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Eduardo José Grin e Marco Antonio Carvalho Teixeira

Armas unem Bolsonaro e extrema esquerda contra democracia

Dizer que armar população garante liberdade revela descrença na capacidade de o Estado solucionar conflitos de forma pacífica

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Eduardo José Grin

Professor do departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

Marco Antonio Carvalho Teixeira

Cientista político, é doutor em ciências sociais pela PUC-SP e professor da FGV Eaesp

[RESUMO] Distantes em quase tudo, bolsonarismo e partidos de extrema esquerda, como PCO e PSTU, compartilham a crença de que acesso a armas e munição é vital para a liberdade da população. Tal raciocínio alimenta a falsa ideia de que as instituições democráticas não são capazes de solucionar de forma pacífica seus conflitos ou até mesmo atentam contra os direitos dos cidadãos, o que pode levar a um cenário político tenebroso.

Norberto Bobbio enfatizava que extremistas de direita e de esquerda têm em comum a antidemocracia, o que os aproxima, a despeito de inúmeras diferenças, no alinhamento político.

A questão da posse das armas se aplica muito bem como exemplo que faz convergirem as propostas do bolsonarismo às de siglas políticas da extrema esquerda brasileira, como o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).

O presidente Jair Bolsonaro (PL) tem atacado todas as instituições políticas da democracia no Brasil; por sua vez, extrema esquerda também as condena, por considerar que representam os interesses da burguesia que explora a classe trabalhadora. Algo próximo ao que Marx escreveu no longínquo 1848 em "O Manifesto Comunista".

O Jair Bolsonaro comenta sua pontaria em um clube de tiro - Facebook

Para o bolsonarismo, a liberdade, um valor sempre lembrado em suas falas, seria garantida pelo povo armado contra o autoritarismo e a ditadura. Essa visão liberticida entende que acima das leis e das autoridades constituídas pelos Poderes da República reside um "direito de rebelião". John Locke, ideólogo do liberalismo político no século 17, já dissera que, contra a usurpação do poder por governantes tiranos, essa seria uma solução legítima.

Claro, o mundo naquela época transitava do absolutismo para as revoluções liberais que desembocaram na democracia, regime político prevalente no Ocidente. A violência política, forma mais comum de resolução dos conflitos antes da atual democracia liberal, foi substituída por regras a priori e eleições que, periodicamente, selecionam governantes.

Na mentalidade bolsonarista, contudo, as regras que conformam o Estado de Direito não são suficientes para garantir liberdade individual como valor inegociável. Daí que armas de fogo passam a ser consideradas não apenas instrumentos de segurança, mas sobretudo pilar para a defesa da democracia e da soberania nacional. Cidadãos armados, nessa visão, podem se opor ao abuso de poder do Estado.

Trata-se de um modo engenhoso de enfatizar que as instituições do Estado democrático ocupam um papel menos relevante para a manutenção da ordem e da paz na sociedade.

Ocorre que as democracias evoluíram para impedir que escravismo e outras formas de degradação da vida humana seguissem existindo. Defender o uso de armas como recurso para a garantia da liberdade poderia fazer sentido no estado de natureza hobbesiano, o que inclusive se solucionava com o Leviatã garantindo a vida dos súditos, não em uma democracia liberal moderna.

No discurso dos partidos de extrema esquerda, o armamento da população também é considerado uma forma de defesa contra o Estado burguês opressor que se vale das forças de segurança e outros métodos de repressão (pistoleiros, milicianos e paramilitares) para cercear liberdades e direitos de trabalhadores e camponeses. A conclusão lógica é que o direito de defesa pela posse de armas se impõe diante da truculência estatal.

Em especial, comitês de autodefesa nas cidades, sobretudo nas periferias onde vive a população mais pobre, e milícias camponesas são tidos como essenciais para se opor à violência física perpetrada pelas classes dominantes. O povo precisa de liberdade para se armar.

Para a extrema esquerda, não há mediação pacífica que garanta soluções diante da máquina de guerra dos inimigos do povo que controlam o Estado. Se a democracia é o regime pelo povo, do povo e para o povo, o Estado não pode seguir com o monopólio das armas. O PCO declara que a única democracia possível será construída a partir do fuzil apoiado no ombro de cada trabalhador.

Em consequência, a população que adquire armas precisa ser treinada —nos termos do PCO, o direito ao armamento amplo, geral e irrestrito, para que o povo possa combater a opressão imposta pela burguesia.

Por mais paradoxal que seja, os Estados Unidos, bastião do imperialismo capitalista, são tomados como exemplo pela extrema esquerda. Eis aí outro ponto de contato com o bolsonarismo, que também enxerga nos EUA um modelo nessa questão.

Como se vê, os extremos se tocam. A defesa das armas caminha junto com a desconfiança, ou mesmo com a condenação, das formas pacíficas de solução de conflitos nas democracias.

Os verdadeiros inimigos da liberdade estão mais próximos entre si do que a vã consciência poderia supor. Talvez isso não devesse causar tanto espanto, pois a subversão da democracia é o que os une.

Por fim, na questão do porte de armas, um tópico separa, mesmo que pontualmente, PSTU e PCO do bolsonarismo: os chamados comitês de autodefesa.

Para os dois partidos, o uso das armas se justifica como ação coletiva contra a dominação burguesa. Para o bolsonarismo, aparece como estratégia de combate a ideias dissonantes, pessoas e instituições, algo visto nos casos trágicos de assassinato em Foz do Iguaçu (PR) e no disparo em um templo religioso em Goiânia (GO), ambos os casos por intolerância política.

Dito isso, a decisão do ministro do STF Edson Fachin de suspender decretos de Bolsonaro que facilitavam o acesso a armas e munições, sob o argumento de aumento do risco de violência na campanha eleitoral, é um reconhecimento de que tal situação deve ser enfrentada com políticas públicas e ação do Estado.

Ir pelo caminho das armas como estratégia de defesa coletiva ou individual é rasgar o contrato social; da mesma forma, defender o armamento da população como instrumento de garantia das liberdades não apenas minimiza o papel do Estado na segurança protetora, como nos leva de volta à idade das trevas.

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