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Gabriel Trigueiro

Livro esmiúça dilemas de fãs de artistas moralmente reprováveis

'Monsters' aponta que indústria cultural alimenta admiração cega por celebridades e depois faz todos se sentirem culpados

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Gabriel Trigueiro

Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

[RESUMO] Livro recém-lançado nos EUA retoma o debate sobre como lidar com a obra de artistas de comportamento reprovável, tomando como centro de sua reflexão a perspectiva do público. Claire Dederer, autora do livro, argumenta que não é possível desvincular totalmente considerações morais da apreciação estética e pondera que a indústria cultural torna o cenário ainda mais nebuloso ao tratar fãs como consumidores, estimulando a idolatria por artistas representados como modelos a serem seguidos.

"É possível separar a obra do artista?" "É antiético consumir a arte produzida por pessoas com comportamento reprovável?"

Essas são velhas perguntas que assombram muitos fãs em todo o mundo. Quem lê de relance o título "Monsters: a Fan’s Dilemma" pode ter a impressão de que essas também sejam as grandes questões que conduzem o livro recém-lançado da americana Claire Dederer.

Fãs de Michael Jackson fazem homenagem ao artista na avenida Paulista, em São Paulo - Anderson Barbosa - 17.dez.11/Fotoarena/Folhapress

Logo nas primeiras páginas, contudo, é possível notar que a obra, desenvolvimento de uma ideia inicialmente apresentada em ensaio publicado em 2017 na Paris Review, escava muito mais fundo nessa psicologia do fã.

Trata-se de uma busca pessoal sobre como lidar com a interseção de critérios morais e estéticos na apreciação de uma obra. Ou, dito de outra forma, a autora tenta responder como encarar a arte que amamos feita por homens e mulheres responsáveis por coisas horríveis e moralmente reprováveis ao longo de suas vidas.

Dederer é jornalista, escreve críticas literárias para o New York Times e dá aulas de escrita na Universidade de Washington. Já havia publicado dois livros: "Poser: My Life in Twenty-three Yoga Poses" (2010) e "Love and Trouble: a Midlife Reckoning" (2017).

"Monsters", ainda sem previsão de sair no Brasil, foi lançado com algum estardalhaço. No Washington Post, o livro foi chamado de "vital e emocionante". Na New Yorker, foi classificado como "um trabalho de profunda reflexão e autoanálise que honra a impossibilidade da missão do livro".

Não se trata de um livro sobre artistas cancelados, mas uma biografia do público desses artistas. Ou seja, nós. A definição de monstro dada por Dederer é "alguém cujo comportamento pessoal atrapalha a nossa capacidade de compreender sua obra a partir de seus próprios termos".

A autora apresenta seu argumento na primeira pessoa, com uma reflexão existencial a princípio muito particular, que ganhou contornos coletivos à medida que vimos emergir o movimento MeToo.

Como conciliar sua formação e educação política como feminista com a admiração pela obra de artistas como Roman Polanski, condenado nos Estados Unidos pelo estupro de uma criança de 13 anos na década de 1970? Como apreciar o legado artístico e a capacidade de criar beleza de alguém capaz de uma monstruosidade indefensável como essa?

Como a escritora diz em um dado momento: "Meu feminismo é elástico o suficiente para consumir o trabalho deles, mas não para ter empatia com eles".

Dederer defende que muito daquilo que temos a pretensão de que sejam "considerações éticas", na verdade, são "sentimentos morais". Ela argumenta que esses sentimentos morais não podem ser retirados artificialmente da equação. A apreciação de uma obra ocorre no encontro da biografia do artista com a da audiência.

A autora se opõe ao pessoal da "nova crítica", o movimento que, em meados do século 20, advogava que a crítica deveria ser feita exclusivamente a partir de uma régua formalista e circunscrita meramente a critérios estéticos.

Dederer identifica a origem filosófica desse argumento na ideia protestante de "sola scriptura", que defende que a Bíblia seja tratada como a fonte única de toda a doutrina e prática cristã. Sua posição, entretanto, é a de que "a experiência estética está sempre amarrada à nostalgia e à memória, ou seja, à nossa experiência subjetiva".

