Parceria de Borges e Bioy Casares teve culinária, erudição e sarcasmo

Livro reúne textos que os dois escritores argentinos criaram juntos

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Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

[RESUMO] Dois dos principais nomes da literatura latino-americana, os argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares escreveram juntos uma imensa gama de textos (romances, contos, crônicas), muitos deles marcados por humor, erudição e pitadas de mistérios. Parceria de 50 anos é agora reunida em um só livro pela primeira vez no Brasil, o que permite reavaliar uma produção por longo tempo considerada pela crítica como parte menos importante na obra dos dois autores.

Se fosse permitido pedir a escritores célebres, já mortos, umas dicas de culinária, pelo menos sabemos onde encontrar uma delas. Em "A Coalhada La Martona", escrito a quatro mãos, Adolfo Bioy Casares (1914-1999) e Jorge Luis Borges (1899-1986) nos indicam como fazer uma receita de pão de milho com coalhada:

"2 xícaras de leite coalhado
2 xícaras de farinha de milho
2 colheres de sopa de manteiga
1 e meia colher de chá de sal
2 colheres de sopa de mel
2 ovos
1 colher de chá de bicarbonato de sódio
Instruções: Passar pela peneira os ingredientes secos. Acrescentar leite coalhado e ovos batidos, assar durante 50 minutos em fogo moderado".

Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e seu marido, Adolfo Bioy Casares - Clarín

Assim como muito da obra compartilhada de Borges e Bioy, esse texto tem forte veia cômica e mostra a dinâmica de uma das primeiras colaborações de ambos, em 1936.

Na ocasião, os escritores cumpriam uma tarefa familiar, escrevendo sob encomenda, para o tio de Bioy, um texto para o folheto de divulgação da famosa coalhada, cuja empresa pertencia à família. Para isso, passaram uma semana juntos, conversando, escrevendo e rindo das próprias ideias.

No texto, eles buscam distintas origens e usos das coalhadas entre russos, búlgaros e outros povos, para concluir que se trata de um alimento fortemente vinculado à longevidade. E alertam: "É o alimento de Matusalém".

"Obra Completa em Colaboração", que sai agora pela Companhia das Letras, reúne tudo (romances, contos, crônicas e textos esparsos) que os dois escreveram juntos por meio século.

A colaboração sempre enfrentou, no mínimo, duas importantes dificuldades. Por um lado, a crítica e a sociedade leitora argentina avaliavam esses livros como parte menos importante da obra de cada um. "Em parte era tomada como uma brincadeira mútua e talvez não tenha merecido grande atenção fora do grupinho que frequentavam", afirma Julio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da USP.

Borges e Bioy Casares se conheceram e passaram a se frequentar pela ligação com a escritora Victoria Ocampo e seus famosos saraus literários. Dali também nasceria a revista Sur, na qual ambos colaboravam.

As obras escritas a quatro mãos eram assinadas com nomes fictícios, como Bustos Domecq, inventado a partir dos nomes dos bisavôs de ambos, e Suárez Lynch —heterônimos semelhantes aos de Fernando Pessoa, com estilos diferentes dos de seus criadores.

Disse Borges: "Começamos a escrever de um modo que não se parecia nem a Bioy nem a Borges. Criamos de algum modo entre os dois um terceiro personagem. E ele existe, tem vida própria sempre que estamos conversando".

A criação de personagens também passava por escolhas minuciosas de nomes. Entre eles, o detetive Isidro Parodi, Gervasio Montenegro (um cavalheiro argentino), Mario Bonfanti (gramático e purista), Marcelo Frogman (um editor de revista), Tulio Savastano (um "compadrito" de Buenos Aires).

A segunda razão de a produção conjunta não ser encarada como obra de primeira linha eram os enfrentamentos entre Bioy Casares e a viúva de Borges, María Kodama, morta em 26 de março último.

Conhecida por colocar muitos obstáculos no uso dos direitos de republicação de Borges, Kodama vivia uma relação de atritos com Bioy Casares. Em seu diário sobre Borges (um livro essencial, de 1.100 páginas, em que o dia a dia dessa parceria está registrado), Bioy afirma ter acusado diretamente Kodama de separar Borges dos amigos, até a decisão de levá-lo para morrer em Genebra, na Suíça.

A edição desta "Obra Completa em Colaboração" teria, originalmente, um prólogo do escritor argentino Alan Pauls, que acabou vetado pela viúva. "Para mim, tudo o que ela fez na obra dele foi nefasto. Eu espero que agora, com sua morte, os herdeiros, a quem não conheço, possam dar um rumo melhor a seus livros."

Os escritores Jorge Luis Borges e María Kodama em evento no Palácio do Eliseu, em Paris, em janeiro de 1983 - Joel Robine/AFP

A questão do legado de Borges ficou em suspenso depois da morte de Kodama porque nenhum dos dois havia deixado testamento, e o espólio acabou ficando com sobrinhos distantes da viúva.

Para Pauls, havia muita complementaridade entre os dois escritores e o trabalho em conjunto melhorou cada um deles como artista. "Borges era pura inspiração e brilhantismo verbal; Bioy defendia certa sensatez narrativa, a eficácia de um contar natural, seco, quanto mais invisível melhor."

Havia um aspecto, também, ligado à idade entre ambos. Quando começam a escrever juntos, Borges já era um escritor conhecido, enquanto Adolfo tinha 15 anos menos. Um era mais experiente; o outro, mais bem-inserido socialmente e mais rico.

As diferenças, contudo, não se sobressaíam quando trabalhavam juntos em sessões que não raro terminavam em gargalhadas —a ponto de a mulher de Bioy, Silvina Ocampo (irmã de Victoria), se aproximar da porta para tentar ouvir e decifrar a graça daquilo tudo.

A obra em comum também deu-lhes uma oportunidade de olhar para a sociedade argentina de modo mais solto, irônico, com comentários jocosos a respeito de seus integrantes.

Será curioso, agora, acompanhar as novas edições de Borges que possam sair sem a mão firme de Kodama. Embora a maioria dos escritores tenha especial rejeição por ela, pelas proibições, pelo modo como colocava obstáculos a reedições, é preciso reconhecer seu empenho na preservação da obra de Borges.

A perseguição aberta movida por Kodama, inclusive judicial, a um jovem autor argentino que quis assinar como sua uma obra de Borges "engordada por intervenções" revela o cuidado que dedicou aos livros de um dos maiores escritores do século 20.

Obra Completa em Colaboração

  • Preço R$ 149,90 (536 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro
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