Descrição de chapéu The New York Times

Manual de sobrevivência para mortos do Egito Antigo ganha exposição

Mostra nos EUA reúne fragmentos de rolos funerários com instruções feitas sob medida para nobres recém-desencarnados

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Crocodilos em pergaminho do Livro dos Mortos, conhecido como papiro de Millbank, em imagem sem data Instituto para o Estudo de Culturas Antigas da Universidade de Chicago via The New York Times

[RESUMO] Exposição no Getty, em Los Angeles, apresenta ao público fragmentos do chamado Livro Egípcio dos Mortos. Restrito a nobres, sacerdotes e outros grupos de elite, os manuscritos continham feitiços que permitiam à alma recém-chegada ao além enfrentar os inúmeros perigos da jornada em direção ao reino dos deuses.

No meio do século 19, o colecionador britânico sir Thomas Phillipps anunciou sua intenção de ter uma cópia de cada livro do mundo. Um declarado maníaco por manuscritos, Phillipps, um baronete briguento, os comprava indiscriminadamente de livreiros com os quais travava batalhas incessantes.

Em pouco tempo, havia pouco espaço em sua mansão em ruínas no condado de Gloucester para sua segunda esposa, Elizabeth, que acabou se mudando para uma pensão em Torquay, um resort à beira-mar da classe trabalhadora inglesa. Quando Phillipps morreu, em 1872, ele havia acumulado uma coleção de 60 mil documentos e 50 mil livros impressos.

Reprodução de papiro que retrata demônios guardando os portais para o mundo inferior - Institute for the Study of Ancient Cultures of the University of Chicago via The New York Times

Seus descendentes leiloaram sua biblioteca particular aos poucos e, até o final da década de 1970, sua coleção de 19 fragmentos de rolos funerários antigos —cada um parte do que hoje é conhecido coletivamente como o Livro dos Mortos— foi adquirida pelo livreiro de Nova York Hans P. Kraus. Juntamente com sua esposa, Hanni, Kraus doou o lote para o Museu J. Paul Getty, em Los Angeles, em 1983.

Nas últimas quatro décadas, os escritos, que abrangem um período de cerca de 1450 a.C. a 100 a.C., foram guardados em um cofre, frágeis e facilmente danificados pela luz. No início de novembro, uma exposição no Getty foi inaugurada mostrando ao público pela primeira vez sete das peças mais representativas. A mostra ficará em cartaz até 29 de janeiro.

"Estou feliz que o Getty finalmente decidiu divulgar e exibir o que tem sido até agora uma parte quase esquecida de sua gloriosa coleção de antiguidades, mas que contém de fato espécimes importantes de um dos mais famosos corpos egípcios antigos do mundo", diz Rita Lucarelli, egiptóloga da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Você só vive duas vezes

Componente padrão nos enterros da elite egípcia, o Livro dos Mortos não era um livro no sentido moderno do termo, mas um compêndio de cerca de 200 feitiços e orações rituais, com instruções sobre como o espírito do falecido deveria recitá-los no além.

Sara Cole, curadora da exposição do Getty, chama as invocações de uma espécie de "seguro de viagem" sobrenatural projetado para capacitar e proteger o falecido na longa e tortuosa jornada pela vida após a morte. Ao contrário das apólices de seguro atuais, não havia duas cópias iguais.

Apesar do título do livro, era a vida, não a vida após a morte, que preocupava os antigos egípcios, que viviam em média 35 anos. "Sua felicidade pesa mais felizmente que a vida futura", diz uma inscrição do período do Novo Reino, que durou de 1550 a.C. a 1069 a.C.

"Os textos são um meio de aliviar a ansiedade mortal e controlar seu destino", afirma Foy Scalf, egiptólogo da Universidade de Chicago e editor do catálogo da exposição.

De fato, o nome original do texto se traduz como "livro da vinda do dia". Em 1842, o estudioso alemão Karl Richard Lepsius publicou uma tradução de um manuscrito e cunhou o nome Livro dos Mortos ("das Todtenbuch"), que refletia fantasias de longa data sobre a natureza e o caráter da civilização egípcia. O sistema de numeração que ele usou para identificar os vários feitiços ainda é usado hoje e aparece com destaque nos painéis da exposição do Getty.

Compilado e refinado ao longo de milênios, desde cerca de 1550 a.C., o Livro dos Mortos fornecia uma espécie de mapa visual que permitia à alma recém-desencarnada navegar pelo "duat", um submundo labiríntico de cavernas, colinas e lagos em chamas. Cada feitiço era destinado a uma situação específica que os mortos poderiam encontrar ao longo do caminho. Por exemplo, o feitiço 33 era usado para afastar cobras, que tinham um gosto perturbador por mastigar "os ossos de um gato putrefato".

Sem os feitiços certos, você poderia ser decapitado (feitiço 43), colocado em um matadouro (feitiço 50) ou, talvez o mais humilhante de todos, virado de cabeça para baixo (feitiço 51), o que inverteria suas funções digestivas e faria você consumir seus próprios excrementos (feitiços 52 e 53).

