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Alex Solnik

Netanyahu transforma Hamas em vítima com guerra total a Gaza

Israelenses, cansados do líder de extrema direita, preferem encontrar reféns vivos a ver palestinos morrerem em ataques

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Alex Solnik

Jornalista, colunista do portal Brasil 247 e comentarista da TV 247

[RESUMO] Autor sustenta que árabes se equivocaram em 1947, ao rejeitar o Plano de Partilha da Palestina da ONU, e que Israel errou em 1967, quando contrariou a determinação de retirada das Forças Armadas dos territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias. Em sua avaliação, Israel nunca atacou os palestinos primeiro e não pode ser chamado de colonialista, mas suas respostas militares —sempre desproporcionais, como acontece agora na Faixa de Gaza— transformam o país no pior lar judaico do mundo.

Ontem eu dormi o dia inteiro. Agora estou assistindo a um belo filme russo dos anos 1950, "O Idiota", baseado em Dostoiévski.

Não quero ver bombas nem corpos dilacerados. Já morri, já fui ferido, já fui sequestrado. Em uma guerra, não há vencedores. Todos perdem. Uns mais, outros menos, mas todos perdem alguma coisa.

Sinalizadores lançados por Israel no norte da Faixa de Gaza - Aris Messinis - 30.out.23/AFP

A guerra mata até quem não está em guerra. Ouço o zunido dos mísseis no meu quarto, mesmo a 10 mil quilômetros de distância. Os gritos das mães pelos filhos. Vejo o pavor dos reféns. Sinto o cheiro de carne queimada. Estou soterrado pelos escombros.

Se alguém me perguntasse, em 1947, se era uma boa ideia todos os judeus morarem em um só país, eu diria que não. Ainda mais um país cercado de países inimigos por todos os lados, profundamente religiosos e que professam uma fé rival da judaica. Não, mil vezes não!

É mais seguro espalharem-se por várias nações, eu diria aos defensores dessa ideia. Vivendo todos em uma só, jogam uma bomba atômica neles e morrem todos. É uma espécie de gueto! Eu não vou morar lá.

Mas a história não tem botão de reset, e nem todos pensam como eu. Também acho que os judeus, àquela altura, não tinham escolha. Perseguidos pelo czar, que não permitia, por exemplo, que tivessem terras e depois sob ataque dos pogroms da Rússia e da Ucrânia, os que conseguiram fugir correram para a Palestina.

Não foi o caso do meu avô Baruch Davidson. Tomaram sua pequena loja de tecidos em Kurilovitz e o deportaram, com minha avó Sheva, para a Sibéria, um dos lugares mais gelados e inóspitos da Terra. Em dois anos, ela morreu de tuberculose.

Para escapar dos pogroms, os que puderam fugiram para a América ou para a Palestina. A América estava distante. Mais próxima, a Palestina foi o destino principal. Estão lá há mais de cem anos.

Em 1917, a Palestina, depois de quatro séculos de domínio do Império Otomano, virou protetorado do Reino Unido, onde moravam pouco menos de 100 mil judeus e 525 mil palestinos. Os palestinos nunca foram donos, formalmente, da Palestina, embora morassem lá havia séculos.

Em 1921, os britânicos dividiram o território em dois: a maior parte para a Transjordânia (futura Jordânia) e a menor para "um futuro lar judaico". Não foi uma boa solução. Árabes e judeus se envolveram em conflitos sanguinários nos anos seguintes.

Em fevereiro de 1947, o Reino Unido, sem condições de pacificar os oponentes, levou a "questão palestina" para a ONU resolver. A essa altura, havia aproximadamente 630 mil judeus e 1,2 milhão de palestinos.

Os Estados Unidos, a maior potência capitalista e a URSS, a maior potência comunista, os grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial contra os nazistas, apoiaram o Plano de Partilha da Palestina, que dividia o território em dois: cerca de 53,5% para o Estado judeu, cerca de 45,3% para o Estado palestino e Jerusalém e Belém sob controle internacional.

O plano, aprovado em 29 de novembro de 1947 pela Assembleia Geral da ONU, presidida pelo chanceler brasileiro Osvaldo Aranha, com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções, foi rechaçado pela Liga Árabe, formada por Egito, Arábia Saudita, Síria, Iêmen, Iraque, Líbano e Transjordânia, que declarou guerra a Israel em maio de 1948 e jogou a resolução da ONU no lixo.

