Descrição de chapéu
Martim Vasques da Cunha

Vargas Llosa e García Márquez escreveram livros primorosos, mas ignoraram a redenção humana

Ambição de romance total fechou os olhos dos dois autores à dimensão transcendental da vida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[resumo] No celebrado ensaio ‘García Márquez: História de um Deicídio’ (1971), que ganhará em setembro sua primeira edição no Brasil, Mario Vargas Llosa, ao falar do então amigo colombiano, expõe sua ideia utópica de literatura total, espécie de rebelião contra Deus e a substituição da realidade por um universo ficcional que abarcasse todos os aspectos da vida. Com esse propósito, Vargas Llosa e García Márquez escreveram romances primorosos, mas falta a ambos o drama da redenção humana, elemento que faz a arte transcender o cotidiano, avalia crítico.

Quando ainda era amigo de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa conseguiu, com o romance "Conversa no Catedral" (1969), criar uma síntese das três correntes na literatura mundial que os uniam: a de Gustave Flaubert, a de William Faulkner e a da novela picaresca espanhola (em especial, envolvendo os ciclos de cavalaria "Amadis de Gaula", "Tirant Lo Blanch" e, claro, o "Dom Quixote" de Cervantes).

Assim como García Márquez, Vargas Llosa sempre foi um artista polêmico, tanto em suas atitudes pessoais como nas políticas, mas nunca perdeu o prumo estético quando o assunto é literatura. Os dois foram raros latino-americanos que lidaram com o ofício de contar histórias não como mera profissão e sim como ato de "loucura perpétua", de rebeldia contra a barbárie do mundo.

Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
O colombiano Gabriel García Márquez (à esq.) e o peruano Mario Vargas Llosa nos anos 1960, quando ainda eram amigos - Divulgação/Alfaguara

No caso de Vargas Llosa, "Conversa no Catedral" é sobre a trajetória de dois homens, Santiago Zavalita e Ambrosio, no Peru durante a ditadura do general Manuel Odría (1948-1956). Eles se encontram em um canil onde Santiago vai buscar seu cachorro, o único "filho" que tem com Ana, temerosa em perder o bicho com a epidemia de raiva que assola o país.

Santiago é um jornalista em La Crónica, uma das maiores publicações do país, e logo no primeiro parágrafo faz a pergunta que o romance tentará responder no decorrer de suas quase 600 páginas: "Em que momento o Peru havia se fodido?" (ultimamente, muitas pessoas fazem a mesma indagação sobre o Brasil).

Sentados no bar Catedral (daí o título do romance), Santiago e Ambrosio repassam suas vidas, contando como seus caminhos particulares se cruzaram com a história do país.

A grande ousadia de Vargas Llosa é a maneira como ele conta o seu enredo. Inspirando-se no narrador objetivo e onipresente de Gustave Flaubert, cuja única função é descrever e narrar os acontecimentos, e nunca julgá-los, fragmentando-os em diferentes perspectivas ou pontos de vista, o peruano faz aquilo que foi seu objetivo principal desde os tempos em que publicou seu primeiro romance, o premiado e perturbador "A Cidade e os Cachorros" (1963): a literatura total.

Esse tipo de literatura parece ser uma utopia, mas foi concretizada de fato com Balzac, com o próprio Flaubert, Tolstói, Dostoiévski, James Joyce, Robert Musil, William Faulkner, Marcel Proust, Hermann Broch e Thomas Mann. Todos eles tiveram como objetivo a construção artística e rigorosa de uma realidade completa e autônoma que refletisse o nosso cotidiano, retratado em um amplo panorama, desde os aspectos sociais-econômicos até os privados, incluindo aí os psicológicos e os existenciais.

Vargas Llosa bem definiu essa ideia no livro "García Márquez: História de um Deicídio" (1971), sua tese de doutorado em homenagem ao então amigo colombiano, que ganhará em setembro sua primeira edição no Brasil, pela Record.

"Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra essa criação de Deus que é o real. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, da sua substituição por uma realidade ficcional criada pelo romancista", escreveu o peruano.

Nesse sentido, "Conversa no Catedral" é um primoroso ato de revolta. Vargas Llosa conseguiria essa proeza mais duas vezes, com "A Guerra do Fim do Mundo" (1981), sobre a revolta de Canudos, e "A Festa do Bode" (2000), a respeito do regime ditatorial de Rafael Trujillo na República Dominicana.

Os três romances fazem um painel completo não só de uma era, mas das pessoas que a construíram. Os aspectos coletivos e individuais se correlacionam em ritmo simultâneo, às vezes transformando-se em algo indistinguível, como na parte que envolve um dos personagens centrais de "Conversa", Cayo Bermúdez, o braço direito do governo Odría.

A mudança quase vertiginosa dos pontos de vista é influência direta de Faulkner, porém nunca descamba para o fluxo de consciência de James Joyce, pois não interessa a Vargas Llosa uma procura pela unidade que possa haver nas psiques fragmentadas dos cidadãos peruanos. Como um Flaubert latino, ele busca o que se passa na cabeça daquelas pessoas, contanto que o tema dramático permaneça cristalino.

A fascinação de Vargas Llosa pelo autor de "Madame Bovary" (1857) é tamanha que escreveu um livro formidável sobre ele, "A Orgia Perpétua" (1975). O interesse maior dessa análise se deve ao fato mais evidente quando um romancista faz as vezes de crítico literário: ao comentar sobre um outro autor, na verdade discorre sobre si mesmo.

