Na pandemia, inventamos um jogo fantástico que se tornou macabro, diz cineasta em crônica

Matias Mariani conta rotina da família em meio à Covid-19

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Matias Mariani

Diretor, roteirista e produtor de cinema. Seu primeiro longa de ficção, ‘Cidade Pássaro’, está na Netflix

[SOBRE O TEXTO] Em uma crônica inédita, Matias Mariani relata sua experiência na pandemia

"Não há saídas / Só ruas, viadutos e avenidas"
Régis Bonvicino, Itamar Assumpção

No começo da quarentena de 2021, minha mulher, minhas filhas e eu inventamos um jogo fantástico que, desgraçadamente, não tardou a se tornar macabro.

Naquele momento, estávamos ficando numa fazenda com minha família estendida, tios, tias, primos. Uma vez por mês, porém, viajávamos 30 minutos até uma casa mais distante, onde passávamos o fim de semana enganando-nos de que, apesar das condições mundiais, ainda existia uma coisa chamada família nuclear. Por 30 minutos na ida e na volta, portanto, éramos nós, uma picape cruzando a mata erma, uma caçamba cheia de mantimentos e uma cabine notadamente desprovida de distrações infantis.

Ilustração para imaginação
Ilustração de Andre Stefanini - Andre Stefanini

Durante umas das primeiras travessias, eu propus a existência de um novo gênero de primatas. Os Macacos Furtivos tinham como único desígnio na vida roubar toda a comida da nossa caçamba, e para isso poderiam fazer ou ser qualquer coisa: se transformar em vacas para bloquear nosso caminho, gritar feito pássaros para nos distrair, fingir serem árvores ou até a lua.

A única coisa que os assustava era o som da buzina do carro, então de tempos em tempos a fazíamos soar pela escuridão silvestre à nossa volta, enquanto concatenávamos cenários cada vez mais absurdos de como os tais macacos poderiam nos trapacear. Talvez eles tivessem se transformado em maçãs que sem saber colocamos junto com as compras, e estavam agora dilacerando os nossos queijos?

Talvez eles se tornaram um coco ou uma manga, que caiu na caçamba na hora exata em que passávamos, e com isso tiveram acesso aos nossos tesouros? Ou talvez, e os olhos da minha filha mais velha se encheram de água enquanto falava, ou talvez, você sempre tenha sido um Macaco Furtivo pai, desde que eu nasci. E também a mãe, a Aurora —sua irmã— a vovó...

Ela começou a soluçar, eu pisei no freio. Abracei-a, junto com a minha mulher, e demorou alguns minutos até que ela se acalmasse, e lembrasse que os Macacos Furtivos só existiam dentro daquela cabine.

Pensei nos bons filmes de terror que já vi ao longo da vida, principalmente aqueles que assisti sem poder, ainda criança. Mas, mais importante, lembrei de um romance do Saul Bellow, intitulado "The Dean’s December", no qual, numa certa noite, um cachorro late esganiçado contra as limitações de se ser um cachorro, como se dissesse —segundo o narrador—: Pelo amor de deus, alguém abra o universo mais um pouco.

Tenho tido muita vontade de latir como esse cachorro, ultimamente, ou de chorar como a minha filha. E fico aqui refletindo sobre esse sentimento. Uma "epifania de cabeça para baixo" seria um bom jeito de defini-lo, ou se apropriando da expressão do roteirista americano Robert Towne, um "túnel no final da luz".

E acho essa reflexão se apoderou de mim porque, de certo modo, esse sentimento me parece uma resposta apropriada para as perguntas que o mundo nos põe hoje em dia, talvez até a resposta mais sensata.

Esse medo profundo de que tudo não seja o que parece, de que para entender a complexidade feroz e despropositada do mundo, tenhamos herdado, por azar congênito, uma ferramenta cognitiva incompatível com a tarefa, parece espreitar pelas frestas dos meus olhos cada vez que abro o jornal, cada vez que que abro a porta de casa mas não vejo saída, só ruas, viadutos e avenidas.

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