Cotas raciais devem ser estendidas para outras áreas, dizem escritores

Ciclo de diálogos Perguntas sobre o Brasil reúne os romancistas Eliana Alves Cruz e Jeferson Tenório

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Belo Horizonte

A política de cotas raciais deve se estender para além do ensino e atingir áreas diversas, como o Judiciário e o mercado de trabalho, dizem os escritores Eliana Alves Cruz, autora de "Água de Barrela" (2016), e Jeferson Tenório, de "O Avesso da Pele" (2020).

Ambos concordam que o sistema, destacado como uma política de sucesso para a redução da desigualdade racial na educação brasileira, também foi responsável pelo fortalecimento da discussão antirracista no país e pela ampliação da presença de profissionais e especialistas negros, inclusive no âmbito da literatura.

a foto mostra eliana alvez cruz, mulher negra retinta de cabelos curtos, cortados no estilo militar. ela usa brincos de argola grande e uma camisa branca com detalhes em renda.
A escritora Eliana Alves Cruz, que se notabilizou com narrativas históricas com pontos de vista afrocêntricos; em 2022, ela lançou "Solitária", pela Companhia das Letras - Eduardo Anizelli/ Folhapress

"É óbvio que cada área precisa avaliar em que grau essas desigualdades se verificam, mas sabemos que, numa sociedade racista, machista e misógina, nós ainda temos muitas mazelas que precisam ser reparadas e corrigidas", avalia Alves Cruz.

A conversa com os escritores foi realizada durante a 22ª edição do ciclo Perguntas sobre o Brasil, realizado nesta quarta, dia 20, com a mediação da jornalista Priscila Camazano, repórter da Folha.

a foto mostra um homem negro retinto, que se apoia sobre uma mesa de madeira. ele usa óculos de grau e tem cabelos curtos
Escritor Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele", obra vencedora do prêmio Jabuti, que fala das relações entre pais e filhos e do racismo estrutural na sociedade brasileira - Carlos Macedo/Divulgação

O tema da última edição repercutiu a revisão da Lei de Cotas na educação, aprovada no início de agosto na Câmara dos Deputados. Sancionada em 2012, a legislação garante a reserva de metade das vagas do ensino superior federal para estudantes oriundos da rede pública, prevendo ainda modalidades para corrigir desigualdades de acesso entre alunos negros, indígenas, de baixa renda e com deficiência.

Com a atualização, a lei —que permanece em vigor até 2033 pelo menos— agora também destina vagas para estudantes quilombolas, reduz a renda per capita familiar máxima do candidato às cotas e sistematiza políticas voltadas para a pós-graduação.

"O vestibular é uma prova que faz uma peneira social e de corte racial", exemplifica Tenório ao discutir a necessidade de ampliação dessa política. "As cotas acabam incidindo nesse ponto, que é o momento da barreira. Se estender para outras áreas, vamos perceber que essas barreiras também existem lá".

Ele, que se apresenta como "oriundo do sistema de cotas raciais", fez parte de uma das primeiras turmas de cotistas negros a se formar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2011.

"O ensino básico não é um problema que será resolvido de um ano para o outro. Por que não melhorar o ensino básico e também oferecer o sistema de cotas? Uma coisa não invalida a outra", afirma.

Entretanto, o escritor faz uma ressalva que diferencia o que, segundo ele, é uma demanda por reparação histórica e o que é uma discussão relacionada à representatividade.

"Se tem a ideia de que a reparação se dá apenas pelo viés da representatividade, o que é um perigo. O fato de uma pessoa representar fenotipicamente uma minoria não significa que ela esteja de acordo com as reivindicações daquelas pessoas", ele diz.

"Não se trata de cooptar uma pessoa indígena ou negra para colocá-la como figurante –ou pior, chamar essa pessoa para que ela continue fazendo o que o ‘status quo’ faz. Que é o que acontece, por exemplo, com as corporações policiais."

Embora pessoas pretas, pardas e periféricas componham, em larga escala, as fileiras de batalhões, lembra Tenório, o alvo da violência policial continua sendo, na sua grande maioria, o sexo masculino e negro, como evidencia a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Ao analisar as cotas no âmbito da política brasileira, Alves Cruz faz uma comparação semelhante. "É escandaloso que uma população 54% autodeclarada negra tenha aquela quantidade de pessoas negras nas cadeiras na Câmara."

"Mas não basta ser negro. A gente teve, recentemente, um governo que utilizou pessoas negras como escudo, pessoas que não fazem um debate e nem querem refletir sobre isso", ela afirma.

"Não me diz nada ser uma pessoa negra por si só. Ela tem que vir acompanhada de um combo de propostas que realmente façam sentido para uma população majoritariamente negra e que sofre as consequências pela estigmatização."

O evento, que ainda debateu a campanha pela indicação de uma ministra negra ao Supremo Tribunal Federal (STF), a luta por uma educação antirracista e a precarização do mercado de trabalho, está disponível na íntegra no YouTube. Assista abaixo.

O ciclo Perguntas sobre o Brasil discute, desde setembro do ano passado, questões relacionadas à identidade, à cultura e aos desafios do país. O evento é organizado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, pela Associação Portugal Brasil 200 anos (APBRA) e pela Folha.

Os debates são realizados a cada duas semanas, sempre às quartas-feiras, às 16h. A transmissão ocorre nos canais do Sesc São Paulo, do Diário de Coimbra e da APBRA no Youtube. A próxima edição, marcada para o dia 18 de outubro, vai discutir a dramaturgia de Nelson Rodrigues.

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