Israel venceu a guerra em 1949. Os palestinos, fugindo do conflito, se estabeleceram na Cidade de Gaza, que, ao longo da sua história milenar, foi subjugada por filisteus, macedônios, romanos e otomanos e, àquela altura, era território egípcio.

A Faixa de Gaza (365 km2) foi delimitada e confirmada pelo armistício entre Egito e Israel de 24 de fevereiro de 1949, ampliando o espaço ocupado pelos palestinos sem pátria e definindo suas fronteiras com Egito e Israel, com status de território dentro de um país, sem o reconhecimento de fronteiras internacionais.

O primeiro mandatário da Faixa de Gaza foi o Governo de Toda a Palestina, a partir de setembro de 1948, proclamado pela Liga Árabe e dissolvido em 1959. Em seguida, Gaza foi controlada pelo Egito até 1967.

Na Guerra dos Seis Dias, derrotados pelos israelenses, os egípcios entregaram parte de seus domínios, inclusive a Faixa de Gaza, aos vencedores.

Tal como ocorreu com os países árabes, que rejeitaram a resolução 181 da ONU em 1947, os israelenses fizeram o mesmo em relação à resolução 242, de 22 de novembro de 1967, que determinou "a retirada das Forças Armadas de Israel dos territórios ocupados durante o recente conflito".

Os árabes erraram em 1947, e Israel errou em 1967. Um erro não justifica o outro. Eu sou judeu, mas não concordo com todas as decisões dos governos israelenses do passado e do presente.

Gaza sempre foi um barril de pólvora. É óbvio que seus moradores, derrotados por Israel em uma guerra devastadora, e seus descendentes, sintam ódio profundo por Israel. Nunca aceitaram a derrota. Sempre buscaram a vingança. Sempre atacaram Israel por meio de grupos terroristas, a começar pela OLP (Organização pela Libertação da Palestina).

Pouco mais de 25 anos depois, os Acordos de Paz de Oslo de 1994 deram sinais de que Israel e palestinos poderiam conviver e a seus mentores —Yitzhak Rabin, Yasser Arafat e Shimon Peres— foi outorgado o Nobel da Paz de 1994. A OLP, de Arafat, tinha abdicado do terror.

Mas o assassinato de Rabin pelo estudante israelense Yigal Amir, inimigo do cessar-fogo, com dois tiros nas costas em um comício pela paz em Tel Aviv em 1995, pôs tudo a perder.

Yasser Arafat (dir.), presidente da Organização para a Libertação da Palestina, cumprimenta o primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin em encontro na Casa Branca com o presidente Bill Clinton - Gary Hershorn - 13.set.93/Reuters

Os acordos viraram letra morta, em grande medida descumpridos por Israel, que não abriu mão de expandir seus assentamentos. Só o que vingou foi a criação da Autoridade Palestina, designada a chefiar a administração dos "territórios palestinos ocupados", segundo a definição da ONU.

Os Acordos de Oslo dividiram os territórios palestinos em três áreas administrativas: 1) área sob controle civil e de segurança da Autoridade Nacional Palestina; 2) área sob controle militar de Israel e civil palestino e 3) total controle de Israel.

Em 2005, o premiê Ariel Sharon, em nova tentativa de distensão, retirou do território palestino 8.000 colonos e as tropas que os protegiam. De todo modo, a Faixa de Gaza continuou pertencendo ao território de Israel, sob governo civil palestino.

O que parecia sólido desmanchou-se no ar a partir de janeiro de 2006, quando o Hamas venceu as eleições para o Parlamento Palestino, derrotando o Fatah, com o qual travou violentos combates que resultaram na mudança do Fatah para a Cisjordânia, sede da Autoridade Palestina até hoje.

"As últimas eleições parlamentares, realizadas em 2006, foram vencidas pelo maior rival do Fatah, o partido islâmico Hamas, que tem como compromisso a destruição do Estado de Israel", escreveu a jornalista Yolande Knell, da BBC News.

Poucos meses depois, em 25 de junho, o Hamas começou a cumprir seu "compromisso": invadiu Israel e sequestrou o soldado Gilad Shalit.

