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Marcelo de Araujo

Ética climática é incontornável em planeta em ebulição

Aquecimento global cria problemas que não são teorizados adequadamente por disciplinas isoladas

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Marcelo de Araujo

Professor do Departamento de Filosofia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da Faculdade de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

[RESUMO] A ética climática, disciplina no campo da filosofia que vem ganhando tração nas últimas décadas, oferece perspectivas favoráveis para abordar questões éticas e políticas relacionadas ao aquecimento global que ultrapassam domínios de investigação insulados.

Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, não devemos mais falar só em aquecimento global: "A era da ebulição global chegou". As implicações éticas das mudanças climáticas são monumentais. Para tratar desse problema, já existe uma nova disciplina filosófica, a ética climática, que vem se consolidando nos últimos 20 anos.

A ética climática é uma disciplina nova porque as mudanças climáticas suscitam questões éticas e políticas que, tradicionalmente, foram examinadas como domínios de investigação separados, tais como a bioética, a teoria das relações internacionais, o direito internacional, a ética animal, a filosofia política, o direito ambiental etc. As mudanças climáticas envolvem temas discutidos em todas essas disciplinas, mas nenhuma delas oferece sozinha teorias normativas robustas e metodologias adequadas para a discussão dos problemas éticos decorrentes das mudanças climáticas. Vejamos.

Vista aérea do bairro Coroado, em Manaus - Michael Dantas - 5.jun.23/AFP

As mudanças climáticas abrangem diferentes aspectos das discussões em curso no âmbito das teorias de relações internacionais. Há, por exemplo, um amplo debate que questiona se os países que mais se beneficiaram das emissões de gases de efeito estufa —hoje os mais ricos— têm a obrigação moral de indenizar os países mais pobres e que menos contribuíram para a emergência do problema.

As consequências das mudanças climáticas vem se manifestando nos países mais pobres sob a forma de enchentes, secas, ondas de calor ou safras malsucedidas. Assim como os países mais pobres, os países mais ricos também terão de se adaptar ao novo clima, mas não está nítido quem financiará a adaptação ou fornecerá o know-how tecnológico para a adaptação climática nos países mais pobres. Essa é claramente uma questão de justiça internacional.

Há também outras questões moralmente relevantes suscitadas pelas mudanças climáticas que ultrapassam o debate sobre justiça internacional.

Ainda que princípios de justiça internacional sejam implementados em políticas com sucesso, outras questões éticas relevantes permanecerão. Se, por exemplo, os Estados Unidos e a União Europeia cumprirem as promessas de ajudar os países mais pobres a se adaptar às mudanças climáticas, persistirá o risco de o repasse de fundos para adaptação climática ser distribuído desigualmente nos países a que os fundos se destinam.

Isso tem todo o potencial para agravar desigualdades sociais já existentes, a exemplo do que ocorreu na Eko Atlantic City, na Nigéria. Esse seria um problema de injustiça social agravado pelas mudanças climáticas.

No entanto, vamos supor que os recursos internacionais para adaptação climática (supondo que eles sejam concedidos) não sejam mal-utilizados e que os países beneficiados desenvolvam infraestruturas que permitam à população se adaptar ao novo clima sem acirrar desigualdades sociais já existentes. Ainda assim, persistirá o risco de negligenciarmos a justiça intergeracional, uma questão que teorias da justiça social raramente levam em conta.

Aqui, o que está em questão não é o problema sobre o que cidadãos, moralmente falando, devem uns aos outros, mas o que a geração atual deve às gerações futuras. Não é difícil perceber que há diferenças importantes entre questões de justiça social e questões de justiça intergeracional.

Nigéria e Brasil, por exemplo, são países produtores de petróleo e clima quente. Em um mundo em ebulição, esses países poderiam promover amplos programas de justiça social para garantir que todas as famílias tenham um aparelho de ar-condicionado custeado pelo governo para sobreviver às frequentes ondas de calor. A energia elétrica teria de vir de algum lugar. Se a energia não vier de fontes renováveis, mas gerada da queima de combustíveis fósseis, esses países estarão promovendo a justiça social para a geração atual com consequências devastadoras para as gerações futuras.

Pessoas de uma mesma geração podem protestar e se mobilizar na tentativa de resolver conflitos decorrentes de injustiças sociais, mas a geração futura, por não existir ainda, não pode fazer nada para obrigar a geração presente a agir em conformidade com princípios de justiça intergeracional. O filósofo Stephen Gardiner se refere a esse tipo de injustiça como "tirania dos contemporâneos".

Nesse exemplo hipotético, Brasil e Nigéria estariam também violando princípios de justiça internacional, pois os gases de efeito estufa ultrapassam a região em que foram emitidos e causam danos em todo o planeta. Eles se acumulam na atmosfera por séculos, agravando o aquecimento global.

Ainda que princípios de justiça social sejam implementados localmente e sem custos para gerações futuras ou ônus para a comunidade internacional, permanecerá a pergunta sobre a capacidade que seres humanos teriam de proteger animais não humanos dos danos de um planeta em ebulição.

Podemos adaptar as cidades ao aquecimento global e a eventos climáticos extremos, podemos redistribuir recursos para adaptação climática de modo mais justo ou ter consideração pelas gerações futuras, mas como garantir que o processo já em curso de perda de biodiversidade, que deve resultar em extinções em massa nas próximas décadas, não se agrave? O que está em jogo aqui são questões de ética animal e ética ambiental, mas essas questões não são tradicionalmente discutidas no âmbito da justiça social, da justiça internacional nem da justiça intergeracional.

Hoje, rejeitar o negacionismo não significa mais simplesmente aceitar as evidências científicas que demonstram que o clima do planeta está mudando em decorrência de ações humanas, mas aceitar também que esse fenômeno gera uma intricada malha de questões éticas e políticas que não podem ser teorizadas adequadamente no âmbito de disciplinas isoladas.

Essas questões exigem o aprofundamento teórico e o aprimoramento metodológico da ética climática.

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