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Donny Correia

Livro primoroso conta início da exibição de filmes no Brasil

'O Negócio do Filme' resgata a saga dos pioneiros que fomentaram o mercado de distribuição

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Donny Correia

Doutor em estética e história da arte e membro da ABCA e da Abraccine. É autor de seis livros e prepara uma revisão da obra completa de Walter Hugo Khouri

[resumo] Pesquisador meticuloso, Rafael de Luna Freire resgata em livro os primórdios do cinema brasileiro sob um ponto de vista original: a exibição, e não as filmagens. "O Negócio do Filme" conta com riqueza histórica a saga dos pioneiros que fomentaram o mercado de distribuição cinematográfica no país, descreve os primeiros sucessos de nosso circuito, refuta que o exibidor brasileiro tenha sido subserviente ao estrangeiro e explica como a profissionalização das salas abriu espaço para a produção de filmes.

A falta de uma indústria cinematográfica sólida no Brasil não é um problema recente. Nas últimas décadas, está relacionada ao fim da Embrafilme, no governo Collor, e a completa acefalia das instâncias governamentais no governo Bolsonaro.

As instalações da distribuidora cinematográfica Marc Ferrez & Filhos e um de seus funcionários no início de suas atividades, em 1907.
As instalações da distribuidora cinematográfica Marc Ferrez & Filhos e um de seus funcionários no início de suas atividades, em 1907 - Fundo Família Ferrez/Arquivo Nacional

O quadro geral de dificuldades, contudo, é tão antigo quanto o próprio centenário cinema: irregularidade na produção e na distribuição, preconceito do brasileiro com suas próprias produções, realização de filmes contingenciais (caso das comédias musicais e, depois, das comédias eróticas), obras apressadas e mal-executadas, por exemplo. Um enredo difícil de ser destrinchado até mesmo pelos mais abnegados pesquisadores.

Um deles é o professor do departamento de cinema e vídeo da UFF (Universidade Federal Fluminense) Rafael de Luna Freire. Com longa experiência na preservação do acervo fílmico do MAM-RJ, Freire, em verdade, é um arqueólogo do cinema brasileiro, e sua atuação está para além dos velhos clichês que ainda buscam assunto no repisado lugar-comum, que motiva pseudo-historiadores a fazerem crescer a pilha de livros sobre o "mais do mesmo".

Ele já havia realizado um valioso resgate do cinema de Gerson Tavares (1926-2021), pioneiro que abriu caminhos para os jovens cinemanovistas, mas foi defenestrado desse movimento pouco depois.

O mais recente trabalho do pesquisador é o livro "O Negócio do Filme – A Distribuição Cinematográfica no Brasil, 1907-1915" (Cinemateca MAM RIO), em que apresenta um exaustivo escrutínio dos pontos mais obscuros do início do mercado cinematográfico no Brasil, começando pelo advento do filme como diversão pública três ou quatro anos antes da consagrada filmagem da baía de Guanabara por Alfonso Segreto, em 1898. Imagens que, aliás, assim como 90% do que foi produzido no período, se perderam.

No entanto, tão interessante quanto esse marco canonizado nos tratados historiográficos sobre o assunto é a presença do sócio de Segreto no negócio das imagens em movimento, o carioca José Roberto Cunha Sales, autoproclamado advogado, médico e ilusionista, que teria, em 1897, reclamado para si a "invenção do cinema" no Brasil.

Pesquisas anteriores do cineasta Carlos Adriano, contudo, apontam que restam apenas 24 fotogramas (cerca de 1 segundo de cena) das filmagens de Sales de uma onda arrebentando contra um píer que poderia estar em qualquer local do mundo além do Rio de Janeiro.

No livro de Freire, o mais completo no escopo a que se propõe recortar, sabemos dos ancestrais da arte cinematográfica que desenvolveram suas carreiras no Brasil, muito antes de haver no país uma produção local minimamente consistente. A novidade é propor que olhemos para a origem a partir das primeiras exibições, e não das primeiras filmagens.

Esta mudança de foco corrige um erro crônico já apontado por Jean-Claude Bernardet há muito tempo: o de que a trôpega produção nacional está intimamente ligada a uma história que sempre foi revisitada a partir da produção, nunca da exibição. Segundo Bernardet, isso contribuiu para que as gerações seguintes a Segreto se preocupassem apenas com a realização e quase nunca com a distribuição sólida de suas obras.

O pressuposto ressoa em "O Negócio do Filme", já que o trabalho de Freire corrige a noção de que o loteamento precoce do mercado cinematográfico nacional por parte dos distribuidores internacionais transferiu a atenção historiográfica para aquilo que de fato era fruto da produção brasileira: a filmagem, nunca a exibição em larga escala.

