Qual é a influência da mídia nos ataques a escolas?

Aumento de atentados no Brasil tornou imprescindível debate sobre como imprensa deve lidar com esses crimes

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Fernanda Mena
Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

Laura Mattos
Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de "Herói Mutilado: Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura" (Companhia das Letras) e repórter especial da Folha

Uirá Machado
Uirá Machado

Na Folha desde 2004, é formado em direito e em filosofia na USP, foi editor de Tendências / Debates, Opinião, Ilustríssima e Núcleo de Cidades, além de secretário-assistente de Redação.

[RESUMO] Pesquisas pioneiras indicam que a cobertura da mídia sobre ataques a escolas tende a estimular crimes semelhantes, o chamado efeito contágio, mas ainda não há consenso a respeito dos métodos para aferir essa relação. Recomendações de não nomear criminosos ou não detalhar seus atos têm prós e contras em termos de interesse público e prevenção de novos ataques, e os estudos, ainda escassos, pouco levam em conta as redes sociais e os diferentes tipos de noticiário.

Ataques a escolas se tornaram frequentes no Brasil. Desde agosto, foram pelo menos 13 ocorrências, em uma rotina que antes parecia restrita aos Estados Unidos. Com a nova realidade, o país também importou um debate que antes fazia menos sentido por aqui, mas que agora se torna imprescindível: como a mídia deve cobrir esse tipo de violência?

Muitos estudos indicam que, após um ataque desses, aumenta a chance de uma nova ação violenta ocorrer nos dias subsequentes. Uma das explicações para isso é o que especialistas chamam de efeito contágio, uma metáfora para descrever situações em que um determinado comportamento se espalha para outras pessoas. Outra explicação envolve a ideia de imitação, quando um atirador copia o padrão de outro ataque do tipo, repetindo o método, a vestimenta, a data etc.

Obra de Carlos Cruz-Díez - Divulgação

Em qualquer um desses modelos, pesquisadores procuram apontar um meio pelo qual o comportamento a ser disseminado ou imitado atinge outras pessoas. Segundo boa parte deles, a mídia exerce esse papel, ainda que inadvertidamente. O impacto das redes sociais, contudo, ainda é pouco citado e compreendido nesses trabalhos.

Até pouco tempo atrás, esses estudos eram apenas teóricos ou demonstravam uma correlação entre o noticiário sobre atiradores em massa e a repetição da ação violenta nos dias seguintes —mas correlação só indica que existe alguma relação entre duas coisas, sem que se saiba que relação é essa.

Isso começou a mudar em 2018, quando Michael Jetter e Jay K. Walker publicaram o artigo "O efeito da cobertura da mídia em tiroteios em massa". Eles dizem ser os primeiros a usar evidências empíricas para detectar uma relação de causa e efeito entre o noticiário e os ataques.

Os pesquisadores consideraram os tiroteios em massa ocorridos nos EUA de 1º de janeiro de 2013 a 23 de junho de 2016 e as notícias desse período com as palavras "atirador" e "tiroteio" divulgadas no programa de TV jornalístico de maior audiência do país, o ABC World News Tonight.

"Usamos a cobertura noticiosa da ABC como uma variável aproximada da cobertura geral das notícias sobre esses ataques", afirma Jetter à Folha.

A sacada da dupla foi incluir na equação grandes desastres naturais globais com mortes que ocorreram nessa época. Com isso, notaram que a cobertura de um tiroteio em massa diminui quando tragédias mundiais ocupam boa parte do noticiário. Mais importante, perceberam que, nesses casos, diminui também o número de ataques em massa nos dias posteriores.

Jetter e Walker sustentam três conclusões: 1) a cobertura de um tiroteio em massa pode causar outros tiroteios em massa nos dias subsequentes; 2) esse contágio dura, em média, de quatro a dez dias; 3) 58% dos ataques no período analisado foram causados pelo noticiário.

"Quanto mais a mídia noticiar os tiroteios, mais ataques acontecerão. É uma relação causal, o que significa que mais ataques acontecem por causa da cobertura substancial da mídia", diz Jetter, professor do Departamento de Economia da Universidade do Oeste da Austrália.

