Descrição de chapéu indígenas mudança climática

Indígenas colombianos vão à Europa com missão de salvar o planeta

Representantes do povo kogi se reunirão com cientistas em Genebra para debater formas de reconciliar natureza e humanidade

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Aureliano Biancarelli

Jornalista especializado em saúde e meio ambiente. Autor do livro "Cirurgia em Campo Aberto" (ed. Brasiliense, 2002)

[RESUMO] Xamãs da etnia kogi, habitantes das montanhas mais altas da Colômbia, desembarcam em Genebra nesta segunda (25) para elaborar um diagnóstico da saúde territorial da região. Conhecidos como guardiões da floresta, eles vão trabalhar para restabelecer o equilíbrio da bacia do rio Ródano, que liga Suíça e França, juntos a cientistas e ambientalistas locais, que esperam aprender como se preparar para crises ecológicas a partir do conhecimento e da espiritualidade dos indígenas.

O povo kogi vive nas selvas de vales e escarpas das altas montanhas de Serra Nevada de Santa Marta, no noroeste da Colômbia, região conhecida como coração do mundo. Isolados desde a chegada dos espanhóis, 500 anos atrás, eles agora se apresentam como guardiões da terra.

Acreditam que sua missão é cuidar do planeta e que nós, a civilização do lado de fora, não estamos levando a sério nossa lição de casa. Temos muito que aprender se não quisermos ver a destruição de nossas casas, nossos filhos e de nosso ambiente, alertam os "mamas", líderes espirituais do povo kogi. Um alerta que tem tudo a ver com a crise climática do planeta.

Aldeia da etnia kogi na Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia - Erik Sampers/Hemis via AFP

Tanto eles acreditam na urgência de suas previsões que estão desembarcando em Genebra, na Suíça, com a proposta de "restabelecer a harmonia" da região. O grupo kogi chega em 25 de setembro com a missão de elaborar um diagnóstico da saúde territorial.

Do lado europeu, os irmãos mais novos há meses se preparam para recebê-los. Nesse comitê de recepção, estão autoridades de Genebra e da Suíça, representantes de governos e de instituições globais como a Unesco, além de cientistas e ambientalistas. Os xamãs permanecem até 18 de outubro entre Suíça e França. Ao longo das visitas, devem expor suas percepções, observações e advertências para os membros da equipe e autoridades.

É a primeira vez que um grupo de líderes espirituais indígenas, preservando as tradições milenares de seus ancestrais, se propõe a contribuir para uma melhor qualidade de vida de uma comunidade rica e cosmopolita. Por sua história, e pelas instituições globais que abriga, Genebra se apresenta como o cenário ideal para uma troca de conhecimentos, de hábitos e de energia com uma civilização que conserva práticas pré-colombianas.

Em Genebra, os kogis serão acompanhados por cientistas, ambientalista e por técnicos do Serviço Cantonal de Águas. Não falta água em Genebra, cidade à beira do grande lago Léman, mas os rios que banham a região merecem um olhar cuidadoso.

"Vamos oferecer aos kogis locais onde eles possam se ligar aos elementos", diz Gilles Mulhauser, biólogo, diretor da companhia de águas e um dos mais empenhados no encontro. Para ele, essa poderia ser uma forma de nos reconectarmos mais rapidamente com certas portas do saber. "Talvez os kogis possam nos ensinar os meridianos fundamentais das bacias dos rios Ródano e Arve. Talvez possam nos dizer qual montanha é central para a região. Certamente vamos nos surpreender com suas descobertas", diz.

Para os kogis, um rio é uma unidade só, desde a nascente até a foz, sem a fragmentação administrativa entre países. Não por acaso, eles seguirão o traçado do rio Ródano, que se inicia nas geleiras dos Alpes suíços, passa pelo lago Léman, em Genebra, e vai desembocar no mar Mediterrâneo, em território francês.

"Os kogis vão nos ajudar a nos reconectarmos diretamente com as bacias dos rios Ródano e Arve e a restaurar toda a vida que há nessas regiões. É um processo que, espera-se, se dê mais rapidamente do que com base apenas na ciência", diz Mulhauser.

"Os kogis estão profundamente assustados com o que estamos fazendo com a Terra", diz Eric Julien, geógrafo e fundador da associação Tchendukua que está à frente da iniciativa. "Eles acreditam que a única esperança de sobrevivência para a humanidade é com interconexões críticas no mundo natural, por meio de uma rede sutil e oculta."

O povo kogi soma cerca de 20 mil membros distribuídos em diversos pontos da Serra Nevada de Santa Marta. Há 25 anos um grupo de ONGs passou a colaborar com eles, preocupado em conservar sua cultura. Nesse tempo, com o dinheiro recebido, os kogis compraram de volta 2.500 hectares de terra que tinham perdido para invasores. Desse grupo de ONGs participam a fundação Rezonance e a associação Tchendukua, entre outras.

Como retribuição, ainda em 2018, o povo indígena se ofereceu para fazer um diagnóstico da saúde territorial, em diálogo com cientistas ocidentais. "Para realizar esse diagnóstico, algo inédito no mundo, os índios kogis escolheram Genebra, a cidade da paz. É isso que estamos fazendo agora", diz Eric Julien.

