Descrição de chapéu
Fábio Palácio

No atrito entre espetáculo e realidade, BBB distorce ao mesmo tempo que revela

Professor analisa as polêmicas do reality show pela ótica do pensamento crítico da Escola de Frankfurt

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fábio Palácio

Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

[resumo] Professor analisa debates sobre a representação no BBB de personagens vinculados a minorias ou a movimentos reivindicatórios à luz de distintas tradições do pensamento crítico, como o da Escola de Frankfurt. Descartando a visão da cultura de massa como mero lugar de “manipulação”, considera que, no contexto de atrito entre show midiático e realidade, o reality distorce ao mesmo tempo que revela.

Principal reality show e um dos programas de maior audiência da TV brasileira, o Big Brother Brasil tem dado ensejo a polêmicas acaloradas. Para uns, é vetor de esvaziamento do sentido crítico e de privatização do debate público, capturado ao longo de meses pelas picuinhas vazias e obtusas favorecidas pelo formato do jogo.

Para outros, essa seria uma visão equivocada e elitista, pois não se pode virar as costas aos produtos culturais que polarizam a atenção do povo e nos quais ele investe seu desejo e tempo livre.

Essa polêmica, recorrente na história do programa, volta à tona revigorada pela inclusão de personagens ligados a segmentos sub-representados. Em particular, a atual edição foi embalada desde o início como a que traria o maior número de participantes negros. Muitos deles se vinculam, de formas variadas, a reivindicações por reconhecimento, contra a discriminação e o preconceito. Isso logo fez com que fossem cognominados militantes.

Lucas Penteado (à esq.) e Gilberto trocam beijos na Festa Holi Festival, no BBB - Reprodução/Globoplay

O BBB, entretanto, não é o habitat mais adequado para qualquer militância, termo que, levado a sério, traduz solidariedade e união em torno de uma causa. Não é este o resultado que se espera de um ambiente de pequenas tricas.

Tanto que, a certa altura do jogo, alguns concorrentes passaram a revelar um comportamento exclusivista e intolerante, bem representado no bordão “respeita a mamacita!”, popularizado por uma participante tida como engajada. Esse tipo de atitude chocou a audiência por contradizer o igualitarismo que sempre pautou os movimentos por justiça social.

Levantou-se, assim, a questão da autenticidade: o programa retrata o que se passa na chamada sociedade civil? Ou não passa de distorção mais ou menos programada, com o propósito deliberado de desconstruir a imagem, em geral positiva, que muitos atores e movimentos reivindicatórios angariaram em esferas públicas?

A polêmica remete, em última instância, ao status ontológico da cultura de massa, bem como às complexas relações que estabelece com a cultura popular. Esse debate encontra rica fundamentação em distintas tradições do pensamento crítico, que legaram algumas das mais originais, profícuas e influentes abordagens no campo da análise cultural.

Nesse terreno, a referência obrigatória é o pensamento elaborado por intelectuais como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, núcleo duro da chamada Escola de Frankfurt.

De forma sintética, a abordagem frankfurtiana pode ser definida como a aplicação das teses de Marx sobre o fetichismo da mercadoria à análise da cultura industrial. Sabemos que o cerne do pensamento marxista se inscreve na denúncia de um modo de produção que transforma em relações quantitativas abstratas —expressas monetariamente— as formas reais do ser social.

Marx revela como essas relações surgem, sob o capitalismo, de maneira reificada, ocultando seu caráter de relações sociais sob a forma de uma relação entre mercadorias. Esse fenômeno de natureza econômica trouxe importantes consequências ao campo da produção simbólica.

Antes da penetração do capitalismo em cada poro do tecido social, a cultura tinha uma finalidade sui generis: produzir um “duplo” do mundo, naquilo que Aristóteles chamou de mimesis, a fim de possibilitar ao ser humano uma compreensão abrangente de si e do mundo em que vive.

A mercantilização generalizada esvaziou essa finalidade ao transformar a cultura em uma atividade como outra qualquer, igualmente submetida a modelos taylorizados de eficiência produtiva, com o objetivo de multiplicar valores de troca. Ao nivelar as diversas formas de atividade humana sob o signo da monetização, o sistema de mercado fez da cultura mero meio para o alcance de objetivos estranhos à lógica imanente do produto simbólico.

