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Sri Prem Baba

Prem Baba: nada é tão assustador quanto a cultura do cancelamento

Guru espiritual acusado por discípulas diz que nunca abusou de ninguém e que tribunal das redes leva a perda de diversidade

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Sri Prem Baba

Guru hinduísta. Autor de "Propósito: a Coragem de Ser Quem Somos" e "Amar e Ser Livre: as Bases para uma Nova Sociedade"

[RESUMO] Pouco mais de quatro anos depois de ser acusado de abuso por discípulas, guru afirma que a cultura do cancelamento transforma todos em espadachins da reputação alheia, radicaliza discursos e alimenta o ódio. Sri Prem Baba, que passou os últimos anos recluso, afirma que existe vida depois do cancelamento, defende sua atuação como mestre espiritual e critica o moralismo, que, para ele, pode restringir a liberdade.

História clássica de um linchamento público estimulado por um erro midiático, o caso da Escola Base ganhou no ano passado um documentário corajoso: "Escola Base: um Repórter Enfrenta o Passado".

É um raro acerto de contas com o passado, protagonizado pelo jornalista Valmir Salaro, repórter da TV Globo que revisita a cobertura que fez na época sobre a acusação infundada de abuso de crianças em uma escola de São Paulo. É um bem-vindo exercício de grandeza: da humildade do repórter em reconhecer —ainda que tardiamente— os próprios erros em relação ao perdão oferecido pelas vítimas ao algoz.

O guru brasileiro Sri Prem Baba, em ensaio para entrevista publicada em 2015
O guru Sri Prem Baba em ensaio de 2015 - Karime Xavier - 14.jul.2015/ Folhapress

Quase 30 anos permitem aprendizados, mas também amplificam processos destrutivos. As redes sociais se tornaram espaços em que se coloca para fora aquilo que antes era guardado —sentimentos, desejos e aversões. Algoritmos, manipulações, bases de dados, desinformação e fake news uniram-se à perversa vocação de muitos a exercer aquilo que o escritor Honoré de Balzac (1799-1850) definiu como exclusividade dos jornalistas, profissionais vistos por ele como "espadachins da reputação alheia".

No tribunal das redes, viram todos espadachins da reputação alheia: as pessoas acusam, julgam, condenam e cancelam outras em tempo real. Transferimos o poder de escolha para os algoritmos e para a lógica do cancelamento.

Muito da polarização violenta e dos conflitos do presente se devem a isso, agravados por uma consciência adormecida que vaga por um universo paralelo que imaginamos ser a realidade. Algo que Roberto Crema, psicólogo transpessoal e reitor da Unipaz, chamou de "normose", esse estado de adormecimento da consciência que nos faz acreditar que tudo isso é normal.

Não, não é normal, e sei disso em razão de muitos anos de estudos e experiência própria. Há quatro anos, quando vieram a público acusações contra mim, fui julgado e cancelado no tribunal midiático.

Sou um estudioso dos mistérios da existência. Minha curiosidade me levou a buscar respostas nos mais diferentes caminhos, sem preconceito: ioga, diferentes ramos da psicologia, pathwork, religiões ayahuasqueiras brasileiras, gnosticismo, vedanta.

Se eu sentia a possibilidade de conhecer mais sobre a verdade da vida, lá estava eu. Vi de tudo, mas poucas coisas me pareceram tão assustadoras quanto me ver acuado pela cultura do cancelamento. De uma hora para outra, passei de um mestre espiritual respeitado no Brasil e no mundo para alguém acusado de atrocidades que jamais cometi.

Tudo começou em 30 de agosto de 2018, quando a respeitada jornalista Mônica Bergamo publicou nota informando que discípulas me acusavam de abuso de poder. Referiam-se a um assunto de dez anos antes, quando eu me abrira a um relacionamento com uma aluna e amiga. O relacionamento vivido consensualmente durante dois anos no passado deflagrava ali uma série de questões emocionais que se desdobraram em dores, acusações, ressentimentos e frustrações. Mencionava-se também um outro episódio, um encontro amoroso pontual, ocorrido ainda mais distante no passado.

Assumi meu erro moral de não ter falado na época sobre esse relacionamento, especialmente às pessoas envolvidas diretamente, e pedi desculpas sinceras por isso, pois pude sentir a dor da frustração gerada.

Aqui cabe um parêntese explicativo. Sou um pesquisador da consciência, e um dos pontos que sempre me intrigaram foram sexo e espiritualidade. Fui um pioneiro em contestar ensinamentos tradicionais, esclarecendo muitos pontos incertos, expostos no meu livro "Amar e Ser Livre". Dizer que foi hipocrisia eu ter dito em 2017 em uma entrevista que era celibatário e ter vindo a público afirmar que tive relações sexuais na minha vida em 2008 não descreve o fenômeno.

