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Laura Erber

Obra artesanal de Armando Freitas Filho revela poeta que não desiste de cantar o amor

Em edição com tiragem de 20 exemplares, autor exalta o prazer de viver juntos por quatro décadas com sua esposa

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Laura Erber

Escritora, editora e coordenadora do programa de pós-doutorado do Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden

[RESUMO] Poeta consagrado, Armando Freitas Filho lançou no ano passado "Cristina", edição artesanal de apenas 20 exemplares destinada aos amigos. Nos versos líricos e sensualmente amorosos com que celebra sua mulher, ele expõe a necessidade vital da poesia como expressão da vida que guia suas seis décadas de escrita.

A lenda atribui ao deus Hermes a invenção da lira, instrumento de cordas que o aedo acariciava com os dedos para acompanhar seu canto. Por analogia, criamos a imagem do poeta que acaricia as cordas da língua para fazer ressoar seu verso.

A lírica seria assim um tipo de arte vibratória, e, diferente de uma forma literária egocêntrica ou "eucentrada", o gênero tem sido mais bem descrito por sua capacidade de captar e relançar os afetos que explodem a forma do eu. Lírico é o poema que desarruma a cena pronominal, revelando o trajeto arriscado e incerto da palavra amorosa rumo a um "tu" ou "você" saudosamente convocado ou eroticamente desejado.

O poeta Armando Freitas Filho em sua casa, na Urca, Rio de Janeiro - Daniel Marenco - 13.mai.13/Folhapress

É mesmo na clave lírica que melhor se percorre "Cristina", plaquete de 21 poemas de Armando Freitas Filho, publicada em 2021, em tiragem pequeníssima, só 20 exemplares. O conjunto mostra um poeta assombrado por sua própria finitude, mas que não desiste de cantar o amor, com nome próprio.

Armando Freitas Filho diz que a plaquete começou a ser escrita "quando a verdadeira Cristina apareceu na praia perfeitamente". No livro, ela surge mesmo deslumbrante, da primeira vez em um "miniminibiquini", com a trança só de um lado que evoca a serpente do Paraíso, encantando o poeta para quem "sem perigo o amor não presta". O nome próprio é o da esposa, Cristina Barreto. "Fui fazendo os poemas ao longo desses 42 anos que estamos juntos", revela.

O livro se abre com céu azul absoluto e termina com nuvens perfeitas. Esse pequeno objeto amoroso circulou entre as poucas pessoas para quem o próprio autor o distribuiu, apresentando poemas que transitam entre o íntimo, o ínfimo e o que não tem fim. O fluxo do viver e a câmara lenta da memória, detalhes que a poesia fixa.

Cristina se multiplica em imagens, é a presença estruturante da casa e com ela quase se confunde, ressurge como A Grande Banhista de Ingres revisitada em um belo poema que a descreve com uma roupa feita de vapor d’água: "Sua pele é meu único luxo".

Ela irrompe em sonho e em pensamento, no lugar de mãe, nas viagens a dois, nas leituras compartilhadas, como tradutora em sentido amplo, como quando lhe transmite a precisão do desenho da frase proustiana, antes para ele opaca. Há doçura e medo, a memória que falha. A mulher é quem cuida do fio, não permite que se parta. Ao mesmo tempo, nada aqui tenta extorquir emoções fáceis dos leitores, nem resvala no fútil exibicionismo.

A imagem da mulher não se fixa em uma só figura, nem na mãe do filho, nem na esposa, nem no objeto do desejo erótico, mostrando uma posição feminina dinâmica, de várias camadas que parecem se mover suavemente. Não é uma idealização ou um alçamento da mulher a um lugar edulcorado.

É uma exaltação nada grandiloquente do prazer de viver juntos, o registro poético de uma proximidade que engendra vontades de fusão, de transfusão, invisíveis pontes entre os corpos. "Me dê só dois palmos do seu sono/ para que eu sonhe com você."

Armando Freitas Filho estreou em 1963 com "Palavra"; seus dois livros seguintes foram editados pelo grupo Práxis; em 2003, reuniu sua obra em "Máquina de Escrever"; e, em 2020, veio o "Arremate", comemorando seus 80 anos.

Perguntado sobre os começos, encontro com a poesia e desejo de escrever seus próprios poemas, ele conta que aprendeu a ler aos 5 anos, "graças a meu pai, que me ensinou por dois caminhos que me abriram a porta: o dicionário e o jornal A Noite".

Mais tarde, já no colégio, "a poesia começou a soprar". Foi quando surgiram as primeiras redações "e, uma vez ou outra, poemas". "Era como um brinquedo de papel." Sua entrada no reinado sem rei da poesia se completa quando, anos mais tarde, conhece os poemas de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond, a quem chama de professores, e aos quais chegou por um disco do selo Festa, dado de presente por seu pai. "Fiquei maravilhado, de pronto."

Tornou-se um poeta "trifásico", como gosta de descrever seu processo: uma primeira etapa à mão, depois à máquina e, nos últimos tempos, finalmente ao computador. Ele acredita que sua poesia não sofreu grandes transformações com a chegada dos meios digitais, "apenas os rascunhos ficaram mais limpos".

