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Rafael Burgos e Vinícius Vieira

Sem perceber, Muniz Sodré endossa racismo estrutural que tenta negar

Se há forma social escravista na ausência de leis raciais, as práticas de discriminação vão muito além da lei e do Estado

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Rafael Burgos

Jornalista e mestrando em comunicação e semiótica na PUC-SP, onde atua como pesquisador vinculado ao CNPq

Vinícius Vieira

Doutor em relações internacionais pela Universidade de Oxford e professor na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) e na FGV. Autor de "Democracia Racial, do Discurso à Realidade" (Paulus, 2008)

[RESUMO] Tese de Muniz Sodré de que não existe racismo estrutural no Brasil parte de um mal-entendido quanto ao significado do termo —decorrência de ruído de tradução ao importarmos esse debate dos EUA— e se equivoca ao não notar que a ausência de leis raciais evidencia o caráter estrutural da discriminação, que transborda os limites do Estado.

"O racismo não é estrutural no Brasil", disse Muniz Sodré em entrevista muito comentada, e por vezes mal-interpretada, a esta Folha, na qual apresentou, brevemente, algumas das ideias discutidas em seu mais recente livro, "O Fascismo da Cor: uma Radiografia do Racismo Nacional’, obra que atualiza, de maneira ousada e autoral, o debate sobre racismo no Brasil, tema que tem ganhado, mais que nunca, merecida atenção de pesquisadores país afora.

Dada a dinâmica das redes sociais e a sua relação nada saudável com o jornalismo, cabe, antes de tudo, destacar o que Sodré não disse em sua entrevista.

Ativistas e grupos antirracistas em manifestação da 19ª Marcha da Consciência Negra, em São Paulo - Rivaldo Gomes - 20.nov.22/Folhapress

O sociólogo não nega a dimensão da raça como um elemento estruturante da sociedade brasileira, tampouco busca se associar a teorias que celebram o mito da democracia racial. Acusado por alguns de menosprezar a dimensão do racismo no país, Sodré, um dos obás de Xangô, pagou caro por seu (justo) preciosismo conceitual, ainda que discordemos de sua conclusão.

Pelo bem do debate, escrevemos estas linhas não exatamente no ímpeto de fazê-lo "mudar de lado", mas em um singelo exercício que visa demonstrar, no próprio raciocínio do autor, o seu contra-argumento. Sim, o racismo é estrutural no Brasil —conclusão da qual Sodré se aproxima, precisamente, quanto mais tenta se afastar.

Em primeiro lugar, o sociólogo parece partir de um mal-entendido quanto ao termo usado por Silvio Almeida, professor de filosofia e hoje ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Por "estrutural", Almeida quer dizer "institucional". O problema, aliás, se deve a um ruído típico de traduções, já que, nos Estados Unidos, de onde trouxemos o debate, estrutura ("structure") é tomada como sinônimo de sistema ("system"), assim como de instituição ("institution").

Em recente artigo publicado na revista Health Affairs, pesquisadores esboçaram uma distinção entre racismo sistêmico e estrutural. O primeiro reflete o impacto de sistemas inteiros —política, mercado, normas jurídicas— e, por vezes, o papel de todos os sistemas de organização da ação humana na perpetuação das hierarquias raciais.

Já o segundo envolveria os elementos aparentes, como políticas públicas, práticas econômicas, leis específicas, que efetivam a rigidez da raça como construção social com elementos (re)distributivos.

Aplicando esse raciocínio ao viés racial do sistema político brasileiro, podemos dizer que, na ausência de mecanismos capazes de promover a eleição de representantes negros, perpetua-se a ascendência branca entre as lideranças.

Não é em vão, portanto, a aproximação feita, no debate estadunidense, entre os termos sistêmico e estrutural —precisamente por ser sistêmico, o racismo é estrutural e se reflete nas instituições, transbordando, portanto, os limites do Estado.

Quando equipara a estrutura de um sistema econômico à letra da lei, Muniz Sodré deixa de lado a dimensão biopolítica dos poderes, evidente em formas de controle social que excedem a norma escrita.

Se, por um lado, o sociólogo faz bem ao destacar um "racismo intersubjetivo", marcado sobretudo pela negação, por outro, a psicanálise nos ensina que é, precisamente, na negação que a estrutura se revela. Portanto, cabe perguntar: por que tal processo não seria, por si só, expressão de uma estrutura?

Ao esmiuçar as particularidades do que chama de forma social escravista no Brasil, sublinhando a ausência de leis estritamente raciais, Sodré não percebe que, longe de fortalecer seu argumento, tal vazio normativo constitui a própria forma do racismo na lógica da governamentalidade, o poder difuso da lógica foucaultiana.

