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Tiago Mesquita

Antonio Dias criou arte negativa ao enfrentar crise das vanguardas

Livro retrata embates do artista em cenário global de turbulências políticas e impasses do modernismo

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"Programação para um Assassinato" (1964), obra do artista plástico Antonio Dias Divulgação

Tiago Mesquita

Crítico de arte

[RESUMO] Livro comenta trajetória de Antonio Dias nos anos 1960 e 1970, sobretudo sua passagem por Milão, e reflete a respeito de como esse percurso entre Brasil e Europa, em contexto global de crises das vanguardas e ditadura militar por aqui, levou o artista a repensar a pintura e a pôr em tensão sua obra em geral.

O livro "Arte Negativa para um País Negativo: Antonio Dias entre o Brasil e a Europa," escrito pelo crítico de arte Sérgio Martins, aborda a obra do artista produzida nos anos 1960 e 1970.

Nesse período, Antonio Dias (1944-2018) passou por diversas transformações em seu trabalho e mudou de país, vivendo um longo período de autoexílio. Durante suas jornadas, dialogou com vanguardas de diferentes regiões e explorou os dilemas associados a essas experiências. A produção de Dias, como observa Martins, reflete as diferentes crises enfrentadas pelas neovanguardas e pelo modernismo.

O artista plástico Antonio Dias e sua exposição na galeria Strina, em Sao Paulo, em 2005 - Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Nos 1960 e 1970, o artista passou por cidades de diversos países —Brasil, França, Itália, Estados Unidos, Nepal e Alemanha. No entanto, o livro se concentra principalmente em sua estadia em Milão. Esse foi um momento em que a Itália estava experimentando um notável crescimento econômico, um movimento jovem vibrante como uma categoria social emergente e, consequentemente, o surgimento de muitas contradições do pós-guerra. O sentido da produção de arte e pintura também era colocado em crise por grupos distintos, por razões variadas.

Como melhor relata Sérgio Martins: "O que torna a trajetória de Dias particularmente esclarecedora é menos ele experimentar a crise do modernismo —todos os seus contemporâneos o fazem, de um jeito ou de outro— e mais o fato de seu percurso transnacional redobrar essa experiência disjuntiva ao aproximar e pôr em tensão essas realidades díspares" (pág. 19).

O livro se inicia com as disputas pelo papel da vanguarda no Rio de Janeiro. Com o acirramento político e a instalação da ditadura cívico militar, aumenta-se a voltagem do debate de como a vanguarda deveria responder diante da situação dramática do subdesenvolvimento.

A partir de uma abrangente fortuna crítica —de autores como Mário Pedrosa e Hélio Oiticica, Paulo Sérgio Duarte e Pierre Restany, Sônia Salzstein e Gustavo Motta, Mário Barata e Luiz Renato Martins, entre outros—, Sérgio Martins constata a centralidade da obra de Antonio Dias na controvérsia.

O trabalho de Dias é parte e formulador desse debate. Segundo o crítico, "não é exagero dizer que a disputa em torno do sentido de sua nova pintura era também uma disputa sobre o sentido da neovanguarda brasileira" (pág. 33).

Tal nova pintura começou a ser feita ainda na primeira metade dos anos 1960, quando a superfície objetual da tela de Antonio Dias —segundo Martins, formato retido criticamente da abstração informal de pintores catalães, como Antoni Tàpies e Modest Cuixart— passa a receber signos populares e figuras gráficas montados em uma grade diagramática sobre painéis cobertos de gesso.

Diferentemente da pop art, os elementos do trabalho de Antonio Dias não eram símbolos velozes, sem espessura, apropriados de contextos comerciais. O quadro é uma montagem de fragmentos viscerais e enfurecidos, distribuídos por superfícies contíguas por vezes acopladas a apêndices feitos em materiais uns estranhos aos outros.

Para o debate crítico brasileiro, a diferença entre o trabalho de Antonio Dias, a pop norte americana e o novo realismo francês passa a ser determinante. Sérgio Martins, comentando o que chama de "objetos autocontidos" do artista, feitos já em Paris, fala em "choque alegórico entre elementos francamente contraditórios" (pág. 132). Tal modo de incorporação é comparado à posição particular do Brasil no processo de modernização capitalista.

Na modernização à brasileira, a importação dos produtos culturais da cultura de massa andou de mãos dadas com o aprofundamento do atraso e da heteronomia. Não por acaso, Mário Pedrosa, ao comparar, hiperbolicamente, Antonio Dias com as vanguardas do norte, diz que: "A narrativa linear da história em quadrinhos é para ele uma nutrição vegetariana. Para a sua sede e a sua fome, só mesmo a grossura do real, ao nível baixo, ou a substância da carne, do sangue".

