Descrição de chapéu
Renato Pereira

Ascensão de Milei expressa fúria de precarizados contra elites

Mensagem de radicais de direita empodera quem não tem nada a perder, cada vez mais numerosos com desigualdade crescente

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Renato Pereira

Antropólogo e estrategista político

[RESUMO] Embora soem como notas de um suicida, as promessas de campanha de Javier Milei, candidato anarcocapitalista que venceu as primárias na Argentina, instigam milhões de eleitores que vivem sem proteção social em um quadro feroz de instabilidade econômica. A radicalização política, argumenta o autor, é sinal de uma era que combina degradação dos precarizados e hipertrofia das elites, situação que inflama conflitos abertos pelo poder.

"Estamos diante do fim dessa atrocidade que é dizer que, onde existe uma necessidade, há um direito. Estamos diante do fim dessa aberração chamada justiça social, que implica em roubar de alguém para dar a um outro e que se baseia em um tratamento desigual perante a lei."

Esse é Javier Milei celebrando, em um auditório lotado de Buenos Aires, a vitória no primeiro round da eleição argentina. Tentei dar pausa no streaming e ver de novo. Não lembrava um ataque tão explícito e violento ao princípio de justiça social. Líderes da velha direita normalmente criticam as políticas publicas feitas em seu nome, mas não a ideia em si, de longas raízes cristãs.

Obra simula um cardápio, contendo várias descrições fictícias de dólares comercializados na Argentina
'Cardápio' (esmalte sintético sobre madeira e verniz, 2023), da artista argentina Ivana Vollaro, incluído em exposição do Malba (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires) - Claudia Loayza/Divulgação

Milei contraria o bom senso faz tempo: viraliza fazendo propaganda de medidas drásticas de austeridade, avisa que será mais duro que o exigido pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), explica que vai abolir qualquer tipo de controle de preços. Segundo os manuais de comunicação política, suas promessas de campanha soam como as notas de um suicida.

Eu andava pela Argentina fazia dois anos, colaborando com Facundo Manes, um neurocientista e escritor que decidiu entrar na política na mesma eleição de Milei, a de 2021. Escrevi nessa época um ensaio sobre o bolsonarismo para esta Ilustríssima, tratando-o como um movimento antielitista verossímil. Ser um observador participante do processo eleitoral vizinho me estimulou, novamente, a compartilhar algumas questões.

É possível apontar tanto semelhanças quanto diferenças entre Trump, Bolsonaro e Milei. Em um ponto, porém, os três coincidem plenamente: o menosprezo à forma como a elite pensante trata seus eleitores. "Definitivamente, eles não sabem o que fazem." "É um voto emocional, de protesto, inflamado por algoritmos e conspiradores."

Não interessa a nitidez chocante de Milei. Não importa que escancare as medidas planejadas ou as fontes inspiradoras de seu radicalismo —no caso do ataque à justiça social, o economista austríaco Friedrich Hayek (1899-1992). Predomina a interpretação que falta racionalidade aos seus eleitores ou que, como a base supostamente inculta de Trump e Bolsonaro, eles votam contra seus próprios interesses.

Essa falta de reconhecimento à inteligência alheia é notável. Primeiro, por ignorar a possibilidade de que ideias ultraliberais possam fazer sentido quando milhões de pessoas votaram nelas. Uma multidão atomizada para quem o laissez-faire não é uma abstração, é uma realidade. Afinal, ela já tem que se virar sozinha: vive sem proteção, sem carreira e sem garantia alguma. Direitos, só os privilegiados. Contra esses, grita a direita radical. É mesmo tão estranho assim que ela ganhe força entre os precarizados?

Em um país onde vigora uma economia com duas moedas, o dólar e o peso, uma sociedade asfixiada pela inflação acima de 100% e dividida entre aqueles com e sem dólar, o libertário é o único a propor a dolarização total, a abolição do peso e do Banco Central. O projeto vira o tema central da eleição, e tanto a coalizão governista quanto a oposicionista concentram-se em demonstrar sua inviabilidade técnica e o impacto negativo que teria na soberania argentina. Não entendem o que significa dolarizar para quem carrega pesos no bolso: uma moeda à prova de políticos.

O segundo motivo pelo qual o cancelamento do eleitor de Milei me incomoda é que ele incorpora um preconceito real: a rejeição a pessoas que fazem suas escolhas em um quadro de instabilidade feroz, quando é particularmente difícil acreditar em alguma coisa e manter a autoestima.

É precisamente por aí que entra a mensagem empoderadora extremista: "Aqui você tem voz, aqui você conta, aqui você é quem manda". "Eu autorizo, presidente" é a assinatura no WhatsApp daqueles que apoiaram a tentativa de golpe de Bolsonaro. "Viva a liberdade, caralho" é o slogan de Milei.

Enquanto os "políticos de sempre" falam sobre como as coisas deveriam ser, sobre um mundo onde quem estuda e trabalha merece subir na vida, Trump, Milei e outros radicais de direita falam sobre como as coisas são: um mundo dividido entre "winners" e "losers", fodões e fodidos, onde a meritocracia funciona como uma forma pouco sutil de bullying, como uma fábrica de metas inalcançáveis, como a cenoura à frente do burro.

