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Luiz Armando Bagolin

'Playboys intelectuais de 1922' lideraram atualização das artes negociada com elites

Críticas à Semana de Arte Moderna, que completa 100 anos, não podem ignorar seu contexto histórico

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Obra de arte

‘Estudo de Homem’ (1915/16), de Anita Malfatti IEB-USP/Divulgação

Luiz Armando Bagolin

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e curador da exposição "Era uma Vez o Moderno [1910-1944]", em cartaz no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo, até 29 de maio

[RESUMO]Modernismo paulista decorrente da Semana de 22, liderado por filhos da aristocracia e burguesia, propôs uma atualização dos padrões estéticos que preservasse a cultura e a memória das elites, espécie de "ruptura negociada" em uma sociedade desigual. Críticas ao movimento centenário, contudo, não devem perder de vista um de seus grandes legados: a valorização da diversidade cultural e racial na formação do Brasil.

Em 27 de janeiro de 1922, no meio da madrugada, a cidade de São Paulo foi atingida por um forte tremor de terra. No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou uma página ao fenômeno, chamando a atenção para o fato de ter sido "o primeiro na capital (do Estado) de tal intensidade".

Dias depois, durante a abertura da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro, Renata Crespi, uma alta dama da sociedade paulista, ciceroneada pelo escritor Menotti del Picchia, teria parado diante de uma pintura de Anita Malfatti e perguntado: "Não estaria torto aquele retrato?".

​Menotti parou por um instante e respondeu, com fino humor, que não, pois o quadro havia sido realizado sob os efeitos do terremoto recém-ocorrido na cidade. O seu "estilo" era consequência das forças dinâmicas da natureza, o que causava as deformações justificáveis na pintura.

Assim, em meio a ironias e paródias, se iniciava o movimento modernista brasileiro. Ele se desenvolveu a partir de um duplo movimento que é aparentemente contraditório aos olhos atuais: por um lado, desejou-se manifestar uma atitude de oposição ao gosto e aos padrões estéticos vigentes, sedimentados em uma sociedade extremamente patriarcal, oligárquica, por demais dependente da economia rural; por outro, as manifestações apresentadas durante a Semana, na poesia, na pintura, na arquitetura e na música, ainda estavam ligadas às vertentes estéticas do passado, sobretudo aos movimentos artísticos do final do século 19 ou às posições do modernismo europeu pós-vanguardas.

Dito de outro modo, o modernismo inaugurado pela Semana de Arte Moderna encontrava-se mais no campo das intenções do que formalmente nas obras apresentadas. Foi um evento para gerar repercussão social e gerou até mais do que esperavam, mas foi proposto por pessoas que pertenciam àquela mesma elite, desejosa por estar a par dos últimos acontecimentos e modas, pouco importando quais fossem.

Guilherme de Almeida, um dos poetas a se apresentar na Semana, declarou em 1962: "Éramos os playboys intelectuais de 1922!". Mário de Andrade, por sua vez, dizia que os modernistas agremiados em torno da Semana não desejaram uma ruptura completa com o passado.

Queriam antes uma atualização no campo das artes, insistindo na possibilidade de se construir um "novo classicismo" que levasse em conta algumas contribuições "passadistas" (a literatura de Machado de Assis, por exemplo) e ao mesmo tempo assimilasse as tendências mais amainadas do modernismo estrangeiro.

A esse respeito, Mário diria, na Conferência sobre o Movimento Modernista, feita no Ministério de Relações Exteriores em 1942: "Não só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes já academizadas".

De fato, o "movimento" pela renovação cultural brasileira em 1922 estava muito atrasado em relação às vanguardas artísticas do início do século 20, seja o cubismo, o futurismo, o dadaísmo etc., restando-lhe a apropriação ou o estudo de algumas das suas fases posteriores, mais acomodadas e equilibradas após o término da Primeira Grande Guerra.

Essa segunda fase do modernismo europeu recebeu o nome de "retorno à ordem"; teve como epicentro a França, que se via como herdeira da tradição artística clássica antiga e produziu novos movimentos como o purisme, de Ozenfant e Le Corbusier, a Séction d’Or, de Gleizes, Metzinger e outros, além das inúmeras manifestações artísticas pessoais inseridas dentro da assim chamada Escola de Paris.