"Programação para um Assassinato" (1964), obra do artista plástico Antonio Dias - Divulgação

Em outra clave, Sérgio Martins nos mostra que tal espessura dos elementos da obra brasileira e francesa do artista marcaria uma diferença em relação a Hélio Oiticica no que diz respeito à gratificação dos sentidos.

"Se a vasta gama de texturas e cores dos bólides de Oiticica desperta o desejo de tocá-los, de abri-los, os objetos de Dias parecem antes nos perguntar se queremos meter a mão naquela cumbuca. [...] Sem se acomodar ao paradigma ambiental ou adotar uma estratégia que emulasse a circulação de mercadorias, permanecia para o artista o problema de formular uma poética que lhe permitisse superar, de modo constante, a extrema autocontenção de seus objetos" (pág. 136).

É aqui, também, que o autor constata a relação imbricada e contraditória entre a imagem do trabalho e sua materialidade, o que será perene em outras fases. A contradição apareceria mesmo em obras de sintaxe concisa, como as pinturas pretas, que o artista fez a partir de 1968, opondo legenda, objeto e imagem. Isso também justifica a insistência de Antonio Dias em continuar a pintar, mesmo quando explora outras linguagens.

Sérgio Martins conclui isso a partir da comparação da obra com movimentos antiartísticos, interessados em eliminar a obra de arte, o objeto destinado à circulação mercantil ou feito de acordo com as técnicas tradicionais. A obra de Antonio Dias se desenvolveu em diálogo com iniciativas radicais como aquelas, como o pouco conhecido Grupo Art Terminal, de Milão, e as discussões sobre a arte ambiental de Hélio Oiticica.

De acordo com Martins, embora o artista não suprima a obra em nome de experiências vitais, sua resposta não é menos radical. Em suas pinturas pretas, desfaz qualquer lembrança de figuração antropomórfica de seus trabalhos anteriores. A recusa da imagem e o uso da palavra são comparados à arte conceitual, que pretendia obliterar a pintura como prática e adotar meios passíveis de reprodução. Contudo, como ressalta o autor, o artista preserva a pintura como prática.

Em relação à arte conceitual, o gesto é interpretado com sentido duplo: como marcador de distância em relação ao positivismo técnico do conceitualismo angloamericano, como o do grupo ligado a Seth Sieglaub, mas também como um jogo perceptivo de articulação enigmática entre palavra e visível, onde um termo contamina o outro.

O livro fala da obra como uma "triangulação entre imagem, linguagem e suporte" tensa e enigmática. Tal interpretação faz eco às oposições disjuntivas percebidas em trabalhos anteriores. Assim, manter a pintura seria não apaziguar as contradições que permeavam o objeto, mas, no caso desta obra específica, potencializá-las.

Tal abordagem dos monocromos legendados de Antonio Dias permite uma das interpretações mais originais do livro. Sérgio Martins escreve com o olho em várias interlocuções: tenta fazer um balanço do debate das vanguardas no Brasil nos anos 1960, inclui novos atores e episódios nessa reavaliação, faz uma historiografia crítica de acontecimentos da arte em Milão, mas também responde a abordagens recentes sobre a inexorável dimensão mercantil da obra de arte.

Quando interpreta a série "Illustration of Art", de Antonio Dias, Martins tem na cabeça um debate sobre o caráter fetichista da pintura, sua possibilidade de relativa autonomia reflexiva. Pensa em diálogo com as teorias de autoras e autores como Isabelle Graw, Nicholas Brown e os teóricos alemães da Crítica do Valor.

A discussão é intrincada, repleta de detalhes. De qualquer modo, fala sobre a possibilidade de a pintura possuir autonomia relativa, devido ao fato de ser um produto comercial.

O artista não apostaria em uma especificidade redentora da arte, mas tampouco entregaria os pontos. A resposta, difícil de sintetizar, viria do sentido negativo da sua produção. Estaria em fazer ver a parte que faz falta, ou, como diria Antonio Dias, "para tornar isto visível, terei que suprimir parte disto".

A discussão não é fácil, os termos nem sempre são claros, mas é um grande passo teórico. Amplia-se o entendimento de crises enfrentadas pelas vanguardas artísticas em um contexto estético e geográfico multifacetado.

Arte Negativa para um País Negativo: Antonio Dias entre o Brasil e a Europa

  • Preço R$ 85,60 (256 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Sérgio Martins
  • Editora Ubu
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