Então, o que aconteceu de fato? Eu, um buscador de mim mesmo, experienciei aquilo que chamo de transcendência do apego à sexualidade. Tornei-me, sim, um "brahmacharya", termo usado na tradição védica que não é o mesmo que celibatário. Digo que não é o mesmo pois não é movido por um código moral ou por uma repressão, mas por uma transcendência, fruto da dedicação no caminho de autotransformação. Transcender não significa se privar ou rejeitar.

Algumas pessoas não aceitaram o meu erro de dez anos antes, fomentando uma crise de confiança na minha comunidade de alunos. A partir da notícia, uma farsa passou a ser criada e alimentada pela mídia, em uma tentativa obstinada de destruir minha reputação. Sites distorceram o episódio, e alguns chegaram ao absurdo de dizer que eu era um abusador.

Recebi ameaças, alguns me trataram como um personagem fantasioso, até o ápice de um depoimento anônimo mentiroso de uma mulher que virou base para uma reportagem devastadora na revista Época. Assinada por Juliana Dal Piva, hoje uma das grandes jornalistas da nossa imprensa, a matéria foi induzida por fontes cheias de ódio a uma tese-base: o guia espiritual era uma farsa e precisava ter sua reputação ética e moralmente destruída. Minha atual companheira, apesar de não ser uma pessoa pública, também foi difamada com histórias que jamais aconteceram.

Resolvi me recolher e cuidar da minha família e daqueles que seguiram depositando confiança nos meus ensinamentos. Passei por um período de reclusão, recebi muito apoio de amigos e de alunos que não se deixaram levar. Assim como no caso da Escola Base, um ano depois do espetáculo sombrio, a única denúncia de abuso que foi feita contra mim acabou arquivada. Na avaliação da promotora, não havia evidências que a justificassem —e não havia, porque jamais abusei de ninguém.

Mas existe vida após o cancelamento. Aprendi muito sobre este mundo, fortaleci minha fé, amadureci no meu conhecimento sobre a impermanência da vida, o desapego e a forma traiçoeira com que a maldade atua. Vivi um ano na Índia, criei a Djagô Academia do Despertar, onde leciono continuamente para quase 800 alunos em mais de 35 países, e lancei dois novos livros: "Plenitude: a Vida Além do Medo" e "Parivartan: a Transformação para uma Nova Consciência".

Este último trata desse tempo de transição, um processo de transformação que demanda tempo e envolve dor, sofrimento, desconstrução de um jeito de ser para poder criar algo novo. O que antes garantia estabilidade hoje pede por mudanças. Viver nos nossos tempos requer, portanto, que aceitemos as transformações e nos adaptemos ao novo, ao que está nascendo.

A aceitação da impermanência é a chave para não entrarmos em uma crise interna diante dessas transformações. O que veio à tona em 2018 é parte dessa impermanência, e aceitá-la nos ajuda a enfrentar as incertezas desse tempo. Vivi uma grande transformação a partir desse episódio e, em "Parivartan", compartilho minha visão e experiência para trazer conhecimento e ferramentas para quem busca viver em equilíbrio pelos nossos tempos de intensas mudanças.

A cultura do cancelamento é um sintoma desse ambiente cujas fragilidades serão menores quanto maior for nossa percepção a respeito da realidade. Cancelamentos foram o efeito colateral da bem-vinda política de combate à homofobia, ao racismo e ao machismo. Não podem, porém, ser exacerbados, como se viu nos últimos anos, ultrapassando suas fronteiras originais para ser aplicado a opiniões e preferências —inclusive políticas, como ficou evidente nos anos de polarização violenta e ataques a grupos e pessoas que pensam diferente. A radicalização dos extremismos ganhou força mexendo nesses gatilhos, alimentando o ódio e nos desumanizando.

Escolhi o caminho do conhecimento espiritual que revela a verdade e ensino aos meus alunos a seguirem os desígnios dos seus corações, não o que a sociedade diz. Sou porta-voz de mensagens que entram em conflito com o sistema de crenças em que vivemos.

Por exemplo, sou um mestre espiritual e não excluo a sexualidade e o dinheiro como temas importantes de desenvolvimento para meus alunos. Um ser humano que não se realiza na sua sexualidade e que carrega preconceitos com o dinheiro terá dificuldades de se realizar espiritualmente, pois está excluindo áreas importantes da vida humana. Essa é a verdade que descobri ao longo de décadas de estudos, e não posso me render ao moralismo para não ensinar essa verdade libertadora.

Você pode discordar dessa ideia e da própria condição de existência de um mestre espiritual, mas essa discordância ou algum ceticismo com a espiritualidade ou com o pensamento religioso não justificam a remoção do espaço público e, mais ainda, do direito de trabalhar pela realização espiritual de quem acredita nela. Isso está longe de desejar que me vejam, leiam o que escrevo e ouçam o que eu digo acriticamente.

O moralismo e a não aceitação daquilo que não é conhecido são as portas de entrada para julgamentos, que podem tentar restringir a nossa liberdade. Se permitirmos que isso avance, vamos perdendo em diversidade. Assim seguirei, fomentando a aceitação e o respeito aos infinitos caminhos para o divino que existe neste mundo, para que todos os seres sejam felizes e estejam em paz.

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