Com ayahuasca e ioga, festival mistura psicodélicos e rituais neoxamânicos

Equinox, realizado na Bahia, mostra caleidoscópio místico do xamanismo urbano, que atrai pessoas de classe média

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Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] O Festival Equinox, no litoral baiano, oferece uma vitrine colorida de ritos, crenças e psicodélicos enfeixados em um misticismo cosmopolita. O neoxamanismo, ou xamanismo urbano, mescla de rituais ameríndios, africanos e orientais, atrai pessoas de classe média desiludidas com a cultura corporativa e em busca de uma vida melhor, sem culpa ou julgamento.

Lua cheia, 18 de março de 2022, a dois dias do equinócio de outono. A cerimônia do fogo começara ao pôr-do-sol na Matinha, uma casa embrenhada na mata atlântica, em torno de uma fogueira com paus arranjados segundo os pontos cardeais e perante um altar com frutas, velas e imagem de Nossa Senhora.

Duas dezenas de participantes iniciam o ritual, que duraria oito horas, recebendo da curandeira mexicana um graveto e um fio de lã vermelha, ou mais de um, se necessário. Dão nele(s) um nó para cada pessoa com quem já tiveram relações sexuais, enrolam no pauzinho e, um por um, circulam a fogueira no sentido anti-horário para jogar o objeto nas chamas.

Pessoas sentadas ao redor de círculo de velas acesas
Participantes durante ritual no Festival Equinox - Marcelo Leite/Folhapress

Após muitos rezos (orações), cantos, discursos e lágrimas, um rapaz se ajoelha diante do fogo e pede permissão para compartilhar algo pessoal. Crispa as mãos abaixo do umbigo e fala do aperto que o aflige. Sua manifestação entra em um crescendo: tremores, choro, suores, contorções, suspiros, gritos, urros.

Prostrado, o jovem afunda a cara na areia e estica os braços para a fogueira. A tensão no círculo de celebrantes cresce; ele parece atraído pelo calor. À direita, um rapaz negro se levanta e toma as rédeas do que parece uma possessão: abraça o rapaz, passa a mão e pinga água sobre sua cabeça, assopra e beija o rosto atormentado, sussurra-lhe palavras ao ouvido.

Para um neófito, o gestual evoca religiões africanas. Alguém puxa um cântico a Oxum, orixá da água doce. Várias mulheres, maioria em torno da fogueira, se levantam e aderem ao abraço. Todos cantam em volta, enquanto o moço se acalma à reiteração das palavras "amor" e "alegria", terminando por sorrir e agradecer.

A cerimônia segue até 2h30. Outras começam a partir das 5h —meditação, ioga, sagrado feminino e masculino, constelações, detox. Há vivências com plantas e substâncias de poder, como ayahuasca, tabaco e cacau. O Festival Equinox, aberto cinco dias antes, reuniu cerca de 40 pessoas em Algodões, praia baiana da península de Maraú, e terminaria oficialmente só no domingo seguinte (20).

O neoxamanismo, ou xamanismo urbano, corre como um rio subterrâneo sob a terra firme das religiões estabelecidas. Sua marca é o ecletismo, mais que o sincretismo, pois o caleidoscópio místico não chega a compor uma doutrina com elementos de outros credos. É plural, fluido, flexível, aberto a qualquer forma de espiritualidade, sem atenção para consistência teológica.

Em seus festivais, há lugar para abuelos mexicanos, cristais, orixás, caboclos de umbanda, cartas de tarô, mantras tibetanos, odes à jurema e hinos daimistas. A eles, acorrem integrantes de uma tribo cosmopolita, os filhos e netos da Nova Era, que se identifica pela busca individual do bem-estar e seus sinônimos —cura, harmonia, equilíbrio, felicidade, amor, compaixão, luz divina, transcendência, paz.

Não importa de onde vêm ou no que acreditam, em particular, mas sim que entoem em uníssono: "Que todos os seres sejam bem-aventurados, que sintam em seus corações o mais puro amor, que todos sejam iluminados pela luz da verdade e vivam em paz, harmonia e prosperidade".

Ou que cantem sob o tipi da Casa del Mar, um cone de troncos com 4 ou 5 m de altura a evocar as tendas cerimoniais de indígenas norte-americanos: "Jurema, ô juremá/ Jurema, ô juremá/ Tava na mata com minha flecha na mão/ E Mamãe Jurema dentro do meu coração/ E lá na mata encontrei Tupinambá/ E Mamãe Jurema para me acompanhar/ Jurema, ô juremá/ Jurema, ô juremá/ Foi lá na mata que encontrei inspiração/ Para eu seguir o caminho do coração".

Qualquer um pode tornar-se pajé ou guru. O que se reverencia ali é a figura abstrata do xamã, não o curandeiro ou feiticeiro de povos e culturas específicos, que desempenha funções de bênção ou divinação segundo rituais rígidos.

São coletivos fugazes, coagulados para um encontro único, não uma comunidade formada por laços de sangue, mitos e cosmologia ímpares. Pouco têm a ver com o xamanismo tradicional estudado por Mircea Eliade, por exemplo.

Não poucos entre os neoxamanistas brasileiros têm uma origem comum nas religiões ayahuasqueiras, como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV). Uma matriz surgida na Amazônia do século 20, ela mesma marcada pelo sincretismo, à medida que concilia elementos de ritos e crenças ameríndios (começando pelo chá psicodélico), cristãos, africanos e kardecistas.

É o que a antropóloga Bia Labate chama de miscibilidade. Um misticismo teologicamente poroso e passível de ser adaptado a diferentes culturas, localidades e concepções religiosas, permitindo formas variadas de arranjos e bricolagem de crenças.

