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Odilon Caldeira Neto e David Magalhães

Chamar Putin e Ucrânia de nazistas é erro nocivo que não explica a guerra

Mais que olhar o presente pela chave do nazismo, é preciso considerar as novas faces da extrema direita

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Odilon Caldeira Neto

Professor de história da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autor, com Leandro Pereira Gonçalves, do livro "O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao Neointegralismo", publicado em 2020 pela FGV Editora. É coordenador do Observatório da Extrema Direita

David Magalhães

Professor de relações internacionais na PUC-SP e na Faap. É coordenador do Observatório da Extrema Direita

[resumo] Associar Putin ou a Ucrânia ao nazismo é argumentação equivocada e nociva que banaliza uma ideologia nefasta, simplifica as novas faces da extrema direita global e pouco explica a complexidade de um conflito que incorpora desde agendas geopolíticas mais recentes até reivindicações centenárias.

O discurso de Vladimir Putin transmitido em 24 de fevereiro, ato inaugural da ofensiva da Rússia contra a Ucrânia, trouxe um forte apelo ao contexto da Segunda Guerra Mundial e à "era dos extremos". Entre as tantas alegações apresentadas pelo presidente russo para iniciar a guerra, chamou a atenção o propósito de "desnazificação" da Ucrânia.

Em sentido contrário, a seguir o governo ucraniano intensificou, por meio das redes sociais, os discursos de associação entre Putin e Adolf Hitler. Os dois argumentos convergem para a banalização do nazismo, assim como deixam nítida a necessidade de olhar para essa conjuntura por meio de antigas e novas faces da extrema direita.

Manifestante segura cartaz com o retrato do presidente russo Vladimir Putin e a inscrição "Novo Hitler" em manifestação contra a invasão da Ucrânia pela Rússia, em Praga, na República Tcheca - Michal Cizek - 27.fev.22/AFP

O fenômeno da banalização do nazismo e do Holocausto é duplamente equivocado e nocivo. Em primeiro lugar, esse discurso tem o potencial de esvaziamento da perniciosidade do nazismo. Se questões tão corriqueiras, como a vacinação, ou complexas, como a atual crise geopolítica, são imediatamente associadas ao nazismo, este deixa de ser uma expressão política e histórica, tornando-se apenas um adjetivo de desqualificação.

Logo, surgem proposições absurdas, como a suposta legitimidade da organização de um partido nazista, assim como críticas à efetiva dinâmica de desnazificação praticada pela Alemanha no pós-guerra.

Em segundo lugar, esse debate simplifica o terreno da extrema direita global apenas em torno de supostos nazistas versus antinazistas. O extremismo de direita e o populismo da direita radical são fenômenos em franca expansão e diversificação desde a segunda metade do século 20. Isso significa que a relação entre as extremas direitas e o conflito entre Ucrânia e Rússia trazem aportes e inserções das novas e velhas facetas da direita radical, mas não exclusivamente nazista.

No caso ucraniano, quando observamos a partir de uma perspectiva de curto prazo, a associação com o nazismo ganha relevância entre 2013 e 2014. Isto é, no contexto em que o governo de Viktor Yanukovich anunciou que havia suspendido os preparativos para a assinatura do Acordo de Associação e Livre Comércio Ucrânia-União Europeia (UE), cedendo às pressões de Vladimir Putin.

Em Kiev, capital ucraniana, multidões se reuniram para manifestar a insatisfação com a ingerência russa e pedir a deposição de Yanukovich, em uma jornada de protestos que ficou conhecida como Euromaidan.

Em um ambiente que exalava um radical sentimento anti-Rússia, diversas organizações extremistas de direita, que até então operavam subterraneamente na Ucrânia, saíram à luz do dia, ganhando proeminência nos atos violentos contra o governo de Yanukovich.

A decisão de Putin de anexar a Crimeia e apoiar separatistas russos em Donbass (lesta da Ucrânia) criou o pretexto conveniente para que grupos extremistas, que faziam nítidas apropriações do nazismo, se organizassem militarmente. O caso do Batalhão Azov salta aos olhos. A organização, nascida de "ultras" nacionalistas brancos, utilizava em sua insígnia referência ao batalhão nazista Das Reich der Schutzstaffel (SS), e é liderada por Andriy Biletsky, chefe da Assembleia Nacional-Social.

O Batalhão Azov foi incorporado, em 2014, pelo Ministério do Interior à Guarda Nacional ucraniana para combater os separatistas russos. O abrigo institucional de uma sabida organização neonazista reforça a ideia de que a extrema direita atua como linha auxiliar do governo ucraniano.

Outros movimentos, como o Pravyy Sektor (Setor da Direita), com ambições institucionais mais estruturadas, incorporaram em seus quadros guerrilheiros neonazistas, mas buscaram nortear o discurso político a partir de bandeiras temáticas como o anticomunismo e o apelo religioso. Proposição similar foi trazida por partidos como o Svoboda.