O Coringa abre a porta do trem e todos os passageiros vestem máscaras de palhaço. No filme de Todd Phillips protagonizado por Joaquin Phoenix, ele não passa de um precarizado, essa nova classe perigosa tão bem descrita pelo economista Guy Standing em 2011. Trabalha por hora, topa qualquer negócio e não é notado por ninguém até reagir com fúria a mais uma humilhação. O palhaço assassino vira famoso da noite para o dia, e pessoas invisíveis como ele passam a se reconhecer mutuamente nas ruas. Tomam consciência de classe, por assim dizer, e se levantam contra o sistema.

De onde vem a rebeldia, as votações surpreendentes de candidatos antissistema, a fúria nas ruas contra o status quo?

O antropólogo Peter Turchin vê na degradação dos precarizados e na superprodução de elites as forças gêmeas da instabilidade. Em "End Times: Elites, Counter-Elites, and the Path of Political Disintegration" (fim dos tempos: elites, contraelites e o caminho da desintegração política), publicado neste ano, ele demonstra como ciclos de desigualdade crescente favorecem o surgimento de elites aspirantes e tornam recompensadores conflitos abertos pelo poder.

Javier Milan discursa em Buenos Aires - Alejandro Pagni - 13.ago.23/AFP

O mesmo processo multiplica o número de pessoas sem nada a perder, o combustível perfeito para o circo pegar fogo. Vitórias de outsiders não são, diria Nassim Nicholas Taleb, cisnes negros —eventos altamente improváveis que têm o potencial de mudar o curso da história.

Guerra dos tronos no topo, massa precarizada na base. Turchin torna compreensível a disputa sem limites pelo poder nos Estados Unidos, o Brasil passar tão perto de um golpe de Estado, Lula restaurar o status quo e o avanço da elite aspirante liderada por Milei na Argentina. Mudanças repentinas e instabilidade extrema são o sinal da era em que vivemos, não o ruído.

Perspectivas conhecidas sobre a radicalização política merecem ser reavaliadas. Responsabilizar o modelo de negócios das redes sociais, a emergência de subculturas do ódio na internet e o enfraquecimento da mídia mainstream pela arrancada populista levam a crer que a radicalização é essencialmente um produto da colmeia digital, não o resultado de mudanças sociais profundas.

Há uma distância enorme entre reconhecer o papel das novas tecnologias na velocidade de contágio de ideias que promovem a divisão e imaginar que elas são a razão de ser das guerras culturais pelo poder.

Não vamos promover a estabilidade nem defender a democracia nos concentrando na regulação das redes sociais ou censurando aquilo que consideramos ofensivo. Em lugar disso, deveríamos nos esforçar para incorporar a multidão invisível que só se faz notar quando decide participar de um motim ou votar em um candidato antissistema, por mais bizarro que ele pareça.

A estranheza é a marca registrada de Javier Milei. O candidato não tem família e vive com quatro cachorros e a irmã. Chama os primeiros de filhos e a segunda de chefa. Como o Coringa do filme, sofreu bullying dos pais e fala disso abertamente. O que em outros tempos poderia enfraquecê-lo agora virou uma chave para dar "match". São muitos os que se sentem esculachados pela elite argentina e lotam os cultos de Milei, vestem preto, cantam rock pesado. "Somos leões, não cordeiros."

Concorrendo contra típicos "políticos-vanilla" —os que procuram cair no gosto de todo o mundo—, Milei faz do contraste uma arma, buscando nitidez, inclusive de ideias. Ele se define como anarcocapitalista, resgata Murray Rothbard, um discípulo de Ludwig von Mises, figura central da escola austríaca de economia.

Rothbard rejeita totalmente o Estado (daí o "anarco") e divide a sociedade em dois grupos: a elite e o resto, quem domina e tem privilégios e quem paga a conta. Para que os últimos aceitem servir voluntariamente aos primeiros, um enxame de intelectuais em postos-chave —escolas, mídia, entretenimento— os doutrina. Já que convencer os intelectuais a mudar de lado é improvável, Murray é bem explícito: só uma estratégia de confrontação total com a elite ou só o populismo raivoso poderão mobilizar as massas e derrubar o status quo. Soa familiar?

Famílias fortes e doutrina religiosa são decisivas para manter de pé a sociedade e garantir a liberdade individual. Como bem apontou Pablo Stefanoni, autor de "A Rebeldia Tornou-se de Direita?", Rothbard faz a ponte entre o libertarianismo e o tradicionalismo, a convicção de que é preciso resgatar valores primordiais das mais antigas religiões para vencer o cerco da modernidade.

Durante o comício de encerramento de campanha, em uma arena lotada com 15 mil pessoas, Javier Milei projetou no telão a imagem de uma figura no deserto. Coberto por um solidéu e um talit, ele toca o shofar, um lindo instrumento feito de chifre de carneiro. É o chamado ao arrependimento e à retomada do bom caminho na tradição judaica. Milei não é judeu, mas pretende se transformar em um. Lê a Torá e os economistas austríacos com a mesma obstinação.

Após a revolta dos palhaços nas ruas de Gotham, o Coringa está preso no hospício. Ele mata a psiquiatra e é perseguido pelos corredores, mas não sabemos o seu fim. O futuro está aberto?

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