Em tempos de desamparo existencial, com a política degradada em molecagem, o trabalho precarizado, as identidades fragmentadas, o clima enlouquecido, as pandemias ameaçadoras, a guerra rediviva e os templos vendidos, insinua-se uma espiritualidade de grande ressonância para profissionais de classe média urbana, espremidos até o osso pela engrenagem corporativa.

No Equinox, várias mulheres tinham a mesma história para contar: desiludidas com a carreira, mesmo que bem-sucedida, não raro incompatível com a maternidade, largam tudo e escolhem para si e os filhos uma vida simples no litoral baiano.

Foi o caso de Alessandra Rossi, que deixou um bom emprego em uma empresa de software para tocar a pousada Na Villa dos Algodões e se tornar uma das organizadoras do festival, ao lado da espanhola Amaya Arguedas, da Casa del Mar, e de Gabi Pimienta. Também o de Michelle "Tukiama" Button, mexicana que coroou carreira em relações públicas para marcas de luxo iniciando-se nas práticas do povo wixarika com o cacto peiote (Lophophora wiliamsii), que chamam de hikuri.

Existem no Brasil dezenas de povos indígenas que usam ayahuasca de modo cerimonial, como os huni kuin e os yawanawá. Assim como as religiões ayahuasqueiras receberam deles o método para feitio do chá, misturando no caldeirão os ingredientes de cultos e doutrinas extrafloresta, os neoxamânicos se distanciaram dessas igrejas mantendo apenas algumas de suas âncoras, como os hinos daimistas com suas letras singelas e bonitas, agregando fragmentos de práticas religiosas e místicas de toda parte, da América do Norte à África e à Ásia.

A figura prototípica do xamã, entretanto, não é mais o feiticeiro do norte da Ásia que deu origem ao nome globalizado, pessoas com o poder de curar, visitar os mortos e prever o futuro, em transe, função originalmente estudada nos povos chukchi e koryak.

Agora, prevalece um pajé ameríndio genérico, espécie de reminiscência coletiva da iniciação na força da ayahuasca que tantas dessas pessoas em busca de equilíbrio foram encontrar nas matas do Acre, do Amazonas ou do Peru. Há lugar também para curandeiros da América Central e do Norte que usam cogumelos e peiote para transitar entre os mundos.

Pode-se discutir se esse ecletismo, ao negligenciar o que é específico e sagrado nos rituais de cada povo, não importaria em apropriação cultural. Seria purismo antropológico, porém, por desconhecer que esses povos já se engajaram no circuito mundializado da ayahuasca, viajando a capitais do Brasil e outros países para apresentar suas pajelanças, cosmologias e medicinas.

Quem se apropria de quem?

Em palestra no Festival Equinox, Paulo de Azevedo, o Purna, apresentou seu sistema de tratamento Vibra Quantum invocando ideias do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). Falava de metacognição, a necessidade de cada pessoa dar-se conta do que desconhece sobre si própria para poder curar-se, romper os padrões de comportamento, explicação e reação em que tantos se encontram aprisionados.

Nada de novo para quem já fez psicoterapia, mas também nada de novo para neurocientistas e psiquiatras que entendem o transtorno da depressão, por exemplo, como a rede cerebral de modo padrão em grau turbinado, culminando na ruminação de pensamentos negativos que leva o doente à prostração e a ideações suicidas.

Mais de um terço desses sofredores não encontra lenitivo nos antidepressivos convencionais, os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, como escitalopram. Para alguns, pelo menos, uma molécula como a dimetiltriptamina (DMT) —secretada no próprio cérebro e presente na ayahuasca— pode abrir caminho para novas conexões cerebrais e outras maneiras de encarar seus problemas, em particular se a droga for consumida em um contexto acolhedor.

Essa era a proposta de Purna para a vivência do último dia do Equinox, domingo (20). Vestido de branco, com um sinal pintado na testa, ele monta na Oca da Casa del Mar um altar em que se reúnem cristais, frascos com água de cheiro, cartas de tarô, pedras, plumas, incenso e sinos orientais. Em destaque, três garrafas com ayahuasca de diversas procedências, para as primeiras fases do trabalho (quatro).

Após a primeira dose, cada participante deve se concentrar no autoconhecimento, refletindo sobre o que, no ano anterior, lhe despertara curiosidade, tristeza, raiva, medo, alegria e entusiasmo. Na segunda, focalizar "insights" (lampejos), desafios atuais, ciclos fechados e abertos recentemente.

Na terceira, de celebração, fixar objetivos a curto e longo prazo, com a criação de imagens para ancorar as metas. A quarta se destina a relaxamento e "download" (roda em que uma maraca passa de mão em mão, dando a palavra a cada um para manifestar-se sobre o que experimentara naquelas seis horas de concentração).

O silêncio das etapas um e dois cede lugar a um pouco de tudo nas fases três e quatro. Uma mãe dança com os filhos pequenos, casais se abraçam, amigas choram juntas, desconhecidos se beijam, lágrimas correm com os hinos daimistas ou sob a água perfumada que Purna asperge de tempos em tempos sobre quem medita sentado ou deitado, no auge do efeito da ayahuasca. Pelo menos um ateu renitente se vê imerso em gratidão pelas dádivas simples daquela roda e da natureza.

O que pode haver de errado nisso tudo? Gente que dança e canta, celebrando o fato de se encontrar e suspender o juízo sobre tudo, aceitando sem medo o que se apresenta diante dos olhos, abertos ou fechados. Para quem sai dali melhor e mais feliz (todos, a julgar pelos testemunhos com a maraca), as referências dos rituais mesclados e seus sacramentos decerto importam menos que o acolhimento inquestionável recebido.

Dois dias antes, no auge do surto do rapaz diante do fogo, nunca se extinguira a certeza irracional de que tudo acabaria bem. Como acabou. Melhor assim.

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