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Gabriela Boeri

Cineasta brasileira recebeu missão quase impossível da atriz Anouk Aimée

A incumbência aconteceu no set de filme de cineasta francês Claude Lelouch

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[RESUMO] Cineasta conta a história de quando, durante o período em que realizava residência artística com o diretor Claude Lelouch, recebeu uma difícil missão da atriz Anouk Aimée: encontrar alguém para consertar seu relógio em uma pequena cidade da Normandia, em um domingo. A tarefa aparentemente banal se desenrola em uma jornada com muitos significados e simbolismos para a brasileira, que decide dividir sua experiência —que ela mesma chama de "uma pequena trama"— com o diretor do filme.

As grandes histórias são feitas de pequenas tramas. Fios quase invisíveis que precisam existir para que cada ponto seja dado. Mesmo assim, quase sempre, recebemos as partes iluminadas pelos holofotes. Nos conformamos com elas e esquecemos de procurar a lente que faz com que as outras sejam vistas.

Naquele domingo, tínhamos a tarde livre. A recomendação era que descansássemos, tarefa difícil para todos os que já haviam entendido a dimensão do que estava prestes a acontecer.

No dia seguinte, o reencontro de Anne Gauthier e Jean-Louis Duroc já não seria mais um sonho e sim uma realidade possível. A essa altura, véspera do início das filmagens, nada poderia adiar ou impedir a realização desse evento. Muitos anos se passaram, e a vida fez com que todos os fios e fibras alinhavassem essa elipse.

Uma das maiores elipses da história do cinema, era o que ouvíamos em todos os cantos da cidade. Um homem, Jean-Louis Trintignant, e uma mulher, Anouk Aimée, seriam dirigidos por Claude Lelouch novamente, 50 anos depois do clássico que reuniu o trio, "Um Homem, uma Mulher" (1966).

Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme "Os Melhores Anos de Uma Vida", de Claude Lelouch
Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme 'Os Melhores Anos de uma Vida', de Claude Lelouch - Divulgação

Como integrantes da residência artística de Lelouch, a ideia era que tivéssemos diferentes funções dentro de uma equipe de cinema. Eu estava no figurino, que sorte. Soube que Anouk Aimée iria fazer sua última prova e, sem hesitar, logo me ofereci para acompanhar.

Entre emoções e ajustes, seu olhar foi de encontro ao meu. Ela tirou um saquinho do bolso e revelou que seu relógio havia parado de funcionar. Sem saber o que dizer, eu lamentei. Silêncio. Peguei o relógio nas minhas mãos, como se aquele gesto pudesse ajudar de alguma forma. Ela gentilmente completou dizendo que precisava dele para entrar em cena no dia seguinte.

Naquela circunstância, consertar um relógio de um dia para o outro já seria uma tarefa difícil. Para completar a missão, quase impossível, lembrei-me de que era domingo e de que estávamos em uma pequena cidade da Normandia.

Ela poderia esperar, talvez em seu segundo dia de filmagem? Garanti a ela que daríamos um jeito de resolver ao longo da semana. Todavia, quando dei por mim, já estava no carro, sozinha em uma pequena estrada indo em busca de um relojoeiro. Procurei no Google e achei alguns telefones. Obviamente, nenhum deles atendeu. Minha única opção seria sair pelas ruas perguntando.

Até hoje não sei explicar como consegui encontrar um estabelecimento aberto em Pont-l'Évêque, cidade com uma população de mais ou menos 5.000 habitantes. Uma vitrine cheia de relógios e, dentro da loja, um homem trabalhando. Seria ele mesmo o relojoeiro? Os relógios expostos eram de épocas diferentes, o que fazia daquele lugar um espaço peculiar.

Entrei um pouco ofegante e falei rápido, com o meu francês trêmulo, que precisava consertar aquele relógio urgentemente. O homem tirou os olhos do que estava fazendo e lentamente sorriu. Sem saber como ser mais enfática, sorri também.

Bilhete em papel quadriculado escrito em francês descrevendo os custos de conserto da troca de bateria do relógio da atriz Anouk Aimée
Recibo para os serviços do conserto do relógio de Anouk Aimée - Gabriela Boeri

Ele pegou o relógio da minha mão e examinou o objeto. Seu silêncio me fez pensar que o relógio estava quebrado, que não tinha mais jeito e que o problema iria ganhar outra proporção.