Logo, neste autorretrato, Vargas Llosa revela muito de sua visão de como deve ser um romance. Aí, uma questão se levanta a respeito de seu "ato de rebelião": o romance, segundo Vargas Llosa, exprime a realidade de forma satisfatória, especialmente sendo uma história de deicídio (de contestação de Deus)?

A resposta é um sonoro "não". Apesar de seu talento inigualável, de seu rigor, de sua técnica com a estrutura da narrativa e com as palavras, falta um detalhe tanto na literatura de Vargas Llosa como na de seu ex-colega García Márquez, amizade rompida por questões ideológicas e conjugais: o drama da redenção humana.

Assim como Flaubert, o peruano e o colombiano caem no mesmo erro dos realistas e dos naturalistas que estavam em voga no final do século 19: transformam o espírito em matéria, ou melhor, tornam o mundo invisível, rodeado de mistério, o único que importa, em algo meramente palpável e, pior, refletido em atitudes mesquinhas e abjetas.

O que interessa aos dois romancistas latino-americanos é a decadência do mundo deles, mas ambos são incapazes de saber como superá-la. Essa doença espiritual, chamada por Platão de nosos, tem suas variações nas ideologias socialistas e positivistas, que se fecham de maneira voluntária ao transcendente.

Não à toa, Vargas Llosa e García Márquez são herdeiros desse tipo de pensamento, seja como seu aparente opositor (o liberalismo, no caso do primeiro) ou como seu defensor explícito (o socialismo, no segundo).

Afinal de contas, a visão da literatura como uma orgia perpétua não é lá muito enobrecedora. O que falta na arte moderna como um todo é a virtude na alma dos criadores e dos personagens. Todos são medíocres que desejam nada mais, nada menos que ter vidas pusilânimes.

É o que acontece com Santiago e Ambrosio em "Conversa no Catedral". Ambos divagam sobre suas vidas, relacionando-as com as pessoas que passaram por elas, e mal sabem por que, afinal de contas, se deram mal, esperando apenas, como diz Ambrosio, "a hora de morrer".

Claro que essa sensação de apatia moral que "Conversa" transmite é, paradoxalmente, um dos triunfos estéticos de Vargas Llosa como escritor, mas daí vem outra pergunta: por que não ir para um outro caminho mais difícil, senão mais dolorido, em que se pode atingir uma certa unidade das virtudes? (Isso não deve ser confundido, em hipótese nenhuma, com um moralismo carola).

Essa pergunta jamais será respondida porque falta, nas obras de Vargas Llosa e García Márquez, essa preocupação a respeito do drama da salvação da alma humana. Trata-se de um problema frequente na literatura latino-americana, principalmente a dos anos 1960.

Com exceção de Sábato, Borges e Juan Rulfo, o boom latino-americano sempre esteve muito mais preocupado com inovações formais (Julio Cortázar, com "O Jogo da Amarelinha"), em como conquistar a mocinha da vila usando os mais diversos encantos (García Márquez nas obras-primas "Cem Anos de Solidão" e "O Amor nos Tempos do Cólera") ou com o gigantesco painel social (Carlos Fuentes).

A falta de virtude dos personagens por eles criados, somada à ausência de um questionamento espiritual, criam romances que, independentemente do rigor e do virtuosismo técnicos, perigam virar apenas monumentos prontos a serem devorados pela pátina do tempo.

A arte que não toca o espírito humano, que não remexe em seus abismos, que não transcende a mera realidade torna-se incapaz de vencer a barreira do contemporâneo. É apenas modelo de uma tribo deicida que, por isso mesmo, ficará aprisionada na vida do cotidiano, jamais na vida do eterno.

O fato de Flaubert ser o modelo de um escritor talentoso como Vargas Llosa não significa que isso seja algo inadequado; significa apenas que há outros modelos a serem estudados, e a literatura se forma a partir da síntese deles (um exemplo imediato e contemporâneo que preenche todos esses requisitos vem à mente: o americano Cormac McCarthy).

Antes de tudo, é imprescindível ter aquele toque áspero que traz à história um certo ar de instabilidade, de procura e aceitação do mistério que só pode ser resolvido de uma única forma aos olhos do leitor: "Acredito porque é absurdo, mas justamente porque é absurdo que é real".

Dessa forma, a loucura perpétua de Vargas Llosa é uma espécie de caos planejado, que deveria ser a função da literatura, mas falta a esse mesmo caos a ordem que anima a vida do próprio narrador. Falta nada menos que o sopro do vento.

Isso não significa, é óbvio, que possamos menosprezar Vargas Llosa. Sua postura como escritor e intelectual é de uma dignidade exemplar, e sua obra deve ser estudada por seu confronto primoroso com a tirania que sempre tenta destruir a liberdade individual.

Se o Brasil tivesse dez pensadores como ele, a nossa intelligentsia seria muito mais saudável. Porém, sempre haverá a falta daquilo que nos mantém vivos além do social, além da mera vida histórica. É essa ausência que nos provoca atualmente, no Brasil, a fazer a mesma pergunta que Santiago Zavalita proferiu sobre o seu tão desprezado Peru.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.