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Dirce Waltrick do Amarante

Retirar de circulação livro infantil sobre Luiz Gama é fugir da discussão

É complicado julgar obra apenas por um fragmento do enredo

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). É autora, entre outros, de “As antenas do caracol: notas sobre a literatura infantojuvenil” e “Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores”.

No dia 11 de setembro, “Abecê da liberdade: a história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes com palavras”, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, com ilustrações de Edu Oliveira, publicado pela Companhia das Letrinhas, foi tema de uma reportagem do site UOL. Nela, leitores e pesquisadores afirmavam que o livro romantizava um período de “terror da história do Brasil”, o da escravidão; portanto, seu conteúdo era, entre outros adjetivos, chocante, constrangedor e problemático.

Tão logo a Cia da Letrinhas tomou conhecimento das críticas, publicou uma nota lamentando o ocorrido e informando que o livro já havia sido recolhido e não seria mais comercializado.

A notícia e os comentários, inclusive de uma anônima identificada na reportagem como uma “mulher branca”, talvez para reforçar que o desagrado era geral, se espalhou como rastilho de pólvora e, em poucas horas, a polêmica invadiu as redes sociais com opiniões que faziam coro com aquelas publicadas no site.

Ilustração do livro "Abecê da Liberdade" mostra desenho de crianças negras brincando ao lado de um grilhão que pende do teto com uma grade na porta
"Abecê da Liberdade", livro infantil que a Cia das Letras está recolhendo por ter trechos racistas - Reprodução

Praticamente uma única página de “Abecê da liberdade” ilustrava a posição dos internautas: nela, o menino Luiz Gama e outras crianças negras brincam no porão de um navio que os levava da Bahia para o Rio de Janeiro, onde seriam vendidos. Em um excerto do texto que acompanha a ilustração, lê-se: “Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar [...]. Nem parecia que íamos ser comprados por pessoas brancas e trabalhar de graça para elas até a morte. Mas podia ser nossa última chance de brincar. Então brincávamos”.
Eis o início de uma discussão que se desdobra em muitas outras e que vai além do conteúdo desse livro particularmente. Parece-me que seria preciso refletir também sobre o que entendemos por literatura infantil.

Os livros para crianças, de um modo geral, são entendidos como livros “ágeis”, “curtinhos”, “fáceis” de ler e, de preferência, “divertidos”, ou seja, devem desviar de temas polêmicos que possam causar algum desconforto no leitor, sobretudo no leitor adulto, que é quem, na maior parte das vezes, escolhe e compra o livro para as crianças.

O fato é que a literatura infantil que almejamos para as crianças costuma andar em descompasso com o mundo real. Parece ingenuidade pensar que uma criança não possa ler um conto de Edgar Allan Poe, por exemplo, porque encontrará muita violência e temas inapropriados para a sua idade, como morte, assassinato etc. As crianças estão expostas a violências na vida diária delas, nos noticiários da televisão etc. Essas são violências do mundo real que precisam ser discutidas tanto quanto ou mais que as violências ficcionais. Talvez um dos equívocos de “Abecê da liberdade” tenha sido o de tentar escapar de questões complexas e indigestas que cercam um tema tão complexo e doloroso como o do período da escravidão no Brasil.

Ou, talvez, os autores de “Abecê da liberdade” tenham sido apenas ingênuos. Nesse sentido, poderia compará-los ao personagem Bruno, do livro “O menino do pijama listrado”, de John Boyne. Bruno não entende por que o amigo judeu Shmuel, preso em um campo de concentração, não brinca: “‘Há muitos outros meninos do seu lado da cerca?’, perguntou Bruno. ‘Centenas’, disse Shmuel. Os olhos de Bruno se arregalaram. ‘Centenas?’, ele disse estupefato. ‘Não é justo. Deste lado da cerca não há ninguém com quem brincar. Nem uma única pessoa.’ ‘Nós não brincamos’, disse Shmuel. ‘Não brincam? Mas por que vocês não brincam?’ ‘De que brincaríamos?’, perguntou ele, seu rosto parecendo confuso só de pensar na ideia”.

No livro de Boyne, publicado pela Companhia das Letras (não das Letrinhas!), em tradução de Augusto Pacheco Calil, há, pelos menos nas edições on-line que consultei, um alerta: “Caso você comece a lê-lo, embarcará em uma jornada ao lado de um garoto de nove anos chamado Bruno (embora este livro não seja recomendado a garotos de nove anos)”. Parece-me que a editora referenda a ideia de que livros para crianças devam ser, de fato, menos elaborados.

capa de livro
Capa do livro 'Abecê da Liberdade', publicado pela Companhia das Letrinhas, e tirado de circulação após narrativa despertar polêmica - Reprodução

A respeito da literatura infantil, vale aqui citar Cecília Meireles, para quem “não basta juntar palavras para se realizar uma obra literária”.