Em sua pesquisa, salta-nos o fato de que os primeiros lanternistas (operadores de aparatos óticos como a lanterna mágica) e prestidigitadores, que também eram empresários do ramo de atrações em feiras, exposições, shows de variedades e outras ações populares, embora exibissem fitas da Europa e dos Estados Unidos, foram os reais responsáveis por abrir espaço para filmagens no Brasil.

É o caso de Francisco Pereira de Lyra, citado como precursor das exibições de filmes internacionais em Pernambuco, estado em que surgiria, duas décadas depois, um dos mais importantes ciclos de produção regional no país, com clássicos como "Aitaré da Praia" (1925) e "A Filha do Advogado" (1926).

Freire também resgata a presença de Marc Ferrez (1843-1923) como responsável pela distribuição de filmes da Pathé Frères no Brasil, possibilitando a formação de um ecossistema em torno de salas fixas de exibição, profissionalizando o negócio cinematográfico e abrindo espaço para a produção, em vista da crescente demanda.

É a partir de Ferrez e de sua boa relação com o francês Charles Pathé que observamos os primeiros movimentos rumo a uma sedimentação do sistema de distribuição, que eventualmente criaria a possibilidade de uma produção nacional mais ou menos contínua.

No Rio de Janeiro, logo surgiriam filmes que exploravam a crônica policial local e obras adornadas com a presença de atores e cantores por trás da tela de exibição, dando às imagens o incremento do som ao vivo durante a exibição. Eram os chamados "filmes cantantes" —deste segmento, destaca-se "Paz e Amor" (1910), um verdadeiro fenômeno de bilheteria para as proporções daquela época, assinado por Antonio Simples, pseudônimo de José do Patrocínio Filho.

A pesquisa de Rafael de Luna Freire lança ainda luz sobre um detalhe histórico dos mais importantes, mas que havia sido ignorado até agora. Um desses cantantes, "O Rio por um Óculo", exibido em outubro de 1910, composto de vários segmentos que comentavam alguns hábitos da sociedade carioca, como se fosse uma revista de variedades, tinha a autoria de ninguém menos que o escritor Lima Barreto (1881-1922).

O que hoje se apresenta como um achado arqueológico nas cavernas da história de nosso cinema, não era algo tão incomum à época: "Apesar dessa autoria aparentemente surpreendente, as explicações para isso são perfeitamente plausíveis. Depois da filmagem de montagens teatrais [...], a realização de 'Paz e Amor' deu início à prática da encomenda de um texto original para ser especialmente encenado diante das câmeras", comenta o pesquisador ao apontar que o cinema, visto como rival do teatro num primeiro momento, passou a ser uma alternativa profissional a músicos, atores e, logo em seguida, escritores.

Contra a velha impressão de que o mercado exibidor brasileiro se colocava de forma passiva aos interesses internacionais, "O Negócio do Filme" apresenta um meticuloso balanço da trajetória da CCB (Companhia Cinematográfica Brasileira), surgida em 1911 como uma espécie de joint venture dos empresários Antonio Gadotti e Francisco Serrador, que logo passou a adquirir a propriedade de cinemas em vários estados do país, além de incorporar outras distribuidoras, como a de Marc Ferrez, inclusive.

A intenção da CCB era eliminar as instâncias intermediárias na aquisição e distribuição de filmes, agora não só das hegemônicas empresas francesas Pathé e Gaumont, mas também das norte-americanas Vitagraph e Edison Studios, bem como a dinamarquesa Nordisk e algumas empresas da Alemanha e da Inglaterra.

Era inevitável o crescimento do cinema mundial como forma popular e respeitada de arte ao longo da década de 1910, e a CCB via na incorporação de empresas menores uma maneira de controlar o mercado no Brasil.

Este "truste" ainda passaria por diversas configurações, e o hábito cinematográfico brasileiro seria amplamente afetado pelos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial, quando a predominância de uma cultura afrancesada foi irreversivelmente atenuada, uma vez que os Estados Unidos logo viram a possibilidade de penetração cultural para além de seu território a partir da estagnação europeia, exaurida pelos conflitos bélicos.

O cinema dos EUA já era uma forma incontestável de "soft power" (muito antes da existência do termo como realidade sociopolítica) por volta de 1915, e sua maciça entrada em nossos hábitos favoreceria o negócio da distribuição, mas ainda representaria grandes entraves na produção e exibição de filmes nacionais, que circulariam nas brechas, à custa de muito empenho e heroísmo, assunto muito convidativo a outros pesquisadores com igual comprometimento que marca esta obra publicada pela Cinemateca do MAM.

O Negócio do Filme: A Distribuição Cinematográfica no Brasil, 1907–1915

  • Preço R$ 50 (448 págs.)
  • Autor Rafael de Luna Freire
  • Editora Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
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