Descrição de chapéu
Independência, 200

'Dicionário da Independência' é a obra mais ambiciosa destes 200 anos

Para organizadores do livro, com mais de mil páginas, 'Independência pode ser considerada história em construção'

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Oscar Pilagallo

O bicentenário da Independência, marcado por vários lançamentos editoriais relevantes, tem numa obra de vocação enciclopédica sua iniciativa mais ambiciosa.

Não tanto pelas mais de mil páginas de texto compacto, mas sobretudo pelo amplo leque de temas correlatos e pelo rigor acadêmico dos verbetes, o "Dicionário da Independência do Brasil" é um livro de referência incontornável para quem se interessa pelos primeiros passos da nação.

O ator Caco Ciocler interpreta dom Pedro 1º na encenação "Vozes da Independência", que aconteceu no último dia 7 de setembro, em São Paulo - Zanone Fraissat - 7.set.2022/Folhapress

Organizado por Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta, o tomo apresenta criticamente a produção historiográfica sobre o período. Foca autores que, principalmente nas últimas quatro décadas, contribuíram para fixar novas interpretações sobre a Independência, começando por tratá-la no plural, pois está estabelecido que a separação política entre a colônia e a corte não se limitou aos acontecimentos de 7 de setembro de 1822, como sugere, ainda que com menos euforia do que no século passado, o calendário cívico escolar.

O "Dicionário" parte da constatação de que a Independência "é uma fonte permanente [...] de apropriações e de usos políticos que continuam a reinventá-la, dando-lhe novos e renovados atributos ou reforçando alguns de seus mais arraigados e tradicionais estereótipos". Nesse sentido, anotam os organizadores, "a Independência pode ser considerada uma história em construção".

Os principais tópicos —como a "abertura dos portos", a Revolução do Porto e as bernardas— são guias de leitura que, com poucas e pertinentes indicações bibliográficas, conduzem o leitor pelas mais consistentes interpretações disponíveis.

A "abertura dos portos", promulgada pelo regente d. João 6º logo após desembarcar na América portuguesa, em janeiro de 1808, é tratada por muitos autores como um ponto de inflexão da história do Brasil.

"Compreendida como marco de ‘supressão’ do sistema colonial e o prenúncio do processo que culminou na Independência, a determinação é comumente distinguida enquanto um dos principais episódios que compõem a cronologia consagrada do processo de formação da nacionalidade e do Estado brasileiros", escreve Renato de Mattos, da Universidade Federal Fluminense.

O autor do verbete destaca o olhar de Caio Prado Júnior, para quem "a decisão teria sido adotada por pressão da Inglaterra em vistas ao estabelecimento de comércio livre com a América portuguesa". Segundo essa visão, a liberação do comércio "expressava a ‘sujeição’ do reino português aos ditames da diplomacia inglesa em face da ‘ameaça’ napoleônica".

Mas registra também que d. João não cedeu tudo àqueles que escoltaram a família real durante a travessia do Atlântico. O governante refutou a proposta de criação de um porto exclusivo para mercadorias inglesas por considerá-la prejudicial às relações comerciais com outras nações aliadas de Portugal.

Gravura em preto e branco de dom joão 6º. Com vestes solenes e uma faixa sobre o peito, ele é registrado de perfil, com uma expressão austera, segurando um chapéu nas mãos. Na seção inferior da imagem, lê-se:  dom João 6º, rei do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves.
Gravura de dom João 6º, rei do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, do acervo da Biblioteca Nacional; autor da gravura, feita em 1830, é Giuseppe Gianni - Reprodução

Quanto à Revolução do Porto, de 1820, associada de forma decisiva à ruptura do Brasil com a corte, é referida também da perspectiva portuguesa, como um movimento liberal vinculado à "aprovação da primeira Constituição escrita, à qual alguns vieram a atribuir uma matriz democrática e até pararrepublicana", no resumo de Nuno Gonçalo Monteiro, da Universidade de Lisboa.

O autor descreve o clima político na cidade portuguesa, em que prevalecia a tensão derivada da tutela britânica, da ausência do rei, das mesadas exigidas pela Corte no Rio de Janeiro e, no testemunho de um contemporâneo, da "humilhação" de Portugal, por ter invertido seu papel e se tornado "colônia do Brasil".

A leitura cruzada dos verbetes revela uma ligação remota, de ordem etimológica, entre a Revolução do Porto e as bernardas que agitaram a década de 20 do século retrasado no Brasil. A versão mais verossímil da origem do termo é a qualificação da revolução, por seus críticos, como uma bernarda, ou seja, uma tolice, referência pejorativa aos frades bernardos, tidos por ignorantes.