Diante de seu percurso literário, cabe sublinhar que o poeta publica há anos por uma das maiores editoras do país, a Companhia das Letras, sem deixar, vez ou outra, de fazer experimentos editoriais paralelos, ora travando parcerias com artistas visuais, ora optando por edições artesanais, destinadas antes aos amigos.

"Cristina" fala de lugares de silêncio e de partilha, a casa, o bairro e as paixões literárias, pequenas comoções diárias, novas e antigas. Combina o verso simples, às vezes sentencioso, a uma necessidade vital da poesia como expressão de vida. Nas primeiras incursões no poema erótico, havia a exteriorização poética do tesão em versos belamente explícitos ou antieufemísticos, como já notara José Guilherme Merquior no prefácio ao livro "À Mão Livre" (1979).

Em "Cristina", vemos a passagem do tom erótico ao íntimo, do intempestivo ao cotidiano. O erotismo aqui, diz ele, vem da vontade e da vida. Não um mundo paralelo ou um fora do mundo, mas intensificação dos quereres. A musa-mulher-companheira-cúmplice é o eixo, e nele a vemos como fonte de escrita e como "beleza lembrada e relembrada em seu circuito ardente", como diria Herberto Helder.

O poeta diz que nunca experimentou epifanias, mas que, "às vezes, a gente consegue sentir certo deslumbramento que surge sem nome expressivo, tal como um sonho". É linda a chance de percorrer o verso sensualmente amoroso de um poeta na casa dos 80. Distante dos incêndios, da urgência e da fome erótica dos começos, aqui tudo é mais reflexivo e fotográfico que performativo.

Aqui a clave é antes meiga, filamentos delicados da verdadeira vida, sem que, por isso, tenha de evitar a "gota de ácido", o desentendimento, um jogo de contrastes necessário, cada um voltando a ser um, em separado, porém sem exclusões. Isso tudo em uma idade sem triunfos, mas que permite colher as delícias da cumplicidade, inclusive a da memória compartilhada.

Armando Freitas Filho matou sua sede inicial na fonte do Ferreira Gullar de "A Luta Corporal" (1954) e na de seus três mosqueteiros: Bandeira, Drummond e Cabral. Entretanto, desde cedo sublinhou os traços que o diferiam de seus mestres formadores.

Avesso à ortodoxia dos modernos, percebeu que, para ele, o poema pode surgir de vários modos, inclusive a galope, na urgência vital que não pode contar com a concentração calma e o tempo lento de quem escreve como quem cata feijão. Um de seus versos célebres avisa: "Escrever […] é rezar com raiva".

Nos anos 1970, Freitas Filho incorporou a liberdade da poesia marginal, embora não totalmente a embocadura. Segundo ele, aquela era uma poesia aberta, desengravatada, capaz de abarcar a intuição febril em uma língua que ia à praia e suava. O caminho para o erotismo era natural.

Em um texto de 2005, ele retratou o instante em que seu time entrava em campo na paisagem da poesia brasileira. Época em que era quase obrigatório se alinhar a este ou àquele projeto ou ideia de poesia.
O diagnóstico que faz daquele momento, sem excluir uma crítica à ortodoxia modernista e à camisa de força do mundo dividido em paideumas, mostra como sua posição era, desde o início, independente e propensa aos trânsitos.

Isso talvez o tenha ajudado a atravessar com menos solavancos a paisagem que se abria, trazendo de volta o sangue e a "suada fantasia". Afirmação de uma poesia em que voltam os afetos, os corpos e sujeitos da escrita.

Sua poesia é igualmente reveladora da mudança na relação entre poesia e imagem, e isso se vê em "Cristina". Freitas Filho com frequência tece imagens a partir do enquadramento fotográfico, mostra que o poeta muitas vezes é um espectador privilegiado do mistério cotidiano, é alguém que, diante do que vê, constrói um olhar com sua palavra.

"Para mim, a poesia e a pintura, desde que eu era bem moço, apareciam juntas no que eu amadoristicamente escrevia. Gosto muito de pintura. Desde cedo tive amigos pintores: Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, por exemplo." Sobre a relação entre as artes, conclui: "Acho que poesia e artes plásticas dão boa liga".

Quando pergunto o que anda lendo, fala de releituras como quem fala de amigos de toda a vida: Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Antonio Candido. O que consegue a poesia que nada mais, nem outra arte, consegue?

"Acho que todas as artes têm as suas matrizes e necessidades. Mas, realmente, a meu ver, a poesia tem algo mais; tem uma proximidade com o leitor ou leitora de surpresa, e os poemas acabam se escrevendo no livro ou fora dele, inventando e libertando suas descobertas. Afinal, nós temos que amar ou desamar quando são escritos."

Freitas Filho conta que ainda hoje "escreve quase diariamente para não deixar dormir suas asas". Faz desse jeito, "mesmo que seja para ficar triste, como quando se planta em uma página e não se completa o que se tentou escrever; mas não se deve desistir desse possível empenho".

Ainda bem, assim temos a sorte de ler mais um livro, feito com peles, tempo e nuvem, e uma voz que, ao se entregar, não teme dizer: "Pois eu sei/ pois eu sou/ esse incêndio aceso adiante/ em seu louvor".

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