Nessa discussão em torno de “Abecê da liberdade”, chamou-me a atenção ainda a quantidade de comentários sobre o conteúdo do livro que surgiram em pouquíssimo tempo na internet: ou essas pessoas já haviam lido a obra antes e só naquele momento se sentiram à vontade para tornar suas considerações públicas, ou entraram na discussão sem conhecer o objeto que lhes deu ensejo, o livro. Aliás, tenho a impressão de que ninguém se incomoda mais em conhecer a fundo conteúdo algum para entrar nos debates do momento. Bastam alguns pontos de vista para que as pessoas passem a aderir ou não a determinada ideia e a reproduzi-la; não viramos vítimas de fake news à toa.

Diante dessas discussões, decidi comprar o livro —sim, eles seguem sendo comercializados fora do site da editora—, para entender melhor a controvérsia. Até então, sabia apenas que “Abecê da liberdade” contava a vida do brasileiro Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), filho de uma negra africana livre e de um fidalgo branco. Ele foi jornalista, escritor e abolicionista e Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil.

Figura importantíssima, Luiz Gama conseguiu ser ofuscado pela polêmica em torno da cena no porão do navio. Em meio ao debate apressado na internet, chegou-se inclusive a afirmar que a cena no navio descrevia a vinda do protagonista para o Brasil, apontando um erro grosseiro no livro, pois, lembrava uma internauta, Luiz Gama era brasileiro. Ocorre que, no livro, o navio parte da Bahia em direção ao Rio de Janeiro, tal como aconteceu de fato com o abolicionista.

Quem teve a chance de ler “Abecê da liberdade” deve ter se detido também no texto de orelha do livro, que adverte para o fato de que ele faz parte da coleção “Historinhas do Brasil”, a qual “tem sabor de aventura” e foi feita “especialmente para crianças” (voltamos à discussão acima), “além disso, inúmeras ilustrações se entrelaçam ao texto tornando a leitura ainda mais divertida. E ao final de cada livro, os autores explicam direitinho o que eles inventaram e o que realmente aconteceu”. O objetivo do livro era “divertir”, embora o tema não seja absolutamente “divertido”. Nesse sentido, os autores cumpriram com o previsto.

Mas, em defesa da obra, há que se levar em conta que se trata de ficção, ou melhor, que parte da história é criação, o que permite aos autores tomar uma série de liberdades. Eles inventaram, por exemplo, uma das personagens, a Getulina, que protagoniza, com seu amigo Luiz Gama, um dos episódios mais chocantes do livro, ao contrário da passagem festiva e controversa no porão do navio.

A menina era escrava, e seu dono, por ela ter chegado tarde em casa, manda gravar a letra inicial de seu sobrenome na sua testa: “Então ele mandou que os capatazes segurassem a Getulina e esquentou um ferro que tinha a letra ‘A’ na ponta. Quando minha amiga estava dominada, ele encostou o ferro na testa dela. [...] Eu corri para ajudar a Getulina, mas era muito pequeno. Levei um tapa de um dos capatazes e caí de lado. Mesmo tonto, peguei um pau e avancei contra eles. Dessa vez levei um pontapé do outro capataz. Fui parar longe”.

Portanto, parece-me complicado julgar o livro apenas por uma passagem, um fragmento do enredo.

Outro aspecto não menos importante nessa discussão diz respeito ao fato de a editora ter tirado o livro de circulação, promovendo a censura da obra e deixando algumas perguntas no ar: todo livro criticado será tirado do mercado? Por que, em vez da censura, a editora não promoveu o debate? Por que não chamou para uma conversa historiadores, professores de literatura, os autores e o ilustrador do livro etc.?

Tão chocante quanto ter se esquivado da discussão por meio da censura foi ter alegado que a reimpressão fora feita automaticamente, sem releitura interna, colocando a culpa na primeira editora do livro (o selo Alfaguara da Editora Objetiva), nos autores e no ilustrador da obra.

Será que os editores responsáveis pelo catálogo da Cia das Letrinhas, como diz a nota, estão “dispostos e abertos a aprender com esse processo”?

Parece-me que censurar o livro põe apenas uma pá de cal na discussão.

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