A partir de 1923, com a chegada de muitos artistas brasileiros em Paris para uma temporada de aprimoramento (alguns haviam ido antes, em 1920, como Tarsila do Amaral e Victor Brecheret), as manifestações mais polêmicas e agressivas bradadas durante a Semana de Arte Moderna cederam lugar a produções que se acomodavam mais facilmente ao gosto da burguesia europeia, sendo paulatinamente aceitas também pela elite brasileira.

Um pouco antes, entre 1915 e 1916, Anita Malfatti travou contato com diversas dissidências das vanguardas presentes no ambiente nova-iorquino e, em particular, se aproximou do cubofuturismo de Marcel Duchamp, assim como dos preceitos da pintura de paisagem pós-impressionista e pós-fauvista ensinados por Homer Boss na Independent School of Art.

Poderia se pensar, a título de defesa dos primeiros modernistas brasileiros, que uma vez havendo as condições adequadas para que o Brasil participasse do "concerto nas nações cultas" naquele momento de nossa história, eles adeririam ao que havia de mais atual no campo das artes na Europa e nos Estados Unidos: o que era vanguarda então era esse modernismo mais apaziguador, buscando os valores universais nas artes de todos os tempos para a sua própria construção.

Entretanto, dado o modelo de formação social do Brasil, advindo do mercantilismo colonial e da escravidão, foi a atualização negociada dos padrões estéticos e culturais oficiais a estratégia adequada àquela referida atualização.

Era necessário fazer permanecer a hegemonia da elite dominante no Brasil, e esse modernismo que clamava pelo classicismo e pela tradição servia perfeitamente ao propósito de manutenção e preservação do patrimônio e da memória construídos por essa mesma elite.

Em meados da década de 1920, os artistas brasileiros passaram a se interessar pelo nacionalismo, por fazer uma arte moderna com identidade brasileira. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, de 1924, é um exemplo. O poeta francês Blaise Cendrars incentivou o grupo em sua viagem por Minas Gerais a olhar para o Brasil local, com as suas tradições e costumes.

Os brasileiros estariam muito mais habilitados a tratar do elemento "negro", por exemplo, incorporando-o às suas obras, que o europeu. Tarsila desenhou nesta época "A Negra" (1923) para a capa do livro de Cendrars, "Feuilles de Route" (1924).

O Brasil profundo, primitivo, de dialetos, linguagens, ritos e cosmogonias indígenas tornou-se a matéria-prima dos modernistas. O Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, em 1928, trazia referências fragmentárias da cultura brasileira de diversas épocas, começando pelas descrições de viajantes europeus do século 16 (como André Thevet, Jean de Léry e Hans Staden) sobre o culto antropofágico dos índios tupinambás.

O Brasil antigo fora primeiro conhecido pelos europeus como o lugar onde nativos bárbaros comiam gente —e esses relatos assombraram o imaginário europeu contundentemente.

Todavia, embora haja no Manifesto Antropófago um tom derrisório em relação às culturas europeias estabelecidas e obedecidas no Brasil colonizado, o que nos levaria a entender a antropofagia como o nosso primeiro movimento de vanguarda, nele também se apresentou a ideia de que se estava encerrando um ciclo e não iniciando um novo.

Dito de outro modo, a antropofagia se comportou, como diria o historiador Hans Belting, como um epílogo e não como um prólogo, à medida que serviu para preservar o status quo ou a posição hegemônica daquela elite branca, a única a tornar possível a representação de uma identidade brasileira a partir de uma estratégia de apropriação e assimilação de alteridades.

Mário de Andrade fez as suas viagens ao Norte e Nordeste do Brasil em 1927, 1928 e 1929, investigando as culturas e tradições, principalmente da região amazônica.

Na obra de Theodor Koch-Grünberg, "Vom Roraïma Zum Orinoco", resultante de expedições feitas ao norte da região amazônica e à Venezuela entre 1911 e 1913, Mário achou o nome Macunaíma e o conceito do índio como "um herói sem caráter".

Macunaíma passou então a representar o caráter indecifrável do brasileiro, sendo que o Brasil não podia ser apropriado completamente por aquelas pesquisas de caráter tão somente estético feitas pelos modernistas.

A antropofagia, no entanto, liderada por Oswald de Andrade, tratava esse campo apenas como um grande repositório de matéria-prima para a produção de mais blagues e insultos contra as posições culturais sedimentadas pela velha aristocracia rural brasileira, assim como para a criação de obras que, alimentando-se de referências locais, produziam-se como sucedâneos nos trópicos de trabalhos surrealistas feitos na Europa. Esse posicionamento, além de desavenças de natureza pessoal, fez com Mário rompesse com Oswald e os antropófagos.