Genebra será a porta de entrada para outras missões que dependem do sucesso da atual. A cidade abriga o maior número de instituições globais ligadas a governos e à ONU, entre elas a OMS (Organização Mundial da Saúde). São pelo menos 400 grandes ONGs multinacionais e 190 representações de governos.

Nenhum outro lugar no mundo tem um perfil tão voltado para a defesa dos direitos do homem e da saúde, em tão variadas frentes de atuação. Em nenhuma outra cidade os kogis teriam tanta exposição e visibilidade. "Eles sugerem que juntemos os nossos conhecimentos para proteger a Terra, da qual se consideram guardiães", diz Julien.

O lago Léman, na Suíça, durante o verão - Denis Balibouse - 12.jun.22/Reuters

Há quatro meses, uma delegação que incluiu cientistas e políticos esteve na Serra Nevada tratando com os kogis os detalhes da missão. Em maio passado, o Museu de Etnologia de Genebra abriu seu auditório para um debate sobre a vinda do povo indígena colombiano. O local ficou lotado.

"É um desafio enorme", diz Julien, referindo-se aos cuidados e à suscetibilidade dos indígenas, quase sempre enganados e obrigados a fugir para lugares mais altos em suas terras. "Não é fácil recuperar a confiança depois de cinco séculos de barbárie", observa.

Os cuidados e a preocupação dos kogis com a natureza não surgiram por acaso. Na região onde vivem, nos vales em meio a montanhas —uma delas é a mais alta do mundo em região próxima ao mar—, eles já testemunharam todos os tipos de intempéries e danos à natureza, desde tempestades e inundações até efeitos da presença direta do homem, como o desmatamento que alterou o sistema de chuvas e provocou o desaparecimento de lagoas e rios.

Devido à sua estrutura ecológica única, a Serra Nevada reproduz em pequena escala todo o clima do planeta, de alagamentos a secas pontuais. Como em qualquer outro lugar do mundo, o homem é o principal predador da floresta —é ele quem põe o fogo criminoso nas matas, promove o desmatamento, abre garimpos ilegais e utiliza as rotas para o tráfico de cocaína.

Os kogis não são ingênuos nem iniciantes nas suas promessas, pois possuem um histórico comprovado nessa área. Já recuperaram, por exemplo, um vale de rio destruído pelo desmatamento e por práticas agrícolas insustentáveis.

Na viagem de agora, em lugar de selva, "encontrarão uma cidade com o que há de mais avançado em uma metrópole, mas os princípios são universais", observa Julien. "Através da sua compreensão, ele podem ajudar a identificar os pontos de fragilidade nos nossos espaços de vida e aconselhar sobre a forma de preservar ou aumentar nossa resiliência ecológica", explica.

Naturalmente, há uma dimensão espiritual naquilo que os kogis fazem e no que acreditam. "Por espiritual, eles entendem, antes de mais nada, a forma como nos relacionamos com o outro, com o que comemos e, claro, com aquilo a que chamamos natureza", diz Julien.

Para Pauline Thiériot, encarregada de missão da Tchendukua, o trabalho espiritual e as práticas de gestão do ambiente e de vida em harmonia com a natureza não estão separados para os kogis. "A espiritualidade kogi está intimamente ligada às questões ecológicas, e os lugares considerados sagrados são geralmente sítios de grande beleza natural", explica.

"A presença do espiritual é inevitável", diz Mulhauser, "pois é preciso apreciar, de forma sensível e espiritual, os elementos que nos são dados a sentir". Ele observa que muitas questões surgirão por meio de sinais que não são necessariamente acessíveis através dos métodos científicos atualmente disponíveis.

"Esperamos, por exemplo, retirar ensinamentos que nos permitam antecipar futuras crises ou emergências. Em situações de ruptura, os nossos conhecimentos e saberes baseados na ciência ou na engenharia revelam-se por vezes demasiado lentos."

O diretor do serviço de águas de Genebra detalha pontos que, acredita, estarão no centro da visita dos kogis: a escassez de recursos naturais, a erosão da biodiversidade nos sistemas urbanos e periurbanos, a perda de solos, o declínio da disponibilidade de água e a ruptura dos ciclos associados às mudanças climáticas, além de questões imateriais ligadas à percepção de que os seres humanos estão perdendo sua relação com os sistemas naturais. Ele espera também uma "leitura sensível da saúde da bacia irrigada pelo Ródano e conselhos sobre como preservar ou aumentar a sua resiliência ecológica".

Pauline Thiériot, por sua vez, observa que os avanços científicos e tecnológicos não são suficientes para enfrentar os desafios atuais. "Os kogis e outros povos originários podem ser portadores de uma certa inovação para uma relação renovada com a terra e para a construção de modos de vida mais sustentáveis, cujo modelo de sociedade não se baseie na exaustão dos recursos e dos meios de vida", detalha.

De acordo com Eric Julien, os kogis respeitam nosso conhecimento técnico, que nos permite viajar e comunicar a longas distâncias, mas acreditam que precisamos de seu saber para redescobrir nossa aliança com a natureza. A solidariedade com outros povos aparece na linguagem: na língua kogi, o "eu" não existe.

O objetivo dessa missão, explica Julien, é abrir um diálogo entre diferentes visões de mundo, trabalhar em conjunto para encontrar soluções para as dificuldades que estamos vivendo e, em última análise, achar formas de alcançar a paz e a reconciliação, questões de que Genebra é um símbolo.

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