e nem mais para dormir,
à beira da latrina, sob estrelas, o sol por vir.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

8. mais comoção
(noticiário Yongbao, 12 de novembro)
antes morrer do que sofrer de dor,
a justa bandeira voa ao redor,
ai de mim, que prisioneiro resto,
tão longe dos canteiros do duelo.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

9. cena noturna
rosas desabrocham, murcham cardos,
desabrocham e murcham, sem alarde,
a fragrância das flores além grades,
e incensa o clamor dos injustiçados.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio

10. antologia de mil poetas
a natureza um verso antigo elabora,
lua, montanha, vento, neve, vapor, água,
os tempos modernos pertencem à forja,
e seus poetas à frente de vanguarda.

ilustração ilustríssima
Márcio Sampaio
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