Enquanto meus pensamentos iam de um lado para o outro de forma acelerada, ele manuseava o relógio lentamente, em silêncio. Eu não sabia se já era hora de interromper sua avaliação para perguntar se ele seria capaz de resolver o problema.

Tic-toc, tic-toc —todos os outros relógios ali presentes estavam funcionando e me faziam lembrar que o tempo estava passando. Depois de alguns minutos, ele olhou para mim e disse: "Pronto, o tempo voltou a correr. São dez euros, por favor".

Naquele instante, senti que a minha missão quase impossível tinha dado certo. Um ajuste cirúrgico e silencioso fez o tempo voltar a correr. Para isso, eu precisei correr para encontrar o lugar certo para acertar os ponteiros.

Em tempo, Anouk entraria em cena feliz. Aproveitei para contemplar a lentidão com que ele, manualmente, produzia o recibo de dez euros. Não sabia se deveria dizer a ele de quem era o relógio.

Tentei ser discreta e disse apenas que era para uma filmagem que ocorreria na região nos próximos dias. Outra vez, ele sorriu lentamente, um sorriso calmo, exatamente o mesmo de quando entrei na loja. É de uma mulher, eu disse. Acho que ele entendeu.

Peguei a estrada de volta e fui direto levar o relógio no hotel onde o elenco estava hospedado. Ainda agitada, tentei demonstrar que tinha entendido a dimensão do que ela havia me pedido. Anouk Aimée olhou nos meus olhos e me agradeceu.

Os dias se passaram, a filmagem deu certo, o filme, "Os Melhores Anos de uma Vida", estreou no Festival de Cannes de 2019 e ninguém nunca ficou sabendo dessa história. Aos poucos, fui me dando conta da beleza desse fio.

As boas histórias devem ser feitas de vários fios como esse. Um verdadeiro emaranhado de gestos que se somam e se multiplicam para fortalecer a essência do que precisa ser contado. Depois dessa realização, resolvi escrever uma carta contando essa história para Lelouch. Achei que ele merecia tomar conhecimento. Decidi que esse texto seria a minha despedida da residência. Tomei um tempo para conseguir elaborar belas frases em francês —me dei esse tempo de presente.

Pensei que seria bonito dizer que os filmes também podem acertar alguns ponteiros. Eu acredito nisso, e acho que, no amor, nunca é tarde demais para fazer o tempo voltar a correr. Terminei a minha carta assim e agradeci. Emocionada, entreguei o papel nas mãos dele.

Eu estava um pouco nervosa e acho que ele ficou surpreso com o meu gesto. Pegou o papel, virou de costas, deu alguns passos, parou e leu ali mesmo. Assim que acabou, ele continuou virado de costas.

Abaixou o papel e respirou um pouco. Segundos depois, notei que ele leu a carta novamente. Eu não sabia se esperava ou se ia embora. Fiquei ali um pouco constrangida, até que ele virou de volta para mim e disse: "Suas palavras me fizeram lembrar da razão pela qual eu decidi criar essa residência. Obrigado".

Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme "Um Homem, Uma Mulher", de Claude Lelouch
Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme 'Um Homem, uma Mulher', de Claude Lelouch - Divulgação

Os holofotes não costumam iluminar os detalhes, os ponteiros nem os relojoeiros, mas, nos filmes, somos nós os responsáveis por escolher qual será a lente e o recorte enquadrado. Foi por isso que Lelouch criou esse espaço tão livre de experimentação.

A sua forma de escrever cinema valoriza essas frestas que só o acaso é capaz de criar. Levar a sério a minha "pequena grande missão quase impossível" tinha sido meu maior aprendizado dessa jornada com ele.

"Um Homem, uma Mulher" foi um filme que rodou o mundo. Uma história de amor que atravessou fronteiras e certamente marcou a vida de muita gente. Seria impossível medir o tamanho desse efeito —e é justamente isso que faz dele algo tão grandioso.

Acredito que não só as grandes histórias, mas principalmente as mais bonitas, são feitas do reconhecimento da importância dessas pequenas tramas.

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