Em geral, o acirramento do campo nacionalista e o discurso chauvinista proporcionaram um espaço para a interlocução e penetração de organizações e grupelhos neonazistas na política ucraniana, especialmente nas zonas de conflito. Contudo, não significou um processo de "nazificação" do país.

É sabido que o governo de Petro Poroshenko, que assumiu o poder logo após a deposição de Yanukovich, deu espaço a lideranças da extrema direita ucraniana. Da mesma forma, o ministro do Interior, Arsen Avakov, não fazia questão de dissimular seus vínculos com o Batalhão Azov. No entanto, sabe-se que os membros da extrema direita não exerceram poder de decisão a ponto de caracterizar o governo como neonazista.

Outro argumento que sustenta essa hipótese é a eleição do presidente Volodimir Zelenski, de ascendência judaica, que construiu uma campanha eleitoral especialmente a partir do discurso antipolítica, moralizante e contrário à corrupção, bandeiras comuns a outras lideranças do populismo de direita radical ao redor do globo.

É necessário considerar, assim, que a extrema direita é um fenômeno efetivamente global, de modo que suas ações e articulações não são monopólio do cotidiano político ucraniano. Inclusive, ela pode se orientar tanto em premissas pró-ocidentais quanto pró-Rússia.

A Rússia de Vladimir Putin, sem dúvida, tem sido um ambiente fértil para a organização de grupos de extrema direita desde o fim da União Soviética. Intelectuais como Eduard Limonov e o extinto Partido Nacional Bolchevique buscavam construir uma associação entre modelos totalitários e a construção de uma faceta "pop" ao neofascismo, mas a atividade de grupos neofascistas e neonazistas não alcançou uma efetiva proximidade ao Kremlin.

Nos últimos anos, Putin tem sido constantemente admirado por expoentes do populismo de direita, como Trump e Bolsonaro. Essas afinidades ocorrem principalmente por suas posições de reação a pautas de feministas e de grupos minoritários.

Além da agenda de costumes e valores, a aproximação de Putin ao campo global da extrema direita passa por questões religiosas e geopolíticas, por vezes orbitando o núcleo de ideólogos como Aleksandr Dugin e sua quarta teoria política, que buscam subsidiar uma ideia e cosmovisão de uma Rússia imperial, situada no eixo eurasiano e remetendo às experiências czaristas e stalinistas.

Seja a partir das raízes do pensamento e da prática política, mas também em relação às ambições, a associação entre Putin e Hitler é tão frágil quanto equivocada, uma vez que o presidente russo incorpora desde elementos do tradicionalismo até estratégias e feições do populismo de direita para a construção de seu modelo autoritário.

Assim, a relação de "desnazificação", "luta contra um líder nazista" ou mesmo a disputa contra um "lado de extrema direita" pouco explica a complexidade de um conflito que incorpora desde agendas geopolíticas mais recentes até reivindicações centenárias em torno de nacionalismos e imperialismo.

Esse esforço de associação entre opositores políticos e expressões do nazismo e do fascismo não é uma novidade no contexto das tensões entre Ucrânia e Rússia. Na realidade, não é exclusividade nem sequer dos conflitos do Leste Europeu, mas sim um fenômeno mais amplo, global e complexo.

Uma consolidada literatura acadêmica observa que o uso do termo fascista como adjetivo de desqualificação política é de livre trânsito e associação ao longo da história, inclusive nos variados espectros políticos.

No âmbito da Internacional Comunista, por exemplo, lideranças como Stálin retratavam a social-democracia como irmã gêmea do fascismo, caracterizando-a como "social-fascismo". Nos últimos anos, setores conservadores e reacionários produzem um esforço na tentativa de associação do fascismo (e nazismo) a qualquer traço de dirigismo estatal na economia. Mais recentemente, grupos negacionistas vêm vilipendiando a memória de milhões de vítimas, relacionando a política de vacinação contra a Covid-19 ao Holocausto.

O que é colocado em primeiro plano, sem dúvida, são os usos políticos do passado. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o nazismo é, merecidamente, alçado à categoria de mal absoluto, inclusive por características como a ditadura, o imperialismo e o racismo. Por outro lado, tachar algo ou alguém de nazista (ou fascista) passa a ser um campo permeado por instrumentalizações políticas e morais.

Nesse embate politizado na arena internacional, à medida que grupos políticos tomam o nazismo por um viés que insiste em tonalidades exclusivamente moralizantes, são deixados de lado debates caros, tais como a centralidade do antissemitismo, suas estruturas e mecanismos de poder, o seu imaginário político, o conspiracionismo, a coerção, sua construção social, assim como a relação da estrutura de extermínio com a modernidade.

Mais que olhar o presente a partir da chave interpretativa, e confusa, do nazismo, é necessário considerar quais esforços a extrema direita global projeta no conflito, inclusive com participação brasileira, seja por meio da política externa de Jair Bolsonaro ou pela ação de outros grupos interessados na tese de "ucranização" brasileira.

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