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Esper Kallás

Chamar de negacionista quem hesita em se vacinar é erro que dificulta luta contra Covid

Quebrar resistências contra a imunização demanda uma ampla gama de estratégias

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Esper Kallás

Médico infectologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e colunista da Folha

[resumo] Usar indistintamente o rótulo de ‘negacionismo’ para os que hesitam em se vacinar é um erro, pois não permite a diferenciação de um amplo espectro de comportamentos e dificulta o convencimento, avalia médico infectologista. Quebrar resistências e reacender a confiança na ciência demandará uma ampla gama de estratégias e a divulgação massiva dos benefícios da imunização.

Quem poderia imaginar? Do alto de seus 55 anos, o doutor P., médico experiente, declarou que não iria se vacinar contra a Covid-19. Os colegas de turma, companheiros desde os tempos dos bancos da Faculdade de Medicina, reagiram incrédulos, mesmo indignados.

Mostrando-se bastante receoso com relação às vacinas atuais, P. expunha seus argumentos procurando justificar, de modo mais eloquente possível, porque decidiu correr os riscos de “pegar” a Covid-19 e recusou receber uma das quatro vacinas disponibilizadas no Brasil, oferecidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde.

A indignação costuma ser mesmo a primeira reação quando nos deparamos com alguém com esse tipo de postura. Logo a racionalidade da discussão se deteriora, na tentativa de descaracterizar e desconstruir as motivações alheias, muitas vezes resultando em agressões verbais e rupturas —que começam, quase sempre, quando o rótulo “negacionismo” é mencionado.

A abordagem dessas discussões tem sido bastante ineficiente, e o problema vai além do verniz superficial das polarizações atuais.

Usar “negacionismo” genericamente é um erro, pois não permite a distinção entre um amplo espectro de comportamentos, colocando no mesmo lugar verdadeiros negacionistas, criadores de teorias conspiratórias e, por exemplo, pessoas com limitação de informações.

Atualmente, especialistas no assunto preferem definir a atitude com o termo “hesitação às vacinas”, quando observamos atraso ou recusa, mesmo que os imunizantes estejam disponíveis. Desta forma, é possível acomodar separadamente os diferentes comportamentos e tentar encontrar formas de revertê-los.

Resistência ao uso de vacinas não é algo novo. Ao contrário, surgiu desde que Edward Jenner impulsionou o conceito de usar uma parte do germe causador da doença para educar o sistema imune a construir uma resposta protetora, ainda na segunda metade do século 18.

Jenner foi o protagonista de uma das mais extraordinárias descobertas em medicina, por ter sido um médico que desenvolveu seu dom de observação. Além da vacina para varíola, foi um dos primeiros que descreveram as calcificações em coronárias como causa de anginas, as dores do peito que acontecem no infarto ou o precedem— e esclareceu o comportamento dos cucos, pássaros dos arredores de Londres.

O uso da vacina da varíola não foi isento de fortes críticas. Muitos não acreditavam nas políticas de vacinação, implementadas por diferentes governos. Afinal, era algo completamente novo: um produto extraído de vesículas encontradas em úberes de vacas, causadas por um vírus muito parecido ao encontrado na própria doença de humanos, conhecido como vírus da varíola bovina.

Vários cartunistas fizeram caricaturas jocosas, com pessoas vacinadas portando chifres, úberes e rabos. Surgiram grupos antivacinas organizados e até mesmo grupos de religiosos clamando que este era um ato anticristão, pois usava em humanos material extraído de animais.

Houve protestos, confrontos e todos os tipos possíveis de antagonismo. Todavia, a varíola era uma doença cruel, que podia levar à morte cerca de 30% dos infectados, não sem antes fazê-los padecer por dias, com o corpo todo coberto de bolhas purulentas, amareladas e dolorosas. Prevaleceu o convencimento, embora, em muitas circunstâncias, a força da imposição tenha sido fundamental para a implementação da vacina.

