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Roberto Andrés

Crise urbana agrava onda de calor no Brasil

Quebrar o círculo vicioso da crise climática exige buscar soluções coletivas

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Roberto Andrés

Doutor em arquitetura e urbanismo pela USP e professor da UFMG. Autor do livro "A Razão dos Centavos: Crise Urbana, Vida Democrática e As Revoltas de 2013" (Zahar)

[RESUMO] As grandes cidades brasileiras, historicamente desiguais e excludentes, reagem à onda de calor extremo com ações individuais que agravam (aumento do uso de carro e ar condicionado) ou nada fazem para mitigar (clubes e piscinas privadas) a crise climática, em um círculo vicioso que prejudica toda a sociedade, mas castiga sobretudo os mais vulneráveis. Romper esse ciclo demanda passar do individualismo para o pensamento sistêmico e coletivo da vida nos grandes centros.

O Brasil enfrenta a quarta onda de calor extremo em poucos meses. O combo crise climática e El Niño deve fazer de 2023 o ano mais quente em 125 mil anos —recorde que, infelizmente, pode não demorar a ser superado.

Vivemos um aperitivo do que vem por aí nas próximas décadas. Junto às altas temperaturas surgem impactos na saúde, mortes de pessoas e animais, destruição ecossistêmica, queimadas, poluição atmosférica, aquecimento das águas, perdas produtivas.

Movimento no entorno da Praça da Liberdade e rua Galvão Bueno, em São Paulo, em meio a onda de calor que atinge o Brasil - Rubens Cavallari-12.nov.23/Folhapress

O aperitivo evidencia um fenômeno que tende a se aprofundar: os círculos de retroalimentação (feedback loops) que agravam situações de crise. De forma similar ao que chamamos de círculo vicioso, trata-se de um tipo de processo em que a resposta a determinada mudança intensifica aquela mudança. Esse é um problema central da crise climática planetária e, também, das cidades.

A compreensão da Terra como um sistema ganhou impulso nos anos 1970, quando cientistas passaram a buscar descrever as complexas interações ocorridas no planeta. Tiveram importância nessa abordagem os biólogos James Lovelock e Lynn Margulis, que colocaram na mesa a hipótese de Gaia: a ideia de que a Terra deveria ser compreendida "como um sistema sujeito a feedbacks positivos e negativos que se combinam gerando uma autorregulação global", como resumiu a filósofa Tatiana Roque em "O Dia em que Voltamos de Marte".

O trabalho dos cientistas embasou pesquisas sobre a composição da atmosfera, contribuiu para evidenciar o papel da ação humana na alteração do equilíbrio do planeta, e se desdobrou nos estudos sobre os buracos na camada de Ozônio e na proibição dos clorofluorcarbonetos em muitos países na década de 1980.

Na base da abordagem está a compreensão de que sistemas complexos são marcados por interações entre elementos que alteram características do próprio sistema, em círculos de retroalimentação.

As respostas a mudanças podem ser consideradas positivas ou negativas —os termos não indicam uma valoração do resultado, mas o papel que as respostas têm em relação ao fenômeno inicial. Um feedback é considerado positivo quando intensifica o processo em curso; e negativo quando faz reduzir aquele processo.

Um exemplo conhecido de feedback positivo na crise climática é o derretimento de geleiras no Ártico. A dissolução do gelo faz com que a água marítima fique mais exposta. Como ela é mais escura que as geleiras, absorve mais calor do sol. Assim, a temperatura no Ártico tem subido acima da média global, o que intensifica o derretimento do gelo. Isto, por sua vez, causa a liberação de metano, gás que, na atmosfera, contribui para o aquecimento do planeta.

Esse tipo de fenômeno adiciona gravidade e incerteza à crise climática. Um estudo lançado no início do ano por cientistas de Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Alemanha identificou 41 círculos de retroalimentação gerados pela crise climática, sendo que 27 deles intensificam o problema.

Além de serem separadamente graves, os fenômenos se conectam —por exemplo, o derretimento das geleiras leva ao crescimento de queimadas, o que aumenta emissões. Tudo isso torna "desafiador prever com precisão os impactos da mudança climática", resume William Ripple, professor de Ecologia da Universidade de Oregon, e um dos autores do estudo.

Este, contudo, não é um processo restrito ao meio natural. A resposta social a situações de crise também pode gerar círculos de retroalimentação do problema, com efeitos expressivos. A jornalista Jane Jacobs descreveu, já nos anos 1960, como a adaptação das cidades para o trânsito de automóveis tendia a degradar as condições de circulação a pé e em transporte público, o que induzia ao uso de mais carros.

Hoje sabemos que o aumento da temperatura também tem efeito no aumento de uso do veículo particular. Analisando dados de deslocamento e registros metereológicos nos Estados Unidos, os pesquisadores Nick Obradovich e Iyad Rahwan concluíram que "o aumento das temperaturas amplifica substancialmente o uso de transporte motorizado no país".

Para o indivíduo que deixa de caminhar em um dia quente, o automóvel com ar condicionado parece uma boa solução. O motor do veículo, contudo, queima petróleo e emite gás carbônico na atmosfera, além de aquecer o micro ambiente urbano. Ou seja, a solução individual piora o problema coletivo —e estimula que outros adotem aquela solução individual, o que agrava ainda mais a situação coletiva.

