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Cristián Castro

Onda revisionista tenta purificar Pinochet e punir Allende

Nos 50 anos do golpe militar, Chile ainda se debate sobre como encarar a ditadura

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Cristián Castro

Doutor pela Universidade da Califórnia em Davis e diretor da Escola de História da Universidade Diego Portales, no Chile

[RESUMO] Nos 50 anos do golpe militar que impôs no Chile uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina, o papel histórico dos dois personagens centrais desse episódio ainda enseja discussão, o que indica a fragilidade da democracia no país, avalia historiador chileno. Revisionismo em marcha na região tenta reabilitar ditadura de Pinochet, responsável por incontáveis crimes, e diminuir importância de Allende e de seu projeto de justiça social.

O golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas chilenas contra o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, teve impacto global e se instalou no imaginário coletivo político do século 20. Nos 50 anos desse evento infeliz, proponho uma reflexão sobre como seus protagonistas adquiriram o lugar que tiveram durante décadas, bem como explorar como são hoje lembrados ou esquecidos.

Em primeiro lugar, é importante destacar que o golpe militar chileno foi um dos primeiros eventos dessa natureza a ser transmitido ao redor do mundo, graças às imagens oferecidas pela TV.

Exército em frente ao Cemitério Geral de Santiago durante enterro do poeta Pablo Neruda, Chile, 25/09/1973. Evandro Teixeira/Acervo IMS
Exército em frente ao Cemitério Geral de Santiago durante enterro do poeta Pablo Neruda - Evandro Teixeira - 25.set.73/Acervo IMS

Dessa forma, pessoas em diferentes partes do mundo viram tanques tomando o controle do centro de Santiago, enquanto aviões bombardeavam o Palácio de La Moneda, sede da Presidência. A tecnologia teve um papel fundamental em massificar certas imagens que, ao longo do tempo, configuraram nosso repertório visual sobre o período e o evento em particular.

Em segundo lugar e intimamente ligado ao primeiro, o interesse pelo Chile não era algo novo. Desde a chegada ao poder do socialista Salvador Allende pela via eleitoral, em 1970, o país passou a ocupar muitas páginas da imprensa internacional. De certa forma, o mundo se transformou em um ávido espectador dessa revolução em câmera lenta.

O Chile era visto por muitos no exterior como exemplo de tradição democrática republicana, um oásis no deserto ditatorial latino-americano. Esse é um dos fatores importantes para entender o alto impacto que o golpe militar teve na opinião pública internacional.

O caso chileno em 1973 tinha todos os elementos para um drama político eletrizante: um contexto internacional fervoroso, um presidente socialista eleito democraticamente no quintal da potência capitalista e um golpe militar particularmente violento liderado por uma figura como Pinochet.

Hoje, 50 anos depois, tudo indica que o Chile passa por uma nova batalha pela memória desse período de sua história, condicionada por uma esfera pública que não conseguiu se desvencilhar da herança cultural da ditadura.

Guerra Fria

No contexto da Guerra Fria, com a vitória de Allende, havia certa expectativa de intervenção do chamado imperialismo norte-americano. A deposição do presidente da Guatemala em 1954, a invasão da baía dos Porcos, em Cuba, em 1961 e o golpe militar no Brasil em 1964, entre outros episódios traumáticos, plantaram uma constante suspeita sobre as formas como os Estados Unidos se relacionavam com a América Latina.

Por isso, quando o general Augusto Pinochet tomou o poder, ficou evidente para muitos que o Tio Sam, as transnacionais e o dólar estavam por trás da violenta ruptura institucional chilena. Aos olhos do mundo, tratava-se de mais uma batalha simbólica no conflito ideológico das duas grandes potências.

Depois que o socialismo triunfou com Allende pela via eleitoral, o capitalismo norte-americano interveio, por meio de militares chileno. Assistia-se a uma trágica e sangrenta mudança de trincheira.

A discussão sobre a participação dos EUA na queda de Allende se instalou imediatamente na esfera pública norte-americana. Em 12 de setembro, dia seguinte ao golpe, o jornal Los Angeles Times negou qualquer responsabilidade do governo de Richard Nixon. Já um leitor fez o seguinte questionamento na revista Newsweek: "Vamos acreditar que nosso governo, que tem feito todo o possível desde a eleição de Allende para criar caos no Chile, não teve nenhuma participação na derrubada do governo chileno?".

A real dimensão da intervenção só foi conhecida anos depois, com a descoberta e a liberação de documentos secretos. Após tentativas frustradas de impedir a vitória de Allende, os EUA financiaram greves de setores estratégicos do país, dificultaram a tomada de empréstimos e a venda de matérias-primas, como o cobre, e treinaram e armaram grupos de extrema direita do Chile. A sabotagem levou a um cenário de descalabro econômico e social usado como justificativa para o golpe militar.

Hoje, sabemos que o panorama era ainda mais complexo. Historiadores como Tanya Harmer e Roberto Simon revelaram a pouco conhecida história das relações entre a ditadura brasileira e a derrubada de Allende. Esse trabalho historiográfico permitiu compreender mais precisamente as redes transnacionais que complementam as histórias nacionais da Guerra Fria em nosso continente.

Pinochet e Allende

Augusto Pinochet fez sua estreia na imprensa internacional em uma entrevista coletiva poucas horas após tomar o poder. Até então, era quase desconhecido fora das Forças Armadas. A relação entre o mundo político e o militar era limitada e funcional.