Bernardas "eram pronunciamentos militares —muitas vezes protagonizados por tropas portuguesas—feitos em praça pública, que costumavam se irradiar pelas ruas da cidade, contando com significativa participação de civis", explica Marcello Basile, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Para o autor, "as bernardas abriram espaço para a atuação política de amplos e variados espectros sociais, muitos dos quais não dispunham, até então, de qualquer canal efetivo de participação".

Com baixo de grau de violência e relativamente efêmeras, as bernardas se tornaram modelos de movimentos de protesto nas décadas seguintes. A mais notória foi a Bernarda de Francisco Inácio, que antepôs dois grupos políticos que disputavam o poder em São Paulo. Foi para apaziguar os ânimos que d. Pedro 1º deixou a capital e se dirigiu à cidade, ocasião em que proclamou a Independência.

A historiadora e professora da USP Cecilia Helena de Salles Oliveira, uma das organizadoras do "Dicionário da Independência do Brasil” - Divulgação

O "Dicionário" também se debruça sobre aspectos menos estudados da Independência, como o papel de indígenas e ciganos, contribuindo com teses que desafiam narrativas mais tradicionais.

Fernanda Sposito alerta que as guerras contra e por indígenas "devem ser vistas para além de uma instrumentalização ocasional que as elites de várias partes do Brasil teriam feito durante as lutas pela Independência".

Para a historiadora da Universidade Federal do Paraná, não deve ser visto como reação conservadora por parte dos indígenas o fato de muitos deles terem defendido a monarquia contra revolucionários. "Convém saber que muitos dos cabeças das revoluções nas diversas partes eram potentados locais, que poderiam de fato aproveitar a transgressão das ordens instituídas para avançar sobre terras indígenas e obrigá-los ao trabalho", escreve a autora.

"Os indígenas, mais do que serem apenas recrutados pelas autoridades de um lado ou outro dos conflitos, faziam leituras muito particulares das disputas em curso, sempre buscando defender seus próprios interesses."

Quanto aos ciganos, nunca conseguiram furar a bolha de preconceito em que a sociedade os isolava. Às vezes tinha-se a impressão de que seriam aceitos, pois animavam importantes festividades da corte com seus números de música, dança e malabarismo.

Além disso, d. Pedro 1º era frequentador de seus espaços de convívio. Essas relações, no entanto, "não diminuíam as desconfianças dos portugueses e brasileiros em relação aos ciganos", como nota Lourival Andrade Junior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

A Independência foi por eles recebida com alguma esperança, "visto que não estariam mais reféns das leis portuguesas anticiganas". Mas isso não aconteceu. Após o Sete de Setembro, continuaram indesejáveis. "Sua língua estranha, sua vida nômade e o desapego ao privado, seus misticismos e sua forma não convencional de ganhar dinheiro iam na contramão do que pretendiam os novos/velhos atores que desejavam implantar no Brasil independente aspectos que pudessem ser entendidos pelo mundo como uma nação nova e moderna", afirma Andrade.

O resultado foi a implantação de vários Códigos de Postura, que atingiram diretamente os ciganos. Proibiu-se desde a realização de festas com música alta e danças consideradas imorais até o uso da língua romani ou caló em território nacional.

O "Dicionário da Independência do Brasil" preenche uma lacuna editorial sobre o tema. A iniciativa mais próxima, de duas décadas atrás, é o "Dicionário do Brasil Imperial" (editora Objetiva), dirigido por Ronaldo Vainfas, mais modesto em escopo e com maior apelo popular.

O lançamento deste ano, ao contrário, embora possa ser consultado com proveito por interessados em geral, é voltado preferencialmente a estudiosos. Os verbetes proporcionam a contextualização necessária, mas não fazem concessões de forma, nem mesmo para abrasileirar aqueles escritos por autores portugueses. O que importa é o conteúdo.

Convocados em 2019 pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP, os organizadores reuniram em torno do projeto cerca de 300 colaboradores oriundos de dezenas de universidades. Com tantas visões particulares, a obra surge, admitidamente, como "um enorme caleidoscópio de referências, informações e interpretações". As diretrizes gerais, no entanto, garantem a coerência em meio à diversidade.

Se a Independência é uma história em construção, os historiadores não podem dispensar os tijolos dessa pequena enciclopédia.

Dicionário da Independência do Brasil - História, Memória e Historiografia

  • Preço R$ 280
  • Editora BBM e Edusp (1.040 páginas)
  • Organizadores Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta
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