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Idelber Avelar

Fake news da interferência russa na eleição de Trump foi maior vexame da imprensa americana

TVs e jornais propagaram boatos nos últimos 5 anos, sem qualquer comprovação

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Idelber Avelar

Professor de estudos latino-americanos na Universidade Tulane, em Nova Orleans (EUA). Seus escritos sobre a Argentina estão publicados em ‘Alegorias da Derrota’ (UFMG, 2003) e ‘Figuras da Violência’ (UFMG, 2012). Seu livro mais recente é ‘Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século 21’ (Record, 2021)

[RESUMO] Propalada ao longo dos últimos cinco anos sem quaisquer indícios de comprovação, a suposta interferência russa nas eleições americanas de 2016, que teria levado à vitória de Trump sobre Hillary Clinton, foi um golpe sem paralelo à credibilidade da grande imprensa, que a ela dedicou cobertura diária na TV e centenas de páginas nos jornais impressos. Caso teve como efeito disseminar o recurso a boatos com fontes anônimas e garantir vitórias políticas a Trump, que permanece forte para a próxima eleição.

Não seria exagero dizer que foi o maior colapso jornalístico do século 21. Não estamos falando de um erro factual do âncora do telejornal das 11 ou de três matérias mal-apuradas nos jornais impressos.

Foram cinco anos de cobertura diária na CNN e na MSNBC e centenas de matérias no New York Times e no Washington Post sobre algo que se provou um hoax, um fantasma, uma história malcontada cujas incongruências se acumularam até o total desmoronamento: o Russiagate, a tão propalada "interferência russa nas eleições de 2016", fruto do "conluio de Trump com o Kremlin".

Vamos ao fatos.

Em 12 de junho de 2016, cinco meses antes das eleições, Julian Assange anunciou que o Wikileaks publicaria uma bateria de emails referentes a Hillary Clinton. Em três dias a Crowdstrike, empresa de segurança cibernética contratada pelo Comitê Nacional Democrata (DNC) já afirmava que tinha evidências de que a Rússia havia hackeado os servidores do partido. Começava a se consolidar a narrativa de que quem se ocupasse do conteúdo da publicação do Wikileaks estaria fazendo o jogo da Rússia.

Os emails se publicaram em julho e eram de evidente interesse público. Revelavam a corrupção do DNC e a sabotagem da candidatura de Bernie Sanders nas primárias, incluindo-se a entrega das perguntas dos debates à campanha de Clinton com antecedência.

Enquanto isso, a pedido da Fusion GPS, empresa também contratada pelo DNC e que se apresenta como "de inteligência estratégica", um ex-espião inglês, Christopher Steele, preparava um dossiê sobre as supostas relações de Donald Trump com a Rússia.

Hoje desacreditado, esse dossiê foi a fonte da história de que em 2013, durante o concurso de Miss Universo realizado na Rússia, ao saber que uma cama de hotel havia sido usada por Barack e Michelle Obama, Trump teria contratado duas prostitutas para urinar nela enquanto ele assistia. Vladimir Putin estaria em poder de um vídeo desse ato e, desde então, em condições de chantagear Trump com a ameaça de sua publicação.

A história, que ficou conhecida como "fita do xixi", foi apresentada sem evidências ou fontes nomeadas, em um dossiê contratado por uma campanha política e produzido um ex-espião —ou seja, alguém que passou a vida recebendo para mentir.

Ainda assim, milhares de horas de transmissão televisiva e incontáveis matérias de jornal foram dedicadas a elucubrações sobre a fita do xixi. Dias antes da posse de Trump, a principal âncora da MSNBC, Rachel Maddow, afirmava que a presença das tropas americanas na Ucrânia (segundo ela, desejável) corria riscos graças à chantagem possibilitada pela fita do xixi. Na New York Magazine, Jonathan Chait se declarava um "peeliver", em um infame trocadilho com "pee" (xixi) + "believer" (crente).

Em janeiro de 2017, o BuzzFeed publicou na íntegra o dossiê de Steele. Os poucos jornalistas que examinaram o material com independência —Matt Taibbi, Aaron Maté, Caitlin Johnstone, Glenn Greenwald, Branko Marcetic e outros— coincidiam em ver ali um arrazoado sem credibilidade, mas isso não impediu que a imprensa passasse a apresentar Steele como pesquisador de credenciais impecáveis, espião com altos contatos, fonte singular sobre os mistérios do Kremlin e da "intervenção russa" nas eleições americanas.

No Partido Democrata, o Russiagate funcionava como explicação para o fato de sua mais poderosa operadora ter perdido uma eleição presidencial para um bufão de TV, ao cabo de um governo democrata extremamente bem-avaliado.

Em 2017, o FBI já sabia que Steele não tinha fontes de credibilidade, mas essa informação foi sonegada ao público. A origem dos boatos era um expatriado residente em Washington, de nome Igor Danchenko, que inventava as lorotas alegando conversas com pessoas que ele jamais viu, e que depois teriam suas vidas seriamente danificadas pelas mentiras (ou seja, a "fonte" era um russo que nem sequer morava na Rússia).

O dossiê de Steele consolidava uma estratégia retórica essencial do Russiagate: a fundamentação de boatos com referência a "altas e não nomeadas fontes", do Kremlin ou das agências de inteligência americanas. Um dos que se gabavam de ter contatos no Kremlin e de traficar boatos chamava-se Charles Dolan, Jr. Sua principal atividade política naquele momento consistia em ser operador da campanha de Clinton!