Há, contudo, uma ressalva: "Não exploramos a função das mídias sociais nesses eventos, e elas podem muito bem desempenhar um papel nesse sentido".

A pesquisa tampouco abordou características do noticiário. Ou seja, não entraram no cálculo aspectos debatidos em outros trabalhos acadêmicos, como menção ao nome do atirador, divulgação de suas imagens ou o tom das reportagens, por exemplo.

"Nossa estratégia não é capaz de isolar os efeitos do conteúdo, apenas da quantidade de cobertura", afirma Jetter. Por isso, ele e seu coautor fazem uma recomendação geral: reduzir o espaço dado ao noticiário desses ataques.

Outra pesquisa pioneira foi publicada por Sherry Towers e quatro colegas em 2015. A novidade desse trabalho esteve na aplicação de um modelo para avaliar o grau de contágio de um determinado ataque em massa.

Emprestado da epidemiologia, o modelo de contágio procura prever a probabilidade de, dado um tipo de evento, outros semelhantes ocorrerem em um espaço predefinido de tempo. Essa abordagem já foi usada em campos tão diferentes quanto roubos de residências, ataques terroristas, suicídios e crises financeiras, entre outros.

Towers, cientista de dados da Universidade do Arizona, e coautores aplicaram essa perspectiva na pesquisa "Contágio em assassinatos em massa e tiroteios em escolas".

Ao analisar assassinatos em massa de 2006 a 2013 e ataques em escolas de 1997 a 2013, ambos nos EUA, o estudo identificou um contágio que dura até 13 dias, período em que, segundo os autores, aumenta a probabilidade de novos ataques do mesmo tipo.

O trabalho não vem sem ressalvas. As mais importantes são o fato de não ter encontrado efeito contágio após ataques com até três mortos —os autores levantam a hipótese de a cobertura da mídia ser menos intensa nesses casos— e a falta de explicação sobre, por assim dizer, o agente contagioso.

É que o modelo utilizado apenas aponta se há evidência de contágio, venha ele por que meio vier, razão pela qual outras pesquisas tratam do fenômeno como imitação. Nos dois casos, boa parte dos estudos traz a mídia como suspeita e quase nada há a respeito das redes sociais.

Rudi Rocha, presidente associado da FGV-SP e membro do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância, concorda que não é fácil mensurar o impacto das redes sociais.

"Tanto as mídias sociais quanto os ataques são relativamente recentes se pensarmos do ponto de vista da consolidação das pesquisas científicas", diz. "Estamos, portanto, trabalhando com a fronteira da ciência, ou seja, com resultados novos, nem todos consolidados, o que nos leva a ter de colocar algum grau de intuição para tomar as decisões."

No caso dos ataques em massa, o que há de mais forte, na avaliação de Rocha, são os estudos comportamentais que analisam a mente desses criminosos. "Ainda que seja difícil mensurar o efeito contágio e que as pesquisas empíricas sejam recentes", ele afirma, "já se evidenciou que esses assassinos buscam a fama".

"Ninguém quer ser conivente com isso, e, nesses casos, não dá para esperar a ciência se consolidar para definir como agir", diz Rocha. "Portanto, minha intuição é que o melhor, por ora, é que os veículos sigam as sugestões dos pesquisadores de cuidados com a cobertura dos ataques. No mínimo, a de omitir o nome e a imagem dos agressores."

Esse "no mínimo", a que Rocha se refere, não é uma sugestão consensual entre pesquisadores da área. Boa parte dos estudos indica soluções como a de Jetter e Walker —reduzir a cobertura como um todo— ou alternativas como mudar o foco do noticiário para as vítimas, deixando de falar dos assassinos ou os retratando em tom negativo, sem detalhar sua ação e seu perfil.

Por trás dessas propostas, está a premissa de que muitos dos responsáveis por tiroteios em massa usam a matança como meio de aparecer na grande imprensa para se tornar famosos. Em uma corrida macabra, haveria até um estímulo a deixar um número grande de vítimas, pois o espaço no noticiário tende a ser proporcional ao tamanho da tragédia.

O psicólogo americano Peter Langman se especializou no estudo de jovens que cometem ataques a escolas, e sua pesquisa apontou para uma trama de imitações feitas pelos autores dos principais atentados nos EUA.

