Descrição de chapéu Filmes Festival de Cannes

Esnobado por Wim Wenders, Spike Lee volta a Cannes como um deus do cinema

Mundo de hoje se parece ainda mais com 'Faça a Coisa Certa', de 1989, que quer o levante da juventude negra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cartaz oficial da 74ª edição do Festival de Cannes, em homenagem ao diretor Spike Lee, criado pelo designer gráfico Harland Villa Bob Peterson & Nike/Festival de Cannes/AFP Photo

Dodô Azevedo

Escritor e cineasta

[RESUMO] Três décadas depois de "Faça a Coisa Certa" ter sido esnobado em Cannes, Spike Lee alcança a consagração definitiva na edição deste ano do festival, que começa na terça-feira (6). O diretor preside o júri e estampa o cartaz oficial da mostra francesa. O mundo de privilégios de classe e raça de hoje se parece ainda mais com seu famoso filme.

O diretor americano Spike Lee guarda, desde 1989, um taco de beisebol com a inscrição do nome do diretor Wim Wenders, seu desafeto desde que o alemão, naquele ano presidente do júri do Festival de Cannes, recusou-se a premiar “Faça a Coisa Certa” por considerar que o filme incitava uma revanche violenta de negros contra brancos.

Na última quarta-feira (30), “Faça a Coisa Certa” comemorou 32 anos de lançamento. O diretor americano celebrou em suas redes sociais, enquanto fazia suas malas para Cannes —ele será o primeiro negro presidente do júri do festival francês, que começa na próxima terça-feira (6). Na bagagem, o taco de beisebol com o nome do diretor alemão.

Lee também foi escolhido para ser o tema do cartaz oficial do mais famoso festival de cinema do mundo. Os mais recentes cartazes de Cannes homenageiam deuses da história do cinema. Marilyn Monroe e Marcello Mastroianni já foram entronizados em pôsteres do festival. Ingrid Bergman e Jean-Paul Belmondo também. Nenhuma figura contemporânea havia sido escolhida. Até este ano. Até Spike Lee.

Dois fatores fazem dele um deus contemporâneo. Em primeiro lugar, o que representa. O cinema já não tem mais os rostos e os nomes eurocêntricos, como Fellini e Hitchcock. A academia estadunidense deu seus últimos nove Oscars de melhor direção a oito artistas não americanos e não europeus (três mexicanos, uma chinesa, um coreano e um taiwanês).

Em Cannes, o mundo do cinema foi obrigado a descobrir pronúncias de nomes como Zhang-ke, Farhadi, Sissako, Joon-ho e Weerasethakul, e o novo cinema negro de Barry Jenkins, Ava DuVernay e Jordan Peele já ocupa vasto espaço no mainstream. Lee é a face de um cinema que não tem a cara pálida.

O segundo fator diz respeito à utilidade de sua produção. Se filmes do diretor russo Andrei Tarkóvski servem para pensar a existência humana e os de Stanley Kubrick a decadência da masculinidade, os de Lee buscam resolver um problema prático: como viver em um mundo em que privilegiados de classe e de raça perpetuam preconceitos para manter seus privilégios.

Lázaro Ramos, homenageado do Festival de Cinema Brasileiro de Paris deste ano, estreando na direção com o longa “Medida Provisória”, acrescenta: “‘Faça a Coisa Certa’ inaugura um olhar, um jeito novo de posicionar a câmera, do ponto de vista dos moradores daquela comunidade, de dentro para fora, que iria mudar tudo. O filme mantém-se atual porque continua falando sobre o hoje, mesmo usando códigos que estavam sendo lançados ali”.

“O título ‘Faça a Coisa Certa’ vem do fato de que, neste mundo, negros não podem se dar ao luxo de errar”, explicou o diretor em entrevista recente ao jornal The New York Times. O filme, passado inteiramente em um espaço público de apenas um quarteirão no dia mais quente do ano em Nova York, conta a história de uma vizinhança negra de classe média baixa, onde comerciantes asiáticos e italianos prosperam e se celebram. A pizzaria da rua só exibe retratos e pôsteres de italianos brancos em suas paredes.

