Descrição de chapéu
Felipe Motta Veiga

Ativismo de hashtag explode com guerra Israel-Hamas

Engajamento em redes sociais leva à paralisia de movimentos populares reais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Felipe Motta Veiga

Mestre em literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio

[RESUMO] Militantes de redes sociais são movidos por uma lógica em que não é preciso estar engajado em causas sociais, basta parecer que se está. Eventos como a guerra que se desenrola no Oriente Médio, diz autor, criam movimentos de rebanho que direcionam energias políticas para práticas de reafirmação da identidade dos usuários.

A atual guerra entre Israel e o Hamas, sem precedentes na história, tornou-se mais uma oportunidade para os usuários das redes sociais exibirem suas virtudes em praça pública. Era previsível que seria assim.

Imagens de cidades bombardeadas e relatos de chacinas contra civis certamente ferem nossos princípios morais e atiçam nosso sentimento de justiça. Mas, como não podemos fazer nada para mudar o curso da guerra, nos sentimos obrigados, em um movimento de rebanho, a demonstrar que não estamos alheios aos acontecimentos recentes, não somos insensíveis à sua brutalidade e inclusive temos algo a dizer imediatamente sobre eles.

Homem palestino em meio aos escombros de prédio destruído em ataque aéreo israelense no campo de refugiados de Rafah, no sul da Faixa de Gaza - Mohammed Abed - 16.out.23/AFP

Quando ainda surgiam as primeiras notícias da guerra, muita gente já havia colocado um emoji da bandeira de Israel ou da Palestina no status do Instagram. Houve também quem preferisse não tomar partido, limitando-se a compartilhar declarações emocionadas, mensagens de paz, fotos de árabes e judeus abraçados. Seja como for, o mais importante para o usuário das redes é que ninguém pense que ele está por fora das novidades.

Em uma performance voltada aos próprios seguidores, cada um paga seu tributo à consciência humanitária. Não se trata de ler as notícias, comparar diferentes fontes de informação, pesquisar e refletir durante algum tempo para se chegar a um juízo. É urgente que divulguemos nossa opinião o mais rápido possível e que todos os acontecimentos sejam comentados como se assistíssemos a uma partida de futebol.

Pode-se alegar que existem vários tipos de opinião, mais ou menos fundamentadas. De fato. Mas, se não estivermos escutando estudiosos e especialistas no assunto, a chance de as ideias veiculadas serem superficiais e as informações falsas ou imprecisas é grande. O que importa? Muitas vezes, opiniões sem embasamento são repassadas apenas para corroborar um ponto de vista pessoal, reafirmar uma identidade e angariar curtidas.

Nas redes sociais, mesmo uma guerra desse porte vira um espetáculo como tantos outros —o espetáculo de nossas virtudes. Temas tão complexos, que exigiriam de nós um olhar cuidadoso e boa dose de pesquisa, se convertem em meios de autopromoção. Somos convocados a nos posicionar, não para oferecer argumentos honestos e equilibrados, mas para forjar a imagem com que gostaríamos de ser vistos.

Aqui, estamos diante de um fenômeno contemporâneo por excelência: o ativismo de hashtag. Ao passo que certas manifestações políticas ganham corpo fora do domínio virtual e procuram conquistar simpatia pela sua causa, o engajamento que se dá exclusivamente nas redes não está comprometido com um projeto nem com uma estratégia política. Daí que a outra face do ativismo de hashtag seja a paralisia dos movimentos populares na realidade.

É claro que as redes desempenham um papel central na sociedade e que passamos boa parte dos nossos dias imersos em ambiente online. Aliás, tal como os românticos quiseram outrora superar a separação entre arte e vida, as novas tecnologias informáticas parecem nos dirigir a um mundo onde o virtual e o real não mais se distinguem.

Contudo, a distância entre essas duas esferas da experiência humana não foi e nem deve ser abolida. Do mesmo modo que o valor da arte está no fato de que ela não é a vida, e vice-versa, o valor da realidade está no fato de que ela não é a internet. Por trás de uma tela de celular, não temos quase nada a perder e, exatamente por isso, também temos bem pouco a ganhar.

Hoje, a facilidade de acessar autoridades públicas através de suas páginas no Facebook, por exemplo, dá ao cidadão comum a impressão de participar da política e de estar mais próximo dos poderosos. Porém, enquanto as autoridades puderem conter os indignados no espaço virtual, elas não correm risco concreto. É assim que, nas redes, a própria possibilidade de contestação se transformou em instrumento de controle social.

A propósito, não custa lembrar um episódio brasileiro recente. Falo da apatia da esquerda frente aos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro.

Quase no fim de seu mandato presidencial, quando Bolsonaro ameaçava dar um golpe de Estado, os progressistas de hashtag se contentavam em suspirar de indignação no Twitter e no Instagram. Embora tenham ocorrido pequenos protestos aqui e ali, não houve manifestações expressivas como em 2013.

Incapaz de se articular para levar parte da população às ruas e ocupada demais em digitar palavras de ordem nas redes sociais, a esquerda apostou na incompetência do ex-presidente e na falta de apoio dos militares a seu desígnio golpista. Assim, o destino da democracia brasileira foi entregue nas mãos de Alexandre de Moraes, e a oposição, de braços cruzados, ficou à espera de um resultado favorável nas eleições do ano passado.

Vivemos hoje, de fato, a era do simulacro. As reivindicações políticas abdicam de descer à rua, os descontentes se dão por satisfeitos ao protestar contra uma autoridade pública pelos canais virtuais. Ao ativista e militante de hashtag, não é preciso estar engajado em causas sociais, basta parecer que se está.

Por mais complexo e delicado que determinado assunto seja, ele é rapidamente capturado pelos usuários das redes ciosos de reafirmar sua própria identidade, seus ideais, suas paixões. Todo o mundo tem algo a dizer sobre tudo, mas o que interessa é menos a contribuição de cada um para o debate que a promoção de suas virtudes perante uma multidão de seguidores.

Dessa maneira, em um planeta cada vez mais interconectado, as notícias que circulam no terreno coletivo da internet acabam servindo, em primeiro lugar, ao teatro moral do indivíduo. Enquanto houver palco e aplausos, o espetáculo continua e a realidade segue aguardando do lado de fora.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.