"Muitos atiradores citaram a fama como grande incentivo para suas ações", diz ele, autor de três livros sobre o tema. "Eles sabiam que, se matassem muitas pessoas, se tornariam conhecidos porque outros atiradores responsáveis por grande número de mortes receberam muita atenção da mídia."

Esse comportamento se explica por um traço que, segundo algumas estimativas de Langman e outros estudiosos, aparece em 14% a 20% desses criminosos: o narcisismo, uma condição psicológica marcada pelo desejo constante de admiração e pela dificuldade de entender os sentimentos dos outros.

Segundo alguns pesquisadores, o problema é que, ao reduzir a cobertura como um todo ou omitir detalhes do crime e do assassino, a mídia poderia jogar fora muita coisa com a água do balde. Relatos mais completos contêm informações não só de interesse do público mas também relevantes para estudos, já que muito do que se sabe sobre esses eventos foi levantado por jornalistas.

Sem tais informações, de acordo com esse raciocínio, seria até mais difícil pensar em políticas públicas para minimizar essas tragédias ou reconhecer potenciais agressores a partir de comportamentos previamente identificados.

São essas as ponderações de dois pesquisadores que sugerem uma linha bastante clara desde o título de um artigo publicado em 2018: "Não os nomeie, não os mostre, mas publique todo o resto: uma proposta pragmática para negar aos assassinos em massa a atenção que eles buscam e dissuadir futuros criminosos".

Assinado por Adam Lankford, professor de criminologia e de justiça criminal da Universidade do Alabama, e Eric Madfis, professor associado de justiça criminal da Universidade de Washington Tacoma, o trabalho sustenta que eliminar nomes e fotos de criminosos atuais e do passado é a melhor maneira de frustrá-los.

Lankford e Madfis lembram, por exemplo, que os homicidas de Columbine (1999) se imaginaram inspirando filmes —o que de fato aconteceu—, que outros atiradores escreveram em seus manifestos frases como "te vejo na TV nacional" e "vou ser famoso para c..." e que alguns até enviaram notas de suicídio para telejornais de grande audiência.

O cineasta americano Michael Moore durante a exibição de seu filme 'Tiros em Columbine' no Festival de Cannes de 2002 - Jean Paul Pelissier - 17.mai.2002/Reuters

Para os autores, fazer uma cobertura que exponha o criminoso de forma crítica não resolve o problema; o ditado "falem mal, mas falem de mim" se aplicaria a esses casos. Um dos assassinos em massa, eles exemplificam, escreveu em seu manifesto que "a má fama é melhor que a obscuridade".

Daí por que Lankford e Madfis propõem o veto apenas a nomes e fotos dos assassinos em veículos de comunicação: para lhes negar a fama que tanto buscam, sem prejuízo das demais informações (com exceção de quando um atirador estiver foragido, por exemplo).

A proposta, contudo, tem suas limitações. A ausência do nome não necessariamente traz frustração. "Serial killers" com traços narcisistas, por exemplo, podem se satisfazer com a simples divulgação de um apelido ou com a veiculação de seus "feitos", e o mesmo pode acontecer com atiradores em massa.

Omitir o nome também pode configurar um paradoxo: se, por um lado, isso frustra a busca pela fama desses atiradores, por outro, pode proteger a identidade de criminosos que não morrem na ação e que se beneficiariam do raro privilégio do anonimato.

A dificuldade de calibrar as reações do poder público e da mídia tem a ver com o número ainda baixo de estudos estatísticos e empíricos sobre atiradores em massa. Como essas tragédias envolvem múltiplos fatores —da infância do atirador à cobertura de seus crimes, passando por sua vida social, suas características psicológicas etc.—, fica difícil identificar o peso exato de cada um desses aspectos.

"Ainda não há um consenso sobre os métodos de como medir esses efeitos. Ainda são poucos os pesquisadores da área, e eles adotam estratégias diferentes de aferição", afirma o cientista de dados Thomas Conti, professor de economia do Insper que está redigindo uma revisão sobre as pesquisas do efeito contágio nesses ataques.