O primeiro personagem a encrencar com a falta de representatividade no espaço privado de brancos é uma caricatura do militante negro. Em um de seus primeiros papéis no cinema, o hoje onipresente Giancarlo Esposito (depois astro de “Breaking Bad” e, recentemente, da série “The Mandalorian”, do universo “Star Wars”, e vilão do aguardado videogame “Far Cry 6”) mimetiza o que chamaríamos hoje de Black Twitter —os militantes negros que, em seus perfis em redes sociais, fazem barulho, promovem boicotes e não poupam nem sequer eles próprios.

Em 1989, o Twitter era a rua. E o militante, no filme, sai à caça de negros para boicotar a pizzaria até que o dono coloque heróis negros em suas paredes. A resposta é negativa. Os negros querem é saber de trabalhar e viver a vida sem entrar na militância. Sem pensar em política.

Spike Lee constrói o filme para que o espectador simpatize com os negros desinteressados na luta e veja no militante um vilão. Ele nos prepara uma armadilha, em que o objetivo é flagrar nosso próprio preconceito, porque essa é sua própria história.

Nascido em uma família de classe média negra, Lee estudou em escola de brancos e, ao se tornar cineasta, fez de Martin Scorsese seu herói e amigo particular. Amigo de brancos, não integrante do movimento negro (o diretor quase nunca foi visto em palanques), Spike fez, em seu longa de estreia, uma comédia romântica com personagens pretos, em que aparentemente as chamadas questões negras ficam de fora.

O filme “Ela Quer Tudo” estreou em 1986, despertando a ira de feministas negras como Audre Lorde e Angela Davis, com quem Spike Lee mantém relação de distância por vontade mútua.

O corre de Spike Lee é outro. É adotar o logos do opressor para passar a visão do oprimido. “Faça a Coisa Certa” é estruturado como um teatro grego, com direito a coro (três homens negros desempregados de meia-idade que passam o dia na esquina tomando cerveja e batendo papo furado).

O aparentemente doce personagem italiano dono da pizzaria, vivido com volúpia por um Danny Aiello em chamas, nos cativa e parece querer ser uma pessoa melhor. No entanto, o barulho do rap da banda Public Enemy que sai das caixas de som de um dos moradores do bairro, um jovem caladão que veste socos-ingleses com a palavra “amor” na mão direita e “ódio” na mão esquerda, irá fazer o simpático homem de bem revelar-se enfim intolerante.

Duvide de qualquer pessoa que se incomode com o barulho alto do funk em lugares públicos, como metrôs, ônibus ou esquinas —mesmo se ela, em casa, possuir discos de artistas negros. “Os filmes blaxploitation, com suas músicas groovies, que associam o groove à malandragem e ao perigo e trazem personagens negros invariavelmente sexualizados em papéis de policiais ou bandidos, nunca arquitetos ou advogados, são na verdade feitos para atender a um fetiche do espectador branco”, cravou Spike Lee quando escreveu o release de “Mais e Melhores Blues” (1990), seu filme sobre jazz e a exploração do músico negro por empresários brancos.

Em seu front, Lee fez de tudo para Clint Eastwood não dirigir a biografia de Charlie Parker, mas “Bird”, filme muito decente, foi realizado. Realizou ele mesmo, então, a maior e mais épica biografia de um negro no cinema, “Malcolm X”, que, em 1992, quase não foi terminado porque os investidores, assustados com a destruição de Los Angeles por negros após a absolvição de policiais que espancaram Rodney King no ano anterior, se recusaram a continuar financiando a empreitada.

O filme foi salvo por doações de pretos milionários, como Michael Jordan, Oprah Winfrey e Michael Jackson. Lee foi então considerado volátil demais pela indústria e colocado na geladeira por Hollywood.

Enquanto isso, sua obra despertava novos talentos. Em conversa com Kleber Mendonça Filho —codiretor e corroteirista de “Bacurau”, que se prepara para encontrar Spike Lee pessoalmente e compor com ele o júri do Festival de Cannes—, entende-se que a potência de “Faça a Coisa Certa” é capaz de ser decisiva a todos.