Um mês depois, Israel deu início à Operação Chuvas de Verão, que consistiu em bombardeios de pontes e da central elétrica —700 mil palestinos ficaram sem água, energia elétrica e outros serviços essenciais, e os israelenses ocuparam o centro de Gaza e prenderam ministros e deputados do Hamas na Cisjordânia.

Os inimigos de Israel —Hamas, Fatah, Comitê de Resistência Popular e Jihad Islâmica— responderam com milhares de foguetes sobre o território israelense, o que deu origem à Operação Nuvens de Outono, que mirou no local de onde os foguetes eram lançados: Beit Hanoun.

O resumo das duas batalhas é o seguinte: morreram cerca de 402 palestinos (277 militantes armados, 117 civis, 6 policiais, 2 guardas presidenciais), 65 militantes foram capturados e mil pessoas ficaram feridas; do lado israelense, morreram 11 pessoas (5 soldados, 6 civis), 38 soldados foram feridos, um soldado foi capturado, 44 civis ficaram feridos.

Tudo começou com o sequestro de um soldado israelense.

Após o colapso de uma trégua temporária, Israel organizou, em 27 de dezembro de 2008, a Operação Chumbo Fundido, que consistiu, de novo, em pesados bombardeios aéreos e contabilizou, em 22 dias de combates, 1.400 palestinos e 13 israelenses mortos.

Em resposta a quatro dias sucessivos de bombardeios do Hamas no sul do país, Israel lançou a Operação Coluna de Nuvem em 14 de novembro de 2012. Sete dias depois foi assinado o cessar-fogo, mediado pelo Egito.

Em 2014, em resposta ao assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia, Israel infringiu 2.125 mortes aos palestinos; um jovem palestino foi queimado vivo por judeus em Jerusalém.

O Hamas e a Jihad Islâmica voltaram a atacar Israel com foguetes em maio de 2021, depois de confronto de policiais israelenses com palestinos, que protestavam contra despejos no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém.

Israel revidou bombardeando bases de foguetes do Hamas; cerca de 280 palestinos morreram. Israel e Hamas assinaram o cessar-fogo em 21 de maio.

Esses são os fatos históricos incontornáveis dos confrontos entre os grupos terroristas da Faixa de Gaza e o Estado de Israel, dos quais podemos concluir que: 1) os judeus não invadiram a Palestina, migraram para lá com autorização dos britânicos e estão lá há mais de cem anos; 2) quem não aceitou a divisão da Palestina em dois estados, em 1947, foi a Liga Árabe; 3) Israel nunca incorporou terras dos palestinos e sim de países, como o Egito, depois de vitórias em guerras; 4) Israel nunca atacou primeiro, com exceção, talvez, da Guerra dos Seis Dias, sejam países, sejam grupos terroristas; 5) Israel não cumpriu a resolução da ONU que ordenou devolver os territórios conquistados; 6) Israel nunca foi colonialista —assentar colonos não é ser colonialista; colonialistas em relação à Palestina foram os otomanos e os britânicos; 7) as respostas israelenses sempre foram desproporcionais.

Aí veio o 7 de Outubro. Ainda sabemos pouco sobre como e por que aconteceu e seus desdobramentos e consequências. Há duas guerras, na verdade: a guerra no front e a guerra nas redes sociais, ambas muito acirradas e destrutivas.

Eu queria ponderar algumas considerações.

Não há dúvida que uma investida ousada como essa, só comparável ao ataque às Torres Gêmeas de Nova York em 2001, foi planejada por meses em todos os detalhes. Tampouco se discute o talento e a inteligência dos palestinos, milenar povo árabe. O exemplo mais evidente é a rede de túneis subterrâneos que construíram.

Tendo planejado tudo nos mínimos detalhes, como estamos agora sabendo por meio de interrogatórios de terroristas presos por Israel, o Hamas sabia que a resposta de Israel também seria a mais furiosa de todas. O histórico era esse.

Netanyahu, atônito e surpreendido pelo ataque sem similares, o que, é claro, foi uma falha da inteligência e da defesa israelenses, teve que escolher entre duas opções.

Ou se deixava posar de vítima da mais bárbara investida do Hamas, com o que ganharia a irrestrita solidariedade do mundo e focava negociar a libertação dos reféns ou reagia no modo vingança, com o intuito de acabar de uma vez por todas com as provocações sanguinárias, declarando guerra total e irrestrita à Faixa de Gaza.