Foram necessários, ainda assim, quase dois séculos para que a vacinação atingisse níveis amplos de cobertura, suficientes para levar à erradicação da varíola, anunciada pela OMS em março de 1980, fazendo desta a primeira doença a ser erradicada, graças ao alinhamento de políticas públicas em escala global.

A complexa receptividade às vacinas veio novamente à tona com a pandemia de Covid-19 e tem apresentado muita variabilidade nos diferentes países, por diversas razões. Sua aceitação é bastante baixa na Rússia, enquanto atinge níveis altos na China, em Portugal e no Brasil.

O sucesso da cobertura vacinal é um reflexo direto da “hesitação às vacinas”. Mesmo tendo obtido doses suficientes para toda a população, Israel está apresentando dificuldades em romper a barreira de 67% dos cidadãos vacinados; e os Estados Unidos não conseguem atingir os 65%.

Como resultado, Israel sofreu mais uma onda de casos, o que levou à adoção da terceira dose da vacina. Os Estados Unidos também voltaram a registrar números altos de mortes pela doença. Entre os óbitos, os não vacinados respondem por 95% do contingente.

No cenário de receptividade às vacinas, o Brasil tem figurado como um bom exemplo para o mundo. A construção de políticas eficientes e responsáveis de vacinação, pelo Programa Nacional de Imunizações, o PNI, tem alcançado o importante feito de proteger seus cidadãos contra múltiplas doenças infectocontagiosas.

Conseguiu-se, com esforço continuado, a ampliação de um programa de vacinas para crianças e adultos que levou à redução da mortalidade infantil e ao controle de muitas doenças transmissíveis.

Entretanto, e apesar de seu reconhecido mérito, o PNI vem sofrendo críticas pela queda nas taxas de vacinação e redução de sua priorização estratégica, contaminada por embates políticos e ataques de movimentos antivacina, emergentes no país.

Foi no Brasil que ocorreu a primeira vacinação em larga escala contra a febre amarela. Doença gravíssima, que chega a matar metade daqueles que desenvolvem sintomas, assolava o Rio de Janeiro no início do século 20. Foi nessa época que surgiu uma vacina promissora, aplicada na população da cidade, levando à diminuição de novos casos e de mortes.

Brasileiros também contribuíram enormemente na elaboração de planejamentos e ações para a erradicação da varíola pela vacina, feitos formalmente reconhecidos pela OMS. Também aqui se consolidou a estratégia de vacinação em massa.

As campanhas de imunização contra a poliomielite foram concebidas, em grande parte, no Brasil, e concorreram para a erradicação de dois dos três tipos do vírus causador da doença. O Zé Gotinha, personagem criado em 1986 pelo artista plástico Darlan Rosa e batizado por um aluno do Distrito Federal, a pedido do Ministério da Saúde, foi adotado como o mascote oficial, símbolo do Plano Nacional de Imunizações.

Um estudo realizado pela Fiocruz, com mais de 170 mil pessoas, mostrou que a aceitação de vacinas para Covid-19 continua alta no país, com a hesitação confinada a 10,5% da população, uma das mais baixas do mundo.

Os motivos atribuídos para essa hesitação são principalmente dúvidas sobre eficácia, receio de possíveis efeitos colaterais e desconfianças a respeito do país de origem das substâncias.

Esses argumentos foram emitidos majoritariamente por homens, pessoas com filhos, com menor grau de escolaridade, moradores do Centro-Oeste, mais velhos e com salários mais baixos.

Estudos como esse permitem melhor identificação e compreensão dos bolsões de hesitação, de forma a tornar as estratégias de convencimento mais exitosas. Resistências, afinal, sempre existirão.

Uma história foi compartilhada por um colega, sobre um encontro familiar restrito a poucas pessoas, em raro momento de socialização permitido pela atual pandemia. Aos convidados foi solicitada a confirmação de que a vacinação contra a Covid-19 estivesse completa e em tempo hábil para conferir proteção.