Alternativamente, também se pode falar no racismo à brasileira como um processo de hegemonia cultural. Nela, a estrutura do Estado se revela não menos na formação de imaginários, na gestão dos corpos, que, propriamente, na letra da lei. Sim, o racismo brasileiro não sobreviveria a uma segregação legal, tal como reconhece Sodré —e é porque ele persiste que talvez exista, ali, uma outra estrutura.

Portanto, para além de intersubjetiva, como propõe o sociólogo, a manutenção de hierarquias entre brancos e não brancos no Brasil deriva, ainda, de legados históricos que se atualizam não apenas de maneira atomizada, mas dentro de uma dinâmica de poder. É permeada por certos discursos, a priori, que uma sociedade constrói a imagem de si. No nascimento das nações, não há imaginário coletivo que não esteja atravessado por categorias sociais —se olharmos de perto, há ali a semente do que, mais tarde, receberá a alcunha de estrutural/sistêmico/institucional.

A partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro passou a legitimar contribuições africanas para a formação do povo, sem, porém, redistribuir efetivamente o poder material e simbólico, de modo que o lugar do negro na cultura popular e de massas moldou, desde o princípio, o nosso espelho enquanto nação. Assim, por trás dos mecanismos linguísticos e psicossociais citados por Sodré, há algo chamado poder. Antes de se fazer aparência, imagem, a tal forma social escravista já é estrutura.

Quando os ritmos africanos cruzaram, de modo forçado, o oceano e informaram o samba no Brasil sincrético e o jazz nos Estados Unidos segregados, o que há nesse encontro: uma linguagem que mitiga a dor ou um modo de resistência? É possível dissociar um do outro —a honra à ancestralidade do lamento-alegria prenhe de política?

Sob todos os aspectos, a potência cultural desses movimentos é indistinguível de sua constituição anti-estrutural, isto é, contra-hegemônica. Pois, se é no pensamento da aproximação, nas pequenas vivências do diferente, que Sodré enxerga a desconstrução do racismo brasileiro, é porque o ministro do Afonjá, talvez sem perceber, captou por onde caminha a estrutura: menos no macronível do que nas microrrelações sociais.

Ao se colocar contra a extensão de direitos trabalhistas a pessoas que desempenham funções domésticas, um indivíduo, independentemente da sua identidade racial, reproduz a hierarquia sistêmica manifestada em diferentes estruturas e instituições, muito embora possa curtir um samba e, na defesa já clássica do racista enrustido, relembrar que tem parentes negros.

No passado, o escravismo. No presente, o exército de mulheres negras, vistas inexoravelmente como faxineiras ou "tias do café". Do mesmo modo, se aceita que um homem negro seja jogador de futebol ou obreiro de igreja evangélica, muito embora sejam escassos os técnicos não brancos de times de ponta, assim como os bispos de fenótipo africano ou indígena nas denominações cristãs dos mais diversos matizes.

Como concebe a sociologia de Pierre Bourdieu, a posição dos indivíduos no espaço social reflete uma série de disposições. Pense no indivíduo branco, de classe média, morador do Centro-Sul brasileiro, que não vê problema ao se mudar para Portugal e exigir que sua residência tenha quarto de empregada, uma extensão contemporânea das senzalas.

É um caso em que a posição indica, ainda que não determine em absoluto, uma disposição relativa à discriminação racial. Tal posição e, portanto, a disposição refletem, por sua vez, um campo social formado ao longo da história, com suas lutas pela redistribuição de recursos materiais e simbólicos. Enfim, a luta pelo poder.

No racismo à brasileira, não há uma estrutura rígida tal como nas hierarquias étnico-raciais americanas. Todavia, tais estruturas não são flexíveis o suficiente para deslocarmos, no Brasil, o foco do racismo apenas para as relações intersubjetivas e as instituições.

Desde o avô de família mestiça que tem maior apreço pelos netos mais claros até quem vê uma mulher negra circunscrita ao papel de empregada doméstica, todos estamos sujeitos às estruturas —entendidas como a totalidade de forças sociais— herdadas de nossa formação brutal que, em todos nós, deixou traços inequívocos da oposição casa grande-senzala, sem que isso implique romantizar o sincretismo e mestiçagem nos moldes do mito da democracia racial.

Como nos ensinou Darcy Ribeiro no livro "O Povo Brasileiro", em trecho declamado por Chico Buarque: "Todos nós, brasileiros, somos carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos por igual a mão perversa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos. E a gente insensível e brutal que também somos". Mais estrutural que isso, impossível.

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