A partir do final da década de 1930, o modernismo passou a ser visto como um instrumento de afirmação ufanista do Estado Novo (1937-1945), pró-nazista. A ideia de uma arte de caráter nacionalista e ao mesmo tempo com uma roupagem formal nova era perfeita para servir de arte oficial de um governo populista e autoritário que necessitava de uma ideia simples em termos culturais, tanto para consumo interno quanto para ser vendida externamente.

A ideia de brasilidade, propalada pelos diversos manifestos modernistas produzidos desde a década anterior, era, de fato, muito apropriada para ser amplificada pelo sistema estatal, podendo ser assimilada facilmente pelas massas. Oswald de Andrade disse certa vez: "Um dia a massa comerá o biscoito fino que fabrico". Graças ao aparato estatal, posto à disposição do modernismo brasileiro, isso de fato aconteceu.

Em 1953, logo após o trigésimo aniversário da Semana de Arte Moderna, o governo de Getúlio Vargas glorificou o evento modernista. Durante a década de 1950, os poetas concretistas paulistas fizeram um resgate da obra literária de Oswald de Andrade, enaltecendo-a e reafirmando o seu pioneirismo no campo da língua escrita.

Em 1972, em torno da efeméride do cinquentenário da Semana, reafirmou-se o "mito da ruptura" do movimento modernista brasileiro e o início de uma disputa pelo seu legado pela ditadura militar e pela intelectualidade de esquerda da época.

"Macunaíma" havia sido lançado em versão cinematográfica em 1969 por Joaquim Pedro de Andrade, e os tropicalistas (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e os Novos Baianos) popularizaram as invenções dos poetas, escritores e pintores modernistas em suas canções.

Em 1971, o MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo reuniu e gravou os depoimentos dos integrantes do movimento modernista ainda vivos. Estiveram presentes Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Renato Almeida e Tarsila do Amaral. Esses depoimentos serviram para reforçar o caráter heroico das ações e produções do grupo.

Também no início da década de 1970, se deu o interesse da USP pelos modernistas, que passaram a ser objeto de estudos e teses produzidos, sobretudo, nas áreas de sociologia e teoria literária. Na mesma época, a universidade adquiriu o acervo (arquivo pessoal e coleção de arte) de Mário de Andrade, que havia morrido em 1945.

De lá pra cá, no entanto, temos visto uma mudança substancial de postura em relação à interpretação histórica do papel do modernismo brasileiro. Em especial, chama a atenção o fato de uma parte da jovem intelectualidade brasileira tentar hoje desconstruir o mito do modernismo a partir de uma argumentação crítica exterior aos fatos e acontecimentos que enredaram aqueles personagens históricos.

Ao acusar os integrantes do movimento modernista de não terem, por exemplo, respeitado os lugares de fala dos indivíduos de cujas tradições e histórias se apropriaram, na tentativa de realizar uma arte genuinamente brasileira, esse tipo de crítica assume o anacronismo em prol de um posicionamento político-ideológico contemporâneo, mas de todo estranho às demandas e preocupações daqueles agentes históricos.

O fato de que não houve a participação de pessoas negras ou de origem indígena na Semana de Arte Moderna, que foram representadas antes como temática ou assunto, revela certamente muito sobre a desigualdade histórica e o racismo estrutural presentes na formação social do país —desigualdade que permanece nos dias atuais.

As razões históricas dessa desigualdade devem ser examinadas, e as suas consequências, funestas para o desenvolvimento humano do nosso país, devem ser combatidas de todos os modos possíveis.

Os modernistas, filhos da aristocracia e da burguesia, chamaram a atenção para a diversidade das manifestações culturais brasileiras e para a necessidade de se pensar em uma arte cujo esteio fosse essa diversidade ou a exposição das singularidades presentes dentro dela.

Pela primeira vez na história, não se evitavam os elementos das culturas africanas e indígenas presentes em nossa formação social e cultural em prol de uma arte hegemonicamente branca e europeia.

Talvez não tenha sido suficiente o que os modernistas propuseram e fizeram, mas as suas apropriações daquilo que consideravam ser as matrizes culturais brasileiras, a partir de uma sociedade miscigenada e heterogênea, deveriam ser estudadas à luz do seu próprio contexto histórico.

Mário declarou a esse respeito: "Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição".

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