Aí veio a surpresa: um dos convidados esperados pela família não concordava em receber a dose de reforço com vacina de RNAm, pois ouvira, de uma “fonte segura da internet”, que poderia haver alteração de seu material genético. “Sabe como é, dizem que a doença foi disseminada intencionalmente e tudo foi desenvolvido muito rápido, sabe-se lá o porquê…”, dizia ele.

Depois de muitas tentativas de contrapor a teoria improvável, o convidado agradeceu a disposição pelos esclarecimentos. Ao final, ainda restava a dúvida se as explicações foram suficientes para dissuadi-lo, a fim de que procurasse a vacina o quanto antes.

Teorias conspiratórias fazem parte do dia a dia das mídias sociais. Originadas na fantasia mal intencionada de alguns e na limitação de conhecimento técnico de outros, são construídas sobre argumentos não verificáveis e circulares, que dificultam a checagem de sua autenticidade.

Essas teorias são, hoje, um campo de estudos para ciências comportamentais. Muitas vezes parecem associadas, em sua concepção e aceitação, a distúrbios mentais. Outras vezes são atribuídas à notória má-fé, sendo propagadas por pessoas interessadas em beneficiar-se da credulidade dos mais vulneráveis.

Tais teorias, uma vez encontrando disseminação ativa na opinião pública, caminho facilitado pelo grande alcance das mídias sociais, têm enorme potencial para causar impactos danosos —inclusive na implementação de políticas de prevenção de doenças transmissíveis, especialmente de vacinas. A queda da confiança nos achados da ciência abre espaço para que se estabeleçam radicalizações irracionais e extremismos de toda sorte.

Cito como exemplo o caso de Andrew Wakefield, médico britânico que publicou, em 1998, artigo na The Lancet, uma das mais prestigiadas revistas médico-científicas do mundo. Nela, descreveu 12 casos de crianças que desenvolveram problemas gastrointestinais e autismo, sugerindo haver relação com a aplicação da vacina tríplice viral, para prevenção de sarampo, caxumba e rubéola.

Embora o trabalho não tenha conseguido de fato estabelecer relação causal precisa com o autismo, Wakefield deu declarações demandando a suspensão do uso da vacina. Vários painéis de especialistas foram convocados no mundo todo, e o assunto ganhou enorme destaque na mídia.

Como consequência, houve queda significativa na cobertura vacinal de crianças, não só da vacina em questão, mas de todas as outras preconizadas. Foi somente em 2005 que um segundo estudo, realizado no Japão, descartou qualquer ligação entre o autismo e a vacina tríplice viral.

O estrago, contudo, já estava feito. Em 2006, vieram a público fatos inidôneos relacionados ao controverso artigo: advogados que representavam os pais de algumas das crianças referidas no texto doaram 55 mil libras para que a pesquisa fosse realizada, além de mais 400 mil libras para que Wakefield os ajudasse no processo contra os produtores da vacina, dados conflitantes que ele não havia revelado.

O processo levou à cassação de sua licença médica no Reino Unido, por fraude. Em 2010, finalmente, a revista The Lancet se retratou pelo artigo, admitindo publicamente que os resultados do estudo não são confiáveis.

Esse é um exemplo de teoria conspiratória fomentada pelo interesse de pessoas que seriam diretamente beneficiadas pela sua criação. Os danos na política de saúde coletiva foram tão profundos que só puderam ser corrigidos muitos anos depois.

Elaborou-se na ocasião uma argumentação difícil de ser refutada, com impacto negativo que se estende até dias atuais. Muitos grupos ainda baseiam suas alusões no estudo de Wakefield, considerado um dos principais nomes do movimento negacionista antivacinas.

É um grande desafio conseguir identificar as fontes das teorias conspiratórias para denegrir as vacinas, especialmente em tempos de internet livre e de mídias sociais. Por outro lado, sabe-se que grande parte dessas ideias têm origem em um pequeno grupo de pessoas que atuam deliberadamente com este propósito.

