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Dirce Waltrick do Amarante

Coleção mostra pioneirismo indígena no teatro brasileiro

Caixa reúne 11 textos teatrais de representantes de povos de várias partes do Brasil

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de 'Para Ler Finnegans Wake de James Joyce' e 'James Joyce e Seus Tradutores'. Organizou e cotraduziu 'Finnegans Rivolta', de Joyce

[RESUMO] Pioneiros do teatro feito no Brasil, ainda que suas práticas culturais não se enquadrem nos conceitos da estética ocidental, os indígenas encenaram suas narrativas em espetáculos que fundem, sem distinções, música, dança, religião e ritos, por exemplo. Caixa recém-lançada agrupa e mostra a variedade desses textos, compondo, segundo organizadores dos livros, uma visão descolonizadora a respeito das diferenças culturais entre os povos.

Uma das primeiras perguntas que faço nas minhas aulas no curso de artes cênicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) é: "Onde nasceu o teatro?". A resposta, ainda que titubeante, costuma ser: "Na Grécia".

Essa provocação me permite citar um trecho de uma aula magna ministrada em 1992 pelo escritor Ariano Suassuna: "Em qualquer manual de teatro escrito no Brasil, vão encontrar que o teatro no Brasil surgiu com os jesuítas, o teatro de Anchieta no século 16. E encontra também que o teatro, em geral, nasceu na Grécia". Suassuna prossegue: "Ora, o que nasceu na Grécia foi o teatro grego! Acho uma coisa tão lógica, mas o pessoal bota: o teatro nasceu na Grécia. Quer dizer, o teatro brasileiro nasceu na Grécia, o início do teatro chinês foi o teatro grego? O teatro brasileiro, olhe aqui, o teatro brasileiro nasceu [...] aqui".

O escritor Ariano Suassuna em sua casa, em Recife - Eder Chiodetto - 8.set.97/Folhapress

O teatro brasileiro, concordo com Suassuna, nasceu aqui, e, acrescento, com os indígenas, ainda que as práticas artísticas e culturas indígenas não se encaixem facilmente em conceitos da estética ocidental. A palavra teatro, de origem grega, tem sido usada, porém, para nomear a arte extraocidental.

De acordo com Patrice Pavis, em "Dicionário de Teatro", o conceito pode ser abrangente: "O teatro é mesmo, na verdade, um ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios ópticos o constituem. Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação" (tradução de Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudinyr Fraga e Nanci Fernandes).

Uma das características da cultura indígena seria a não separação entre música, dança, pintura, rito, religião, história, política etc. Se essas práticas são classificadas em gêneros estanques, em espetáculos, exposições e publicações de obras dos povos originários, isso não provém dos próprios autores, mas obedecem à lógica que estrutura as instituições e também o mercado.

O termo mito, assim como o termo teatro, passa atualmente por revisão. No livro "As Línguas da Tradução", organizado pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC e pela Universidade de Princeton, os pesquisadores Pedro Cesariano e Jamille Pinheiro Dias propõem o conceito de arte verbal na análise das narrativas indígenas. Já Joana Mongelo, doutoranda de etnia guarani, emprega, em outras publicações, a locução história viva no lugar de mito, para enfatizar o vigor e a atualidade dos relatos dos povos originários.

Tanto a arte verbal como a história viva poderiam se encaixar no conceito abrangente de teatro, tal como foi proposto por Pavis.

Pedro Cesarino, ao descrever o processo de tradução de "yawa shõka, canto para amansar os porcos do mato", lembra que "esses cantos acompanham eventos que não acontecem dentro do corpo-maloca do xamã que os enuncia, mas sim em posições paralelas nas quais interagem as espíritas auxiliares Shoma e os demais agentes antagonistas (espíritos agressivos, por exemplo)".

Quando Cesarino recolheu o canto, ele havia sido entoado na forma de um rito que poderíamos chamar de teatral e religioso, durante o convalescimento de um jovem caçador: "Enquanto o jovem era rezado, Antonio [Brasil Marubo], por sua vez, cantava outro shõki sozinho sobre um pote contendo fezes, pelos e pedaços de terra com os rastros das queixadas [...]. Ao final, o pote seria então pendurado na porta da maloca, a fim de atrair os porcos que, de fato, se aproximaram da aldeia em grande número no dia seguinte, rendendo uma farta caçada".

Por isso, a tradução da arte verbal impõe grandes desafios. Na versão de certos cantos bororos, Sérgio Medeiros propôs, em um de seus livros de poesia, uma recriação pessoal do "Canto de Caça às Antas", com a seguinte observação: "Não pude traduzir o variado vocabulário bororo, em especial a minuciosa enumeração dos diversos gaviões. Meu ponto de partida é a versão ‘rústica’ de César Albisetti e Ângelo Jayme Venturelli. Os cantos de caça e de pesca, convém lembrar, são entoados sempre na choupana central, na noite que precede uma caçada ou uma pescaria coletiva".

"Dessa cerimônia participam as mulheres da aldeia, que são então autorizadas a entrar na casa dos homens para louvar a beleza dos animais. Cada canto tem um chefe, o qual é, segundo os autores da enciclopédia bororo, o indivíduo que inicia e guia o ritual, postando-se de pé e marcando o ritmo com um par de pequenos maracás. Outros índios reforçam o ritmo com um tamboril e instrumentos de sopro."