Em "Monsters", a autora pontua que as obras de arte não são impermeáveis ao contexto histórico no qual são criadas e recepcionadas ao longo do tempo —tampouco a variados elementos biográficos, do artista e mesmo da audiência.

Em um dado momento, um amigo de Dederer —um intelectual branco, de meia idade e de classe alta, ele próprio quase um personagem de Woody Allen— argumenta com condescendência que a autora deveria julgar "Manhattan", filme de 1979 de Allen, não pelo que ela sabe a respeito da vida do autor (o casamento com a enteada Soon-Yi Previn etc.), mas tão somente pelos critérios intrínsecos ao filme.

No entanto, quando ela o questiona acerca de quais seriam esses tais critérios, a resposta de seu amigo é alguma platitude vaga como "elegância e equilíbrio".

Aliás, questionar a construção narrativa de um relacionamento de um homem de 42 anos, o personagem de Allen, e uma menina de 17 anos —seu par romântico, Mariel Hemingway—, não é também julgar o filme a partir de um critério estético?

"Monsters" explora o conceito sociológico de "relações parassociais", ou seja, aquelas em que desenvolvemos relações emocionais reais com os artistas cujas obras amamos. É mais do que simplesmente admirar ou amar a obra de alguém, mas acreditar que uma imersão radical na biografia do artista garante alguma relação de intimidade mútua com ele ou ela.

É quase um truísmo recordar que a internet e as redes sociais aumentaram, potencializaram e, pior ainda, transformaram esse fenômeno estranho em commodity valiosa.

Todo o debate a respeito do confronto entre considerações éticas e estéticas por parte do público não pode perder de vista, a autora lembra, o contexto material macro no qual estamos inseridos.

O capitalismo tardio nos transformou em "consumidores" e nossas identidades cada vez mais são constituídas a partir de nosso padrão de gosto e consumo. Nossa relação com artistas é atrelada intimamente a biografias que são alçadas ao status fantasioso e distorcido de guias morais. Uma vez que essa fantasia colapsa, perdemos uma parte da nossa própria identidade no processo.

Nesse sentido, o "fandom" é a expressão máxima da mercantilização contemporânea da arte e de como lidamos com a criação artística como sociedade. Não à toa, Dederer lembra oportunamente Walter Benjamin: "Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie".

A escritora argumenta que a pergunta "o que fazer com a arte de homens monstruosos?" é respondida invariavelmente de modo liberal: "boicotando o artista".

O boicote como resposta é uma fantasia tipicamente liberal, na qual removendo-se o dinheiro e a atenção do problema, ele magicamente deixaria de existir.

A ironia do capitalismo tardio é passar o ônus moral do consumo dessa arte ao indivíduo, que jamais é tratado como um sujeito complexo, dono de subjetividade e sensibilidade próprias, mas meramente como um consumidor que precisa performar publicamente indignação moral. "Você é aquilo que você consome. Você é, afinal de contas, o seu fandom", a autora aponta.

A indústria cultural toma uma série de decisões despidas de quaisquer considerações éticas, explora os artistas, trata a criação artística como commodity e, no fim, cobra que você se sinta moralmente culpado ou pessoalmente responsável quando dá uma dançadinha no momento em que toca Michael Jackson na sua caixa de som. Algo parece estar errado, não?

A verdade é que não há uma grande teoria geral, de aplicação de uma métrica universal e absoluta, com a qual se possa encontrar um equilíbrio perfeito entre moralidade e apreciação estética.

A mesma pessoa que ama Woody Allen pode ser aquela que não consegue ficar diante de uma pintura de Picasso sem sentir náuseas. Todos somos hipócritas e, em maior ou menor grau, monstros. Essa é, gostemos ou não, uma das medidas da nossa humanidade.

"Monsters" é um exercício elegante, divertido e erudito de crítica cultural. Acima de tudo, é um livro escrito com uma voz e sensibilidade muito originais.

Assim que o lemos, é difícil não concordar com o comentário sobre a autora feito por Nick Hornby: "Agora a minha vontade é a de que ela escreva sobre absolutamente todos os assuntos que me interessam, para que eu possa pensar sobre todos eles de novas maneiras".

Monsters - A Fan's Dilemma

  • Preço US$ 28 (importado, 256 págs.); US$ 14,99 (ebook)
  • Autoria Claire Dederer
  • Editora Penguin Random House
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