A cultura perdia, dessa forma, a transcendência e o potencial crítico. “Quem, diante da potência da monotonia, ainda duvida é um imbecil. [...] A única escolha é colaborar ou se marginalizar”, sentenciam Adorno e Horkheimer em seu célebre texto sobre a indústria cultural.

No modelo frankfurtiano, como se depreende, o progresso exponencial da técnica, ocorrido sob as relações capitalistas, absorveu as forças de oposição, reconciliando-as com o próprio sistema. Esse processo é definido como perversão dos valores do Iluminismo: a razão crítica teria sido incorporada pela razão técnica, meramente instrumental.

Emerge desse processo uma sociedade administrada, caracterizada por aquilo que Marcuse chamou de unidimensionalidade das consciências, a reforçar a ordem e sufocar a expressão de antagonismos.

Neste novo momento das relações capitalistas, o totalitarismo iria além das formas políticas, brotando das vísceras do sistema social. A última etapa desse processo foi descrita por Guy Debord em “A Sociedade do Espetáculo”. Ele mostra como, no capitalismo avançado, o mundo mercadológico se autonomiza do ser humano e chega a ganhar personalidade própria sob a forma do espetáculo, no qual “uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior”.

Diz ainda Debord que “o espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o autorretrato do poder no momento da sua gestão totalitária das condições de existência”.

Um programa como o BBB gira em torno de intrigas, do exótico e do bizarro —tudo com o objetivo de angariar visibilidade e potencializar ações de marketing. Levada ao limite, essa lógica provoca o exaurimento dos próprios concorrentes.

Muito da perplexidade da audiência vem da disposição exibida pelo programa de explorar ideias e comportamentos que expressam a hegemonia do individualismo e do darwinismo social tão próprios do paradigma neoliberal. O que assusta é perceber até onde as empresas e o próprio sistema podem ir em seu propósito de transformar a desgraça humana em mercadoria.

A abordagem frankfurtiana corre o risco, porém, de perder outras questões de vista. Um perigo à espreita é o de sucumbir a uma visão fatalista, em que os trabalhadores são vistos como simples vítimas da cultura reificada, com pouca ou nenhuma possibilidade que não a de degradar-se em público consumidor de produtos a lhe impor ideias e sentimentos postiços.

De fato, rejeitar a cultura capitalista in totum é compreender mal seu desenvolvimento contraditório. “Uma hegemonia jamais é total ou exclusiva”, aponta Raymond Williams em “Marxism and Literature”.
Evidentemente, é real o processo de degradação da cultura trazido por um sistema que submete à lógica mercantil todas as dimensões da vida. O que poucas vezes se percebe é que a própria cultura de massa não pode deixar de dialogar com o real.

Neste ponto insistem inúmeros autores da linhagem que conduz de Gramsci aos estudos culturais. Um deles, o norte-americano Fredric Jameson, dedicou-se a compreender as formas concretas pelas quais se viabilizam os efeitos reificantes da cultura comercial.

Em texto sugestivamente denominado “Reificação e Utopia na Cultura de Massa”, Jameson afirma que a indústria cultural se baseia em “um trabalho transformador sobre angústias e imaginações sociais e políticas, que devem então ter alguma presença efetiva no texto cultural de massa, a fim de serem subsequentemente ‘administradas’ ou recalcadas”.

Dito de outro modo, para ser eficazmente “ideológica”, a cultura de mercado precisa lidar habilmente com um imaginário sempre mais amplo que aquele veiculado nos estreitos limites da indústria cultural. A cultura de massa precisa sempre absorver algo do mundo da vida, mesmo que essa absorção tenha caráter parasitário; mesmo que seja para, no momento seguinte, neutralizar essa riqueza em formas estereotipadas.

A crítica da reificação mercantil não pode eclipsar a participação de formas populares na moderna cultura industrial. O que temos aqui é uma visão da cultura de massa não como mero lugar de “manipulação”, mas como campo de luta em torno da significação social.