A pesquisadora Jamille Pinheiro Dias aconselha ser "preciso evitar ao máximo os empobrecimentos na recepção da performance ritual pela escrita alfabética". É preciso também, diz Pinheiro, "tomar consciência de que muitas vezes se estará lidando com ‘textos-fontes’ que só se tornaram audíveis porque houve um árduo processo de aprendizado físico e intelectual, além de negociações com seres não humanos, donos dos cantos, espíritos mestres de diferentes patamares do cosmos, como nos ensinam os especialistas indígenas da Amazônia".

Por tudo isso, a seguinte afirmação recente do escritor e ator Daniel Munduruku causa consternação: "Eu que inventei a literatura indígena, isso não existia, sou pioneiro". Não estaria ele reproduzindo o mesmo discurso do Ocidente em relação à "invenção" do teatro?

Nos palcos, os povos indígenas vão aos poucos ganhando protagonismo e canibalizando não só o conceito de teatro ocidental, como também o de dramaturgia, área em que colaboram com autores consagrados.

Ilustração de Ziel Karapotó para a peça "O Silêncio do Mundo", de Ailton Krenak e Andreia Duarte, que integra o livro "Caixa de Dramaturgias Indígenas"
Ilustração de Ziel Karapotó para a peça 'O Silêncio do Mundo', de Ailton Krenak e Andreia Duarte, que integra o livro 'Caixa de Dramaturgias Indígenas' - Reprodução

Zé Celso, por exemplo, trabalhava na adaptação de "A Queda do Céu", a partir dos relatos de Davi Kopenawa, antes do acidente que o vitimou. A primeira leitura pública da peça foi apresentada em 2023 na terceira edição do TePI (Teatro e os Povos Indígenas), em São Paulo, com curadoria de Ailton Krenak e Andreia Duarte.

Na mesma ocasião foi lançada a "Caixa de Dramaturgias Indígenas" (n-1 edições), organizada por Trudruá Dorrico e Luna Rosa Recaldes. Ela contém 11 textos teatrais, assinados por indígenas de várias partes do Brasil, além de estrangeiros, oriundos do Chile e da Argentina. Algumas dessas peças trazem a colaboração de não indígenas.

Segundo as organizadoras, se trata do "primeiro compilado de dramaturgias dos povos originários publicado no Brasil, até onde sabemos". Dorrico e Recaldes enfatizam o fato de o projeto ser político, uma vez que "o gênero teatro foi utilizado pelos jesuítas, sob o nome de auto, para moralizar e catequizar os povos indígenas. Sabemos que catequizar foi o mesmo que colonizar".

Assim, a caixa "propõe uma descolonização acerca das diferenças culturais entre os povos, suas cosmogonias, transmutando a percepção equivocada do ser indígena como único e homogêneo".

Reunindo pequenos livros muito diversos entre si, a caixa apresenta peças em que o português se mistura com línguas indígenas. A peça "Contra Xawara", de Juão Nyn, é escrita em português, mas coloca o "português de ponta cabeça, transformando o Y em Oka".

Uma boa parte das peças, para usar um conceito ocidental, poderia ser considerada pós-dramática, no sentido dado por Hans-Thies Lehmann: "O novo teatro, de acordo com o que ouvimos e lemos, não é isto, não é aquilo e nem é outra coisa: predomina a ausência de categorias e palavras para a determinação positiva e a descrição daquilo que ele é. Pretende-se aqui levar tal teatro um passo além e estimular métodos de trabalho teatrais que escapem da concepção convencional sobre o que o teatro é ou precisa ser" (tradução de Pedro Süssekind).

A segunda cena de "Silêncio do Mundo", dramaturgia de Ailton Krenak e Andreia Duarte, é quase uma conferência de Krenak, recém-eleito para a academia brasileira de letras.

Ele conta que, com Davi Kopenawa Yanomami, visitou Atenas (o berço do teatro para muitos). Foram à Acrópole, ao Arco de Adriano e ao Templo de Zeus: "Chegamos lá perto do mar Egeu, numa ruína, com aquelas colunas quebradas, com pedra caída para todo lado, restos de antigos templos tombados no chão e um mar lindo à nossa vista".

Eles contemplavam a paisagem quando lhes perguntaram o que haviam achado desse lugar. Kopenawa se adiantou e respondeu: "Eu gostei de vir aqui, porque agora eu sei de onde saíram os garimpeiros que vão destruir a minha floresta, fuçar a minha floresta como se ela fosse pó. O pensamento deles está aqui. Eles fizeram isso aqui e foram fazer o mesmo lá onde eu vivo. Eles reviram a terra, eles quebram tudo".

Krenak então comenta que esse cenário em ruínas oferece "a completa compreensão daquele tempo mítico em que os antigos gregos viveram, quando o Olimpo era um lugar de trânsito de seres divinos, bem como da passagem daquele lugar para um lugar histórico, onde você faz monumentos, constrói templos, constrói cidades e faz guerras. É a transição do tempo do mito —tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem— para um mundo chapado, com uma história linear".

Talvez o rito indígena atualize o vigor das origens do teatro cada vez que um mito é encenado numa aldeia, numa praça, num palco.

Caixa de Dramaturgias Indígenas

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