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Erick Brêtas

Réplica: Repórter da Folha busca engajamento movido a ódio contra Juliette do BBB

Para diretor da Globo, textos mostram que até espaços de prestígio, como crítica cultural, estão sujeitos ao fenômeno

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Erick Brêtas

Diretor de Produtos e Serviços Digitais da Globo e produtor-executivo de "Você Nunca Esteve Sozinha"

[RESUMO] Autor sustenta que crítica negativa da Folha da série documental "Você Nunca Esteve Sozinha", sobre Juliette Freire, reflete a busca, nas redes sociais, por engajamento movido a ódio contra a vencedora do BBB 21. Para ele, artigo que associa as estratégias de comunicação de Juliette às da extrema direita defende tese exótica e não tem substância.

Na semana passada, a Folha publicou uma crítica assinada pelo repórter Jairo Malta sobre a série documental "Você Nunca Esteve Sozinha - O Doc de Juliette", do Globoplay, que conta a história de Juliette Freire, a campeã do BBB 21.

Avaliações negativas não abalam quem vive de criar, produzir e distribuir obras de entretenimento, mas este caso merece atenção tanto pelo que está dito no texto de Malta quanto por um artigo anterior do mesmo autor, que pode passar despercebido para quem lê a crítica sobre o documentário de modo isolado.

Jairo Malta não gostou do que viu em "Você Nunca Esteve Sozinha" e deu à obra a classificação de ruim. Escreveu que a série “não mostra nada que possa justificar sua produção” e que “tudo poderia ser resolvido numa curta reportagem do Fantástico”.

Ele reclama que, ao abordar a morte de Julienne, irmã de Juliette, o documentário “frustra o espectador” pela “falta de riqueza nos detalhes dos seus últimos dias de vida”. Também se ressente da falta de profundidade sobre os "cactos", apelido da torcida da paraibana. “Pouco se fala das maratonas de trabalho em frente ao celular e de como eles [cactos] foram importantes protagonistas durante o programa.”

Pode-se pensar que o crítico tenha confundido o primeiro de seis episódios da série com a obra em sua totalidade. Passagens que Malta critica como lapsos do documentário são, na verdade, abordadas ao longo do arco narrativo da história. A morte de Julienne, irmã de Juliette, foi aprofundada logo no segundo episódio. A atuação apaixonada dos "cactos" nas redes sociais será contada no terceiro e no quarto episódios.

A opção dos criadores de "Você Nunca Esteve Sozinha" foi contar a história em um eixo cronológico que trata da vida de Juliette antes, durante e depois da sua passagem pelo BBB. Assim, avaliar a série pelo primeiro de seus seis episódios é como avaliar um filme de duas horas de duração pelos primeiros 20 minutos.

Jairo Malta, no entanto, sabe disso, porque logo no segundo parágrafo de sua crítica diz corretamente que a obra “é dividida em seis partes, com publicação semanal feita pelo Globoplay”. É de se perguntar, portanto, se o autor não se equivocou ao antecipar um juízo negativo sem esperar os cinco episódios restantes ou, então, se não escolheu queimar a largada de forma consciente em busca de engajamento em cima da participante mais popular do BBB 21 —ainda que um engajamento movido a "hate".

Essa segunda hipótese é autorizada por um outro artigo publicado pelo mesmo Jairo Malta em companhia de Isabelle Strobel, nesta mesma Folha, em 4 de maio, sob o título “Por que Juliette do BBB parece a tropa de choque bolsonarista”.

No texto, os autores, segundo resumo feito pela própria Folha, “apontam as estratégias similares da participante do reality e da extrema direita para confrontar seus oponentes”, “como o autoritarismo disfarçado de autenticidade, a propagação deliberada de mentiras, o negacionismo em relação a preconceitos e pandemia e a constante dissimulação”.

Faz tempo que, como disciplina acadêmica, a análise do discurso saiu de moda. Porém, mesmo quem ainda acredita nela e conhece um pouco de metodologia de pesquisa não enxergaria no texto da dupla Malta e Strobel um mínimo de substância, apesar das tentativas de aplicação de um certo verniz científico, como citações da crítica literária canadense Linda Hutcheon e de Friedrich Hegel (qualquer texto soa erudito com uma citação de um filósofo alemão).

Para defender a exótica tese de que a campeã do BBB usava estratégias de comunicação típicas da extrema direita, o artigo pinça exatas 13 falas de Juliette Freire ao longo de cem dias de confinamento, sob vigilância de câmeras em regime 24 horas.

Uma passagem usada pelos autores chama a atenção.

Durante uma festa, Juliette pergunta ao colega de confinamento Arcrebiano se ele achava que ela falava alto demais. Ao ouvir do brother a resposta sincera de que sim, ela falava muito alto, Juliette promete se emendar: “Vou parar, acho falta de educação quem fala alto”.

Em seguida, em uma conversa com outro brother, Caio Afiune, Juliette dá outra versão para o que acabara de ouvir: “Seu amigo falou que eu falo alto e sou mal-educada”.