“‘Faça a Coisa Certa’ foi um dos filmes que me fizeram ter vontade de fazer filmes. Todo fim de semana eu alugava o VHS e chamava uma turma diferente em casa para ver o filme. Achava que todos deveriam vê-lo. Quando comecei a pensar em meu primeiro longa, ‘O Som ao Redor’, o filme de Spike se apresentou imediatamente. ‘Faça a Coisa Certa’ está o tempo inteiro em meu filme, mesmo sendo essencialmente americano, e o “Som ao Redor”, essencialmente brasileiro.”

Lee seguiu carreira irregular, passando a dirigir documentários que denunciam a história de crimes contra negros nos EUA e filmes com protagonistas brancos, e fez o grande filme sobre o pós-11 de Setembro, chamado “A Última Noite”, em 2002.

O fracasso de “Oldboy” (2013), refilmagem do sucesso sul-coreano de 2003, quase encerrou sua carreira (negros não podem dar-se ao luxo de errar), quando foi salvo por um pupilo. Jordan Peele, novo menino prodígio da indústria, autor de “Corra” (2017) e “Nós” (2019), produziu “Infiltrado na Klan” (2018), o filme que trouxe Lee de volta e, finalmente, lhe deu um Oscar, o de melhor roteiro adaptado.

E, de lá, até a definitiva consagração em Cannes. Não apenas pelo conjunto da obra, mas em razão da injustiça, hoje reconhecida, com “Faça a Coisa Certa”. Não que o filme tenha envelhecido bem. O mundo é que foi se tornando cada vez mais o filme. Como os negros alienados e simpáticos ao espectador de “Faça a Coisa Certa”, cada vez mais negros começaram a despertar para sua real condição no mundo.

Em 2014, Spike Lee e a Prefeitura de Nova York instituíram o Do the Right Thing Day —uma festa ao ar livre, gratuita, aberta ao público e com muita música ao vivo— para celebrar o filme.

O evento acontece anualmente na vizinhança de sua produtora, chamada 40 Acres e uma Mula —referência ao que o governo estadunidense ofereceu para cada ex-escravizado começar sua vida após a abolição—, que emprega hoje quase 70 funcionários. Eles sempre estão entre os mais animados nas festas, que levam milhares de pessoas às ruas do Brooklyn.

“Faça a Coisa Certa” é, desde então, o único filme da história do cinema que é celebrado anualmente com um uma festa de rua. Em cada festa, pode-se ver Spike Lee pessoalmente no palco, como mestre de cerimônias, suado, nos braços do povo. É o único cineasta, em toda a história do cinema, que mantém esse tipo de contato com o público, com sua comunidade.

Tudo em Spike Lee é sobre ocupar espaços e desmascarar a falsa distinção entre espaços públicos e privados quando se trata de negros (sejam ruas, paredes de pizzarias ou corpos violentados pelo racismo).

O filme —que pela segunda vez, devido à pandemia, não terá sua festa na rua— inicia-se com um som de relógio despertador e a voz de um DJ ordenando a todos: “Acorde!”. Trata-se de uma homenagem de Lee a “Born in Flames” (nascidas das chamas), dirigido pela “radfem” (feminista radical) branca Lizzie Borden, filme seminal do cinema independente de Nova York, onde gente preta como Spike Lee e Basquiat acordaram o mundo com o seu despertar em um ambiente urbano no qual a maioria era de negros desinteressados da luta, em meio à pobreza e decadência.

Era a virada dos anos 1970 para a década de 1980, e tudo ali estava errado. Por isso, tanta coisa despertadora dali saiu.

“Faça a Coisa Certa” tem, como público-alvo, o personagem interpretado pelo próprio diretor: um jovem negro, ganhando a vida com delivery, jovem pai ausente, alienado de si, como qualquer garoto negro brasileiro que trabalha para o iFood e não quer nem tem tempo de se envolver em questões raciais. No fundo, o filme quer o levante dessa juventude negra, convicto que só ela, inteira consciente, pode mudar tudo o que há de errado.

Estamos em 2021. Há muita coisa errada aqui. E há muitas coisas certas a fazer. Uma delas é celebrar Spike Lee e sua obra-prima. Porém, a primeira coisa certa a se fazer hoje, aqui, é ouvir algum dos muitos despertadores que tocam em meio à nossa pobreza, decadência, gente preta ainda desinteressada na luta e, finalmente, acordar.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.