Para ele, ainda que esses crimes sejam raros do ponto de vista estatístico, tanto o efeito contágio quanto o efeito imitação (criminosos imitam os métodos, a vestimenta etc. de outros que cometeram ataques) estão relativamente bem estabelecidos.

"Os estudos estatísticos que identificaram o efeito contágio ainda não chegaram ao ponto de testar se a forma como a mídia cobre os casos é ou não relevante", diz Conti. "Eles testam se foi dada muita ou pouca atenção ao caso, mas não se houve ampla divulgação de nomes, fotos etc."

Isso não significa, porém, que não tenham lógica. "A recomendação de não nomear os assassinos e de não publicar imagens e a história de vida deles vem da união plausível entre o efeito contágio e a motivação que esses assassinos, especialmente os mais letais, têm de conquistar a fama", afirma.

Se há poucos estudos empíricos e estatísticos sobre essas tragédias nos EUA, onde elas são mais frequentes, há menos ainda no Brasil, onde o fenômeno é recente. Segundo a professora de educação da Unicamp Telma Vinha, contudo, já é possível perceber o efeito contágio por aqui.

"Presenciamos, de maneira muito forte, esse efeito alguns dias e semanas depois dos ataques de Suzano, Aracruz e Vitória. Isso nas próprias cidades e região desses locais", afirma Vinha, que coordena um levantamento da Unicamp e da Unesp sobre ataques a escolas no Brasil.

"Estávamos em contato direto com as secretarias de educação e com policiais que nos traziam, preocupados, o aumento das ameaças e o desbaratamento de novos casos. São informações de profissionais que lidam com os ataques e se depararam, na prática, com o efeito contágio que as pesquisas apontam."

Ela afirma que os autores de crimes nas escolas se inspiraram em muitas das informações que foram obtidas em reportagens, como fotos, vídeos, tipos de armas, nomes etc. "Vestem-se de maneira semelhante a outros agressores, buscam empregar estratégias parecidas, usam como codinome o sobrenome dos atiradores", diz Vinha.

De acordo com a pedagoga, é preciso negar notoriedade a esse tipo de criminoso, noticiando sem dar detalhes, sem mostrar como o ato ocorreu e sem dar nomes. Porém, ao mesmo tempo, ela defende que se discutam os fatores e os contextos. "O desafio é [descobrir] como informar e gerar o debate sem provocar o contágio", afirma.

Nunca houve, em relação a atiradores em massa, um teste concreto como se deu em relação a suicídios, por exemplo. Em artigo de 1998, os pesquisadores Elmar Etzersdorfer e Gernot Sonneck relatam a experiência de Viena ao lidar com pessoas que se matavam no sistema de metrô inaugurado em 1978.

Uma onda de suicídios cresceu nos anos 1980 até que, em meados de 1987, a mídia passou a ignorar os casos ou a reportá-los com poucos detalhes. No segundo semestre do mesmo ano, o número de suicídios tentados ou consumados em um intervalo de seis meses caiu mais de 80% (de 19 para três) e se manteve em patamares baixos (em torno de seis) até 1996, quando o estudo terminou.

Tampouco houve, em relação a atiradores em massa, uma tentativa de diferenciar o impacto de jornais, rádios e TVs no efeito contágio, e só recentemente começaram a ser levadas em conta as redes sociais.

A julgar pelo trabalho da socióloga francesa Nathalie Paton, o papel das mídias sociais não é pequeno. Em seu doutorado, na Universidade de Toulouse, ela estudou ataques em escolas levando em consideração comunidades virtuais que cultuam esse tipo de ação.

Segundo Paton, a internet e as redes sociais proporcionaram a troca de informações sobre esse tipo de crime, em uma dinâmica em que a imitação é muito importante, e também permitiram que esses assassinos manipulassem o noticiário, deixando mensagens e conteúdos que, após os crimes, seriam replicados pela imprensa profissional.

Essas transformações da paisagem midiática dos últimos anos, aponta a socióloga, tornam insuficientes os primeiros modelos explicativos sobre a influência da mídia tradicional nesses eventos.

Para ela, com o deslocamento da esfera pública para os meios digitais, após cada crime desse tipo, pessoas podem "distribuir, fazer circular e promover informações sobre os sujeitos desse ataque à escola para além do alcance de qualquer tipo de censura oficial".

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