Ao decidir pela segunda opção —como era de esperar, em razão do histórico dos conflitos e da sua posição política de extrema direita— Netanyahu tem apanhado mais que o Hamas.

O mundo já se esqueceu do 7 de Outubro e do terror que produziu ao sequestrar civis inocentes israelenses, sejam adultos, crianças, mulheres, idosos, doentes ou sãos. As lembranças mais frescas são as da bomba no hospital al-Ahli Arab e das mais de 2.300 crianças palestinas mortas.

A propaganda disseminada pelos palestinos, muito bem-feita e impactante, conseguiu convencer parte significativa da comunidade internacional de que Israel atacou o hospital e matou crianças por ser intrinsecamente cruel e covarde, o que não faz sentido algum, a não ser que Netanyahu tivesse a intenção de se tornar o governante mais sanguinário do planeta.

Mirar em um hospital ou nas crianças seria estúpido, pois não atingiria os terroristas e só ajudaria a macular a imagem de Israel. Como maculou, de fato. Não duvido da bomba nem do número de crianças mortas, só não concordo que esses foram os alvos.

Em contraposição, já que os israelenses ou os judeus são maus e sanguinários, os palestinos e o Hamas são intrinsecamente bons, tolerantes e defensores dos fracos e oprimidos. O Hamas passou a receber solidariedade, não Israel. Netanyahu conseguiu transformar o Hamas em vítima.

O lar judaico, que deveria ser o melhor lugar para os judeus, agora é o pior. Nova York, Paris, Londres, São Paulo —nenhum lugar é seguro para os judeus agora. Quem terá coragem de ir a uma sinagoga sem um colete à prova de bala?

Em um campo de batalha, não nascem flores.

Haja o que houver, Israel não será varrido do mapa, os palestinos não serão varridos do mapa, mas o Hamas tem que acabar ou renunciar ao terrorismo, tal como fez a OLP.

Não falo em exterminá-los, mas que façam como Yasser Arafat, reneguem o terror. Os demais grupos terroristas deveriam fazer o mesmo, tal como não existem mais os grupos terroristas israelenses Haganá e Stern, que cometeram barbaridades durante a guerra civil.

Os israelenses —judeus e árabes— já estão com Netanyahu por aqui. Ele vai cair assim que vierem o cessar-ódio e o cessar-fogo.

Enquanto houver grupos terroristas em Gaza e na Cisjordânia, não haverá paz nem progresso. Ausentes, não será preciso Israel cercar Gaza por muros e manter essa que é, segundo consenso mundial, a infame "prisão a céu aberto", que envergonha os judeus de todo o mundo. Só uma Gaza sem terroristas e sem tropas a vigiando poderá se desenvolver e oferecer uma vida melhor ao seu povo.

Enquanto houver terroristas, haverá ataques a Israel e revides israelenses desproporcionais e novos ataques e novos revides, em uma escalada interminável e imprevisível.

Não esqueci e continuo horrorizado com os assassinatos e sequestros perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro. Também estou horrorizado com a mão pesada em demasia de Netanyahu.

Isso me lembra a história de um personagem do folclore carioca dos anos 1960. Irônico e gozador e, sobretudo, franzino, Ronald Chevalier, o Roniquito, certa vez apanhava feio de um desafeto em Ipanema, quando este lhe perguntou, com Roniquito quase desacordado: "Já chega ou quer mais?". Ele retrucou: "É claro que chega, seu idiota!".

É o que digo a Netanyahu: "Claro que chega, seu idiota!".

Outro dia, em uma feira livre aqui no Brasil, escutei um vendedor de frutas argumentando com um colega: "O Hamas quer conquistar Israel porque Israel é muito poderoso".

De fato é. O seu poder reside no seu povo — criativo, inovador, determinado, estudioso, alegre—, como também é o povo palestino.

Em vez de ver palestinos mortos, o povo israelense prefere ver os reféns vivos. Em vez de ver os reféns mortos, o povo palestino prefere continuar existindo.

Levantei a bandeira branca e ela estava cheia de sangue. Sangue é vida quando está dentro de nós. Quando sai é morte.

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