Por exemplo, 65% das menções antivacinas no Twitter e no Facebook com penetração nos Estados Unidos são oriundas de 12 perfis somente. Medidas para cortar o mal pela raiz, incluindo a suspensão dessas contas, têm sido discutidas.

Outra discussão envolve a criação de meios para forçar a vacinação. Desde medidas mais radicais, como a polêmica obrigatoriedade, até formas de condicionar empregos, viagens e outras atividades mais corriqueiras à apresentação de comprovantes de imunização.

Vários países, mesmo os que tradicionalmente valorizam as liberdades individuais, estão progressivamente implementando ações, muitas vezes, antipopulares. Na França, só pode entrar em restaurantes quem apresentar sua carteira comprovando a imunização completa.

No Canadá e nos Estados Unidos, funcionários federais podem ser demitidos caso não se vacinem. No Brasil, empregados de algumas empresas privadas que se recusaram a se vacinar foram demitidos e perderam ação em segunda instância na Justiça. Não cabem recursos. Na esfera pública, o mesmo foi decidido pelo STF.

A base para tal entendimento é que se manter suscetível a uma doença transmissível não é uma escolha somente da pessoa, pois pode afetar os demais em seu entorno. Ou seja, a escolha individual de recusar a vacina pode atentar contra a integridade de terceiros e, consequentemente, contra a sociedade.

Felizmente, a maioria da população brasileira parece ter entendido seu papel individual e coletivo com relação às vacinas, mantendo alta sua receptividade a elas. Também é atribuição de profissionais de saúde, cientistas e comunicadores da área ajudar a propagar a sua relevância fundamental na prevenção e no controle de doenças infecciosas transmissíveis.

Daí a importância da divulgação de uma ampla base de dados sobre o impacto da vacinação, a fim de que tenhamos argumentos sempre embasados para oferecer a alguém que esteja hesitante sobre vacinar-se.

Entender melhor quais as principais fontes e como se propagam falsas notícias e desinformação sobre vacinas e outras políticas públicas de saúde tem sido um grande desafio atual. Quais as razões que sustentam as altas taxas de hesitação às vacinas em alguns países com recursos para distribuí-las plenamente?

Limitação de conhecimento acessível? Dificuldade de identificação de sítios confiáveis de informação? Polarizações ideológicas conflitantes? Fobia de agulha? Falta de coragem? Ou negacionismo verdadeiro? Para cada um desses exemplos, a abordagem e os argumentos devem ser diferentes.

Retomando o caso com que iniciei este texto, o debate ficou de fato acalorado. Vários levantavam razões para estimular o doutor P. a vacinar-se. Por enquanto, tudo em vão. Ele prefere esperar mais “evidências”.

Alguns conhecidos do Facebook o convenceram de que não vale a pena arriscar a sorte com vacinas que foram produzidas “sabe-se lá onde” e disponibilizadas rapidamente “sabe-se lá por que”.

Quem sabe em 2023? Mas seus colegas de turma não pretendem desistir tão cedo. Uma questão foi colocada e reaqueceu ainda mais a discussão: se a varíola tivesse surgido na era da internet, das mídias sociais e das fake news, teríamos sido capazes de erradicá-la?

As novas mídias modificaram a velocidade como são disseminadas as notícias falsas, mas também a agilidade com que podemos compartilhar informações em grande escala.

Encontrar os melhores instrumentos para informar a população e reacender a confiança na ciência por trás das vacinas, e seu impacto benéfico na humanidade, será sempre uma missão dos cientistas em interlocução com os que atuam a favor de divulgar seus resultados de forma correta e com responsabilidade.

E, com as novas tecnologias, recentemente empregadas durante a pandemia de Covid-19, o número de novas vacinas contra germes transmissíveis está sendo multiplicado a rapidamente. Novos desafios pedem novas estratégias.

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