O popular mantém uma existência conflitiva com a indústria cultural. Surge no interior desta não como mero público consumidor de bens imateriais; participa também dos códigos elaborados pelo emissor. Aliás, mesmo na condição de consumidor, o público não é necessariamente passivo, pois o consumo é também lugar de produção do sentido. Isso inclui negociações, alinhamentos, disputas, absorções, demarcações.

O consumo cultural envolve uma reinterpretação que se dá a partir da própria vivência do povo, de seus esquemas de percepção e ação construídos em sua posição na sociedade de classes.

Nesse quadro de referência, a cultura popular articula uma concepção de mundo que, embora brote da vida comunitária e afirme o estilo de vida das camadas subalternas, nem por isso é monolítica. A cultura do povo está longe de abrigar apenas formas progressistas: compreende também estratos fossilizados e até retrógrados.

Registre-se o sentido dialético dessa abordagem, que vê não apenas a indústria cultural, mas também a cultura popular, como intrinsecamente contraditórias. Nem aquela é sempre alienante, nem esta é sempre progressista.

É o que podemos constatar nesta edição do BBB. O que vem sendo destacado ali é a força das gramáticas do “eu” tão propaladas pelo neoliberalismo. Elas não existem apenas na tela da TV —seria fácil se fosse assim. São ideias e valores amplamente disseminados na sociedade, presentes até mesmo em espaços contra-hegemônicos.

Não há um único poro do tecido social que esteja a salvo dos valores narcísicos do consumismo e do sucesso pessoal. É possível flagrar até mesmo uma artista autora de canções contestatórias vangloriando-se de ser detentora de um apartamento de luxo ou esgrimindo seu sentimento de superioridade sobre outrem ao ordenar, em uma espécie de intransigência insolente, que “respeite a mamacita”.

Como laboratório da cultura de massa, que reproduz a vida em condições extremas, o BBB distorce ao mesmo tempo que revela. Na primeira chave, alguns dos chamados militantes surgem como caricaturas, pois refletem os dilemas, mas não as virtudes e as potencialidades da vida militante.

Isso não quer dizer, contudo, que esses dilemas não sejam reais. Resultam dos desníveis ideológicos que flagelam as classes populares, constrangidas a assumir valores postiços. A realidade, contudo, é sempre maior e acaba se impondo, mesmo em meio a um mundo de fantasia e manipulação —ou de utopia e reificação, nas palavras de Jameson. Vale a pena recorrer novamente aos seus termos:

“Toda obra de arte contemporânea — seja da alta cultura [...] ou da cultura de massa e comercial — contém como impulso subjacente, embora na forma inconsciente amiúde distorcida e recalcada, nosso imaginário mais profundo sobre a natureza da vida social, tanto no modo como a vivemos agora, como naquele que — sentimos em nosso íntimo — deveria ser. Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas mercadorias e bombardeada pelos slogans ideológicos dos grandes negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade que pode ser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa”.

O filósofo Theodor W. Adorno (homem careca, ao centro), em 1969 - H.Meisert

É assim que, da mesma forma que encontramos inúmeras Karóis e Lumenas no mundo à nossa volta, também não nos deixará de ser familiar um personagem como Lucas Penteado, o líder de ocupações de escolas, talvez o único entre os atuais participantes a merecer a alcunha de militante.

Dele vieram, nesta edição do BBB, alguns dos únicos momentos da utopia a que se refere Jameson: poderia citar aqui o primeiro beijo gay da história do programa —talvez o primeiro da TV em chave realista. Poderia citar também o gesto de pautar, em inúmeras situações, questões relacionadas às lutas por direitos coletivos.

Mas vou me referir, diversamente, ao derradeiro episódio desse participante no programa: o gesto de recusa que resultou em algo como a “quebra” do contrato do jogo, quando Lucas decidiu retirar-se do que tem sido chamado de espetáculo de desumanização. Essa atitude não foi algo exterior: fez parte do próprio espetáculo.

É como se a realidade crua irrompesse, inadvertida e sobranceira, por dentro do espetáculo arrogante —que se pretende a própria realidade—, e lhe pusesse na cara o dedo em riste: “Respeita a mamacita!”. O espetáculo midiático pode muito, mas a realidade será sempre maior.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.