Para Jairo Malta e Isabelle Strobel, isso é um sinal claro de que a paraibana é adepta do uso de fake news. “Tendo muito a ensinar a Steve Bannon, cada desinformação da casa é acompanhada de uma rede de intensa de capilaridade na internet que dissemina, distorce e cria fatos que beneficiam a narrativa da liderança de direita”, sentenciou a dupla.

Steve Bannon é o ex-assessor de Donald Trump que se tornou referência intelectual da extrema direita americana. Como produtor de documentários, realizou filmes com conteúdo anti-islâmico. Como publisher do site Breitbart, ganhou a admiração de grupos radicais que mais tarde protagonizariam a invasão do Capitólio. O filho 02 do presidente, Eduardo Bolsonaro, já o chamou de “ícone no combate ao marxismo cultural”.

O paralelo entre Juliette e Bannon seria reforçado por correntes de fake news espalhadas por grupos de WhatsApp contra participantes do BBB 21 como Karol Conká e Projota, embora o artigo da Folha falhe em apontar qualquer evidência de que tais materiais tenham sido disseminados pela torcida de Juliette.

Os autores afirmam, então, que não seriam “ingênuos” de esquecer que essas “técnicas da extrema direita” só são eficientes “por serem apoiadas pelas elites econômicas”. E encontram mais uma fala de Juliette na casa do BBB para corroborar tal tese: “Eu frequento lugares da alta sociedade em São Paulo, Rio, Brasília”.

Em momentos assim, é inevitável lembrar a Lei de Godwin, um teorema satírico criado pelo advogado americano Mike Godwin segundo o qual quanto mais uma discussão na internet se prolonga, maiores as chances de uma das partes acusar a outra de recorrer a práticas nazifascistas.

Na pensata publicada pela Folha, a lei foi atualizada para contextos e personagens contemporâneos, cabendo a Steve Bannon o papel de elo entre Juliette e a extrema direita.

Nessa hora, talvez fosse o caso de chamar todos à razão —o crítico, os editores, os leitores: uma história mal contada em uma festa do BBB não torna ninguém um contumaz disseminador de fake news. Tagarelice não é sinônimo de opressão fascista. E o mais óbvio de tudo: o Big Brother é um programa de entretenimento.

Tirar uma dúzia de frases do contexto para forçar a identificação entre uma participante de reality show e um guru de supremacistas brancos é um exercício que fica na fronteira entre o mau gosto e a má fé.

Porém, é evidente que os críticos da Folha sabem disso —e escrevem sobre os participantes do programa pela mesma razão que o Globoplay decidiu realizar o documentário sobre Juliette: pelo enorme engajamento que temas relacionados com o Big Brother provocam.

Mas as semelhanças param por aí. Onde o crítico da Folha não viu “nada incrivelmente interessante sobre sua infância e adolescência”, os produtores do documentário e o público enxergaram uma trajetória que representa milhões de brasileiros pobres, incluindo o tocante relato da perda do primeiro irmão por desnutrição e as origens de dona Fátima, mãe de Juliette, na miséria absoluta.

Essas origens talvez tenham contribuído para outra passagem marcante do primeiro episódio do documentário: a decisão de dona Fátima adotar os quatro filhos do primeiro casamento de seu marido e criá-los como filhos de sangue.

Para além do engajamento, o que faz a trajetória de Juliette merecer um documentário não é a excepcionalidade que caracteriza um astro do futebol ou um cantor famoso, mas a identificação que ela provoca em tantas mulheres de origem pobre, especialmente as nordestinas.

Uma história que ainda tem muito por se escrever, mas que fez ninguém menos que Gilberto Gil ir às lágrimas na live de Santo Antônio transmitida pelo Globoplay.

Desculpem se me falta um filósofo alemão para dar a este texto fumos de erudição, mas quem me vem à cabeça no momento é outro mestre da música popular brasileira, Antonio Carlos Jobim: no Brasil, dizia Jobim, o sucesso é ofensa pessoal.

Como a ofensa vira ódio e mobilização, o hate nas redes sociais dá engajamento e até lucro, como contou o produtor musical Konrad Dantas, o Kondzilla, em entrevista concedida ao documentário "A Vida Depois do Tombo", outro campeão de audiência do Globoplay, sobre os ataques contra Karol Conká nas redes sociais durante o BBB 21: “É você procurar construir uma exposição através de um fato que está gerando engajamento pra você capitalizar em cima daquela exposição ali. Então eu vi muita gente criticando [a Karol Conká] para entrar naquele ciclo, para aumentar o engajamento, para depois capitalizar com outros anunciantes”.

Como se vê, não apenas as redes sociais estão sujeitas ao fenômeno do engajamento (e do lucro) pelo hate, mas até espaços de prestígio como a crítica nos cadernos de cultura da imprensa profissional. Só não dá para achar que, a esta altura, ninguém percebe o truque.

Como em tudo o que diz respeito ao BBB, o Brasil está vendo.

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