O desprezo e a indiferença com que os civis olhavam para os fardados se inverteram naquele 11 de setembro. Eram os militares que desprezavam a civilidade e excluíam o povo das decisões. Na entrevista para divulgar as diretrizes de seu governo, cercado por outros militares, Pinochet começou a construir sua imagem que daria volta ao mundo: a feição dura, os óculos escuros, os braços cruzados, uma espécie de rejeição simbólica a qualquer pressão ou estímulo externo.

O general ditador Augusto Pinochet (sentado) em pronunciamento após o golpe militar que o levou ao poder no Chile, em setembro de 1973 - France Presse

Pinochet ficou 17 anos no poder, tornando-se uma figura poderosa na longa lista de ditadores da história mundial. O ar imponente da imagem de 1973, contudo, acabou corroído em seus últimos anos por fatos que moldariam como seria lembrado após sua morte, em 2006, aos 91 anos: saúde debilitada, prisão domiciliar por cerca de 500 dias em Londres, inúmeras acusações de assassinato, sequestro e corrupção.

O ocaso do ditador teve como contraponto uma espécie de ressurreição da figura de Allende. Quando venceu as eleições presidenciais de 1970, o líder socialista captou a atenção da opinião pública internacional. O Chile parecia prestes a ser palco de uma revolução política singular.

Consciente de sua relevância histórica, Allende acreditava que seu governo teria importância similar à da Revolução Russa. O Chile seria pioneiro em estabelecer um novo modelo para a construção de uma sociedade socialista, um modelo baseado não na destruição violenta da ordem anterior, mas em sua substituição pacífica de acordo com sua tradição democrática, pluralista e libertária. O projeto de Allende incluía aumento de salários, reforma agrária, nacionalização de empresas e monopólio estatal em áreas centrais da economia, como a mineração.

A trajetória política e pessoal de Allende também o diferenciava do perfil dos revolucionários da época, que buscavam nas armas o caminho para conquistar o poder. Allende chegou à Presidência em sua quarta tentativa, após três derrotas sucessivas nas urnas. Não era, definitivamente, um Fidel Castro ou um Che Guevara.

A ditadura militar e a trágica morte de Allende, um presumido suicídio na sede do governo no próprio dia do golpe, fizeram dele uma figura de certa forma clandestina nos anos seguintes. Com a redemocratização do país, contudo, passou a ser tratado como mártir. Praças e ruas levaram seu nome, e monumentos foram erguidos em sua homenagem para perpetuar seu simbolismo nas futuras gerações.

Até muito recentemente, essas eram as sentenças da história sobre Pinochet e Allende.

Salvador Allende (1908-1973) em foto sem data - AFP

50 anos depois

Nas discussões sobre os 50 anos do golpe, muitos textos têm buscado reinterpretar a história de Allende e da ditadura, destacando, em particular, os erros da esquerda de forma mais ampla. No contexto de fortalecimento da direita no mundo e, em particular, na América Latina, sociedades como a chilena são mais receptivas a revisionismos que pensávamos, erroneamente, caducos.

Nos tempos de Bolsonaro, Milei ou Kast, Allende pode ser visto como irresponsável ou fracassado. Conquistou um lugar de respeito como democrata, mas seu governo e seu projeto de justiça social foram completamente obliterados das discussões.

Da mesma forma, os interessados em defender o modelo econômico chileno tentam desvincular Pinochet dos crimes cometidos em seus 17 anos de poder. Infelizmente, parte significativa da população chilena ainda argumenta que houve uma espécie de refundação virtuosa da nação durante a ditadura, quando a economia e a sociedade do país foram reestruturadas.

A verdade, porém, é que essas mudanças não resultaram de lutas sociais que impulsionaram essas agendas. Só foram possíveis porque instauradas sob um regime autoritário, que praticou torturas, sequestros e assassinatos.

Nestes 50 anos do golpe, busca-se reabilitar o projeto civil-militar da ditadura. Percebe-se esse objetivo não apenas na redução das horas de aulas de história nos últimos anos, com a conivência de uma classe política medíocre, mas também na construção de narrativas recentes que isolam Allende e a coalizão de esquerda que o sustentou (a Unidade Popular), descontextualizando a longa luta pelo avanço social no Chile no século 20.

Como historiadores, é um dever ético denunciar essas tentativas revisionistas. Pinochet foi uma figura que deve ser entendida nas lógicas da Guerra Fria, do anticomunismo, do terrorismo de Estado, da perseguição política etc. Isso, no entanto, não invalida que também seja interpretado como uma manifestação de outros impulsos históricos de maior alcance.

Pinochet foi a encarnação, nos anos 1970, de nosso passado profundo, do legado militar do período colonial, da exploração do povo indígena mapuche. Por trás dele havia também uma elite que queria eternizar seus privilégios e que via nas medidas de Allende um avanço preocupante das forças populares na política chilena.

Allende, por outro lado, não pode ser despojado de seu peso como figura que impulsionou mudanças sociais estruturais em um país historicamente desigual. Classificá-lo como líder fracassado ou utópico apenas reflete a tentativa de purificar uma das ditaduras mais violentas da América Latina, o que só é possível em um país que ainda não constituiu uma esfera pública democrática de fato.

Nestes 50 anos do golpe militar no Chile, é fundamental repensar as figuras de Pinochet e Allende a partir das lógicas das grandes lutas sociais do século 20.

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