Em um cenário infernal repleto de armadilhas e povoado de algumas das imaginações mais assustadoras da Antiguidade, a magia era importante. Entre as ilustrações mais assustadoras em exposição no Getty, estão representações de deuses (Anúbis, com cabeça de chacal; Hórus, com cabeça de falcão) e monstros (Ammit, a Devoradora, um híbrido de leão e hipopótamo com cabeça de crocodilo).

"O motivo pelo qual as criaturas são aterrorizantes não é para assustar as almas que tentam acessar esses lugares, mas para manter afastados aqueles que não pertencem a eles", diz Scalf. "Entrar no meio dos deuses é algo muito restrito."

O destino pretendido era o reino dos deuses e o refúgio seguro do paraíso eterno, um campo de juncos suavemente ondulados que se assemelhava a uma versão idealizada do Egito que o falecido havia deixado para trás. A paisagem exuberante tinha camponeses que ajudavam cada um que chegava a semear, arar e colher os grãos que forneciam o sustento dos deuses.

"Os mortos não estão apenas adorando e alimentando os deuses, mas também adorando e alimentando seus ancestrais falecidos e até a si mesmos", afirma Scalf. "Isso não é servidão, é um trabalho piedoso que mostra sua piedade para com os deuses."

Após alcançar a divindade, o falecido se juntava ao deus do sol Rá enquanto ele atravessava o céu em um barco solar. Ao entardecer, eles cruzavam o oeste e se fundiam com Osíris, deus do mundo subterrâneo, e assumiam poderes regenerativos. Perto do amanhecer, Rá lutava contra a serpente gigante Apep, senhor do caos, e saía vitorioso no leste para completar um ciclo interminável de renovação e renascimento.

Se enrolando no Getty

A propriedade do Livro dos Mortos era em grande parte limitada à nobreza, aos sacerdotes, aos membros da corte e a outros patronos que podiam se dar ao luxo da extravagância. Indivíduos de alto status contratavam uma oficina de escriba para produzir uma seleção personalizada de feitiços que os mencionavam pelo nome.

Dois dos quatro rolos de papiro da exposição da Getty pertenceram a mulheres chamadas Aset e Ankhesenaset, ambas sacerdotisas e "cantoras de Amon" no templo do deus no complexo de Karnak, em Tebas. Os pergaminhos são fragmentos esfarrapados, retirados de tumbas durante uma era não regulamentada do colonialismo europeu e alterados para o mercado de arte.

O rolo de papiro mais antigo da coleção do Getty era propriedade de uma mulher chamada Webennesre e inclui o feitiço 149, no qual o falecido encontra 14 montes no mundo subterrâneo, cada um com seus próprios habitantes.

"Os feitiços eram inscritos em quase todos os espaços disponíveis nos sepultamentos", diz Scalf. Alguns foram pintados no interior e exterior dos sarcófagos, outros foram impressos em mortalhas, estatuetas, amuletos e "tijolos mágicos" embutidos nas paredes dos túmulos.

Outro destaque da exposição são as três tiras finas de linho que foram marcadas com feitiços e depois enroladas em corpos mumificados como parte do processo ritual de embalsamamento. "As bandagens colocavam os textos sagrados em contato físico direto com os falecidos, envolvendo-os e protegendo-os", diz Cole, curadora da exposição. "Isso tornou a relação das pessoas com o Livro dos Mortos ainda mais pessoal."

Como parte de tecidos mais longos aplicados aos cadáveres de dois homens chamados Petosiris, os invólucros foram arrancados no século 19 e vendidos em pedaços. Os próprios corpos podem ter sido pulverizados e vendidos como pigmento de tinta (marrom múmia) ou como medicamento ("mummia", um pó encontrado nas prateleiras de boticários em toda a Europa).

Um falecido grato

O ponto alto da exposição é uma representação em papiro do Salão do Julgamento feita para Pasherashakhet, um "porteiro" que servia ao deus da lua Quespisiquis em Karnak. O detalhe da vinheta mostra um episódio do feitiço 125, no qual o falecido aparece diante de Osíris e de um tribunal de deuses enquanto seu coração ─que se acredita ser o local do intelecto─ é pesado por Anúbis, guardião do reino dos mortos.

Em um lado da balança está o coração; no outro, a pena da deusa Maat, a personificação da verdade e da justiça. Se o coração de Pasherashakhet for igual ao peso da pena, ele será admitido no outro mundo. Se o coração estiver muito pesado, o que significa que seus pecados superam suas boas ações, Ammit, a Devoradora, agachada e de boca aberta, o consumirá e o condenará a uma segunda e duradoura morte.

Nos hieróglifos que o acompanham, Thoth, o deus da escrita com cabeça de íbis, anuncia o resultado: "Seu coração está seguro na balança, sem nenhuma falha encontrada". Pasherashakhet passou no teste. É hora de se juntar a Rá e subir a bordo do barco solar.

Há um feitiço para isso também.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que foi publicado, a exposição no museu Getty foi inaugurada no dia 1° de novembro. O texto foi corrigido.

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