Depois da posse de Trump, a russofobia chegou a níveis dignos da Guerra Fria. Em maio de 2017, iniciou-se a investigação do procurador Robert Mueller no Congresso, e durante dois anos as esperanças da oposição a Trump foram depositadas nela.

Enquanto isso, Trump concedia cortes de impostos obscenos a bilionários, revogava proteções ambientais, loteava o ministério entre trapaceiros representantes das formas mais predatórias de capital, estimulava o racismo e bloqueava a entrada de muçulmanos no país. Mas o importante, para boa parte da imprensa e para a oposição democrata, era o jamais demonstrado conluio de Trump com o Kremlin.

A investigação de Mueller terminou em abril de 2019, concluindo não ter indícios de qualquer conluio para influenciar a eleição. Ao longo de 448 tediosas páginas, o relatório detalha encontros comerciais normais entre indivíduos de dois países, mas cada um desses fatos passou a ocupar horas de elucubração na TV, em uma metonímia que transformava qualquer contato entre um americano de interesse e um portador de passaporte russo em uma possível conspiração do Kremlin. Nascia um verdadeiro macarthismo, que tornou infernal a vida de qualquer cidadão que morasse nos EUA com passaporte russo.

Os então já temidos bots russos se resumiam a uma fazenda de trolls de São Petersburgo que, ao longo de três anos, investiu US$ 100 mil, dinheiro de pinga até mesmo para uma eleição de vereador nos EUA. Desses US$ 100 mil, apenas US$ 46 mil foram gastos antes da eleições de 2016. Desses, uma grande parte nem sequer mencionava Trump ou Clinton. A operação era clickbait básico de internet: reunir perfis de uma determinada demografia e depois vender o acesso a eles.

Esse é o único fundamento da paranoia que produziu algumas catástrofes jornalísticas, como a história de que a Rússia teria derrubado a eletricidade de Vermont, da qual o Washington Post foi obrigado a se retratar (não sem que ela fosse repetida pelo governador do estado e por um produtor sênior da MSNBC) ou o hilário programa de Rachel Maddow sobre o perigo de que os russos desligassem o aquecimento de Dakota do Norte no inverno.

Esse foi nosso pão com manteiga na TV durante cinco anos. E agora nos assustamos com o fato de que grande parte dos americanos não acredita nas informações corretas sobre as vacinas veiculadas na TV e nos jornais?

Livros inteiros, como o de Luke Harding, "Collusion: Secret Meetings, Dirty Money, and How Russia Helped Donald Trump Win", foram escritos com base em associações livres entre encontros reais que nada significam (como um café entre um advogado americano e um russo) e uma montanha de boatos sobre o Kremlin atribuídos a fontes anônimas. O jornalista Aaron Maté, a quem devemos um meticuloso trabalho de desmascaramento do Russiagate, submeteu Harding ao maior baile argumentativo que já vi um autor levar sobre seu próprio livro.

O hoax das "armas de destruição em massa do Iraque", no qual a imprensa americana embarcou com entusiasmo, contribuiu para matar mais gente, mas em dano à credibilidade do jornalismo, o Russiagate não tem paralelo.

No caso das inexistentes armas de destruição em massa do Iraque, a imprensa jamais fez um balanço de suas responsabilidades. Viu-se, no máximo, o sacrifício de alguns bodes expiatórios, como Judith Miller, forçada a demitir-se do New York Times.

No Russiagate, foram cinco anos de ilações não fundamentadas, mas o hoax se sustenta graças a um raciocínio que continuamente move as traves da conversa. Não se confirmou o conluio entre Trump e o Kremlin, mas quando se demonstra isso, a resposta não costuma ser a correção da afirmativa errada, mas a afirmação de que o Kremlin deve ter influído no resultado, mesmo sem conluio com Trump.

Quando se demonstra que tampouco há indícios disso, a resposta costuma ser que, se não influíram, devem ter tentado. Ao se deparar com a demonstração de que também não se encontraram indícios de tais tentativas, não é comum ouvir que "não tentaram, mas bem que gostariam de ter tentado".

Os danos causados pelo Russiagate são incalculáveis. Não se trata aqui, é claro, de uma vindicação de Trump, presidente que causou vários outros danos. Trata-se justamente de perceber que o Russiagate foi a grande fonte de vitórias políticas de Trump e uma das razões pelas quais ele permanece forte para 2024. A cada ilação descartada, Trump reforçava seus laços com a base aos gritos de "fake news!".

A credibilidade da imprensa sofreu um golpe sem paralelo. A política progressista dominante, que antes via as agências de inteligência com saudável suspeita, passou a tê-las como aliadas, fontes e árbitros confiáveis da segurança nacional. Disseminou-se o recurso ao tráfico de boatos com fontes anônimas.

Na universidade, professores e alunos com impecáveis credenciais de esquerda foram estigmatizados como trumpistas ao manifestar ceticismo ante o Russiagate. Na imprensa, jornalistas em início de carreira relataram a pressão para alinhar-se com a narrativa dominante. Ao cabo de cinco anos, estava consolidado o processo de realinhamento do Partido Democrata como o mais confiável para as agências FBI, CIA e NSA.

Segundo pesquisa Gallup, 34% dos americanos declaram não ter nenhuma e outros 29% declaram ter não muita confiança na imprensa. A cisão segundo a preferência partidária é a maior da história: 68% dos eleitores democratas e apenas 11% dos republicanos declaram confiar na imprensa.

Seriam os eleitores republicanos mais propensos a acreditar em fake news? Fica difícil defender essa tese à luz do Russiagate, uma imensa fábrica de fake news estimulada pela grande imprensa, lideranças do Partido Democrata e aparatos de inteligência do Estado.

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