Da mesma forma, o ar condicionado que resfria uma residência ou escritório joga calor no ambiente externo, tornando a cidade mais quente. O fenômeno não é marginal. A onda de calor de setembro levou o gasto de energia a um nível recorde no Brasil, junto à venda de aparelhos de ar condicionado. Em novembro, esse recorde foi batido novamente. A energia elétrica no Brasil vem de fontes de baixa emissão —mas não é infinita, e hidrelétricas também geram impactos ambientais significativos. Em muitos outros países, fontes poluentes têm participação relevante na produção energética.

Os motores dos carros e dos aparelhos de ar condicionado, junto ao asfalto das ruas e ao concreto dos prédios, produz nas cidades o que se chama de ilhas de calor. Os centros urbanos aferem alguns graus acima das áreas rurais em seus entornos.

Quando a onda de calor fez a temperatura no centro de São Paulo chegar a 37ºC em setembro, em uma região rural no entorno da cidade os termômetros marcavam 30ºC. Mesmo em cidades médias o fenômeno tem sido consistente, com 5ºC a 10ºC de diferença de temperatura entre bairros.

No Brasil, quando tratamos da questão ambiental, temos a prioridade, correta, de buscar reduzir e zerar o desmatamento na Amazônia. Mas, no dia em que isso ocorrer, ficaremos na mesma página dos demais países, onde o grosso das emissões está em transportes, construção civil, energia e resíduos. E estamos avançado muito pouco na descarbonização nesses setores.

As cidades são o nó nevrálgico da crise climática. Esses territórios que ocupam 2% da superfície terrestre mundial são responsáveis por 78% do gasto de energia e 60% das emissões que geram o aquecimento do planeta, segundo a UN Habitat, agência especializada da ONU dedicada à promoção de cidades mais sociais e ambientalmente sustentáveis.

Articulando esse nó está a mobilidade. Hoje o setor de transportes responde por 25% das emissões e 57% da demanda de petróleo do planeta; e os automóveis são os maiores emissores dentro do setor. Em 45% dos países, o transporte é a maior fonte de emissões; nos demais, é a segunda maior fonte.

Entre 2000 e 2019, as emissões de transporte cresceram em todas as regiões, exceto na Europa, onde elas ficaram estáveis (nos demais setores, as emissões caíram significativamente no continente europeu).

Nesse contexto, os círculos de retroalimentação da crise climática nas cidades têm potencial de retardar ainda mais nossa já lenta transição para um mundo de baixa emissão e baixo gasto energético.

A saída passa pela busca de soluções que funcionem coletivamente. Trata-se de produzir um tipo de resposta que reduza o problema para todos, e não apenas para um pequeno núcleo. A mudança de chave é do individualismo para o pensamento sistêmico e coletivo.

Eis aí um desafio: superar a ideologia individualista que se consolidou nas últimas quatro décadas, baseada no falso pressuposto de que o avanço individual produz necessariamente melhorias coletivas.

Um aparelho de ar condicionado que não produz emissões, captura carbono e não aquece o entorno chama-se árvore. Ruas arborizadas podem reduzir em até 12ºC a temperatura das cidades, segundo um estudo recente.

Instalar telhados verdes ou pintar os telhados de branco pode ter efeito significativo na redução da ilha de calor e da temperatura interna dos edifícios. Experimentos realizados mundo afora apontam bons resultados nesse sentido.

Recuperar os cursos d’água que atravessam as cidades, renaturalizando seus leitos e deixando-os limpos e abertos produz redução de temperatura e melhoria da qualidade do ar. Nas cidades brasileiras, muitos córregos e rios foram cobertos por pistas de asfalto —uma política que teve o auge na ditadura, mas que ainda segue presente.

Em Seul, capital da Coreia do Sul, o rio Cheonggyecheon foi coberto na década de 1950 para dar lugar a uma via expressa de dois andares. No começo deste século, o rio foi recuperado, criando-se um parque no trecho que atravessa o centro.

A temperatura às margens do rio ficou de 3,3ºC a 5,9ºC mais baixa que em ruas do entorno. Isso é resultado da remoção do asfalto, da evaporação superficial da água, do aumento da vegetação, da redução de veículos e da indução à circulação de ar produzida pelo rio.

Cidades que buscam democratizar o acesso a temperaturas mais amenas em dias quentes têm criado refúgios climáticos, como acontece em Barcelona. São espaços arborizados, sombreados e ventilados, de acesso público para a população. Outras cidades, como Medellín, têm investido em corredores verdes para circulação a pé, que foram capazes de reduzir em até 3ºC a temperatura em seus entornos.

No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, a possibilidade de escapar do calor extremo é marcada por desigualdade. Os mais ricos acessam suas casas de campo, clubes e piscinas particulares. Poucas cidades, contudo, oferecem piscinas públicas, parques com rios abertos e limpos, ruas arborizadas nas periferias, ciclovias seguras e sombreadas, transporte público acessível e com ar condicionado..

A dificuldade das soluções coletivas e sustentáveis é que elas não são de curto prazo e tampouco podem entregar a temperatura a 23ºC do ar condicionado. Ocorre que o "cada um por si" é insustentável, além de injusto com os mais vulneráveis. Quebrar o círculo vicioso da crise climática nas cidades não é simples, mas a pior opção é não fazer nada a respeito.

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