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Giovana Madalosso

Fui congelar meus óvulos e descobri que era uma mulher de caixa vazia

Escritora conta sua experiência e mostra como a desigualdade de gênero pode estar por trás da escolha pela gravidez tardia

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pintura mostra mulher branca grávida e nua deitada

'Pregnant Woman' (mulher grávida), pintura de Alice Neel de 1971 Museu Metropolitano de Nova York (Met)/Reprodução

Giovana Madalosso

Escritora, é autora de "Tudo Pode Ser Roubado" e "Suíte Tóquio" e colunista da plataforma de mudanças climáticas Fervura

[RESUMO] Neste Dia das Mães, escritora relembra sua decisão de congelar os óvulos aos 37 anos, comenta os percalços de tentar engravidar perto ou depois dos 40, descreve os tratamentos caros e sem garantia de sucesso de reprodução assistida e reflete sobre como a decisão das mulheres de protelar a gravidez pode ser resultado da ideia equivocada de que a criação dos filhos cabe muito mais a elas do que aos homens.

A ficha caiu quando fui congelar meus óvulos. Eu estava com 37 anos e tinha acabado de me separar. Já tinha uma filha de dois anos, mas ainda queria engravidar de novo. Como naquele momento eu não tinha a menor perspectiva de encontrar outro parceiro, ainda mais que coincidisse em querer ter um filho, achei uma boa ideia guardar alguns óvulos enquanto eu ainda fosse jovem.

Ao entrar na clínica de reprodução, percebi que protelar a maternidade não seria tão simples. No jardim junto à sala onde aguardava pela minha primeira consulta, havia uma mesa cheia de objetos. Levantei, fui ver o que era. Logo percebi ser um pequeno altar, formado por estatuetas de santos, deuses e divindades de diversas religiões, deixados ali por clientes da clínica, junto a uma vela ou pedaço de papel explicitando o desejo de ser mãe.

A escritora Giovana Madalosso
A escritora Giovana Madalosso - Renato Parada/Divulgação

Será que a Santa Ciência não podia resolver aquelas demandas? Eu estava em uma das melhores clínicas de reprodução do país, onde só a consulta custava perto de um salário mínimo. Concluí que aquelas mulheres deveriam ser muito mais velhas que eu, que aquele tipo de problema jamais faria cócegas no meu ativo ovário, e caminhei confiante para a minha consulta.

Entrei em uma das muitas salas. Uma jovem médica me atendeu. Enquanto ela abria uma ficha no computador, reparei no calendário da clínica sobre a mesa. Na folha de julho, um casal sorria com quadrigêmeos recém-nascidos no colo. Médicos podem entender de trompas, mas não de marketing, pensei. Onde já se viu anunciar com tanto orgulho uma cena de pesadelo?

Logo a médica se dirigiu a mim. Contei meu histórico, disse que talvez parecesse precipitado congelar os óvulos com a minha idade, mas eu havia me separado e ainda queria ter um segundo filho. A médica disse que eu estava certíssima em procurá-los. Trinta e sete não era cedo para fazer isso.

Talvez fosse até tarde. Em seguida, me explicou que a fertilidade cai drasticamente aos 38, mas claro que essa é uma idade figurativa, que pode variar de uma mulher para outra.

Com um discurso preparado para as leigas, me explicou que cada mulher já nasce com uma caixinha cheia de óvulos. Além desse número de óvulos variar, a liberação deles ao longo da vida também varia. Tem mulheres que, aos 38, ainda têm a caixa cheia. Outras já estão com a caixa vazia.

Pela primeira vez na vida, me senti velha. Senti meu corpo murchar na cadeira, me transmutando em uma imediata uva-passa. Também senti inveja da jovem médica que me contava tudo aquilo com a tranquilidade de quem carrega em óvulos dentro de si quase a população de Niterói —em idade fértil, o número de óvulos de uma mulher gira em torno de 400 mil.

"E essas tantas atrizes de 44, 45 anos que vemos grávidas na mídia?", perguntei. A médica sorriu. A maioria dessas mulheres engravida com óvulos doados. Mesmo quando conseguem pescar um óvulo em pacientes dessa faixa etária, não costumam usar, porque já são de baixíssima qualidade, com maior tendência a se dividir errado, gerando alterações cromossômicas.

O que essas mulheres costumam fazer é escolher, em um vasto cardápio de doadoras, um óvulo que gere um fenótipo parecido com o delas. Ou seja: atriz alta de olhos verdes, por exemplo, pegará um óvulo de doadora alta de olhos verdes. Assim ninguém ficará questionando se aquele filho é mesmo dela.

Talvez lembrando que eu tinha me separado, que era não somente uma uva-passa, mas uma uva-passa solitária, a médica também me contou que, além de óvulos, a clínica fornecia espermatozoides, inclusive os melhores do mercado.

Com um sorriso excitado que me fez pensar novamente nas suas gônadas, ela me contou que tinham, por exemplo, os espermatozoides do doador mais qualificado do mundo. Não podia dizer o nome dele, pois no Brasil as doações são anônimas, mas podia me contar que era um norte-americano de QI altíssimo, jogador de basquete, com genes de primeira qualidade, já investigados contra graves doenças genéticas.

E não era só isso. Agora, também tinham controle do destino do espermatozoide escolhido. E então me contou que, durante um bom tempo, os espermatozoides eram vendidos sem "tracking", podiam parar dentro de mulheres que moravam na mesma região ou em um raio pequeno de distância.

"E qual o problema?", perguntei. O problema é ter irmãos biológicos nascendo próximos uns dos outros, interagindo, talvez namorando ou se casando, sem saber que são irmãos biológicos, já pensou?

Claro que eu nunca havia pensando nisso. Um "Romeu e Julieta" moderno, onde o problema não é a inimizade das famílias, mas o laço consanguíneo dos amantes, a falta de organização da clínica de reprodução que vendeu espermatozoides do mesmo macho alfa para a srta. Capuleto e para a srta. Montéquio.

Por fim, apontei para o calendário e perguntei à médica se algum casal, de fato, desejava ter quadrigêmeos. Disse que não. Que aquilo, obviamente, nunca era uma escolha. A inseminação é cara e desgastante. Para aumentar as chances de dar certo, os médicos costumam fertilizar vários embriões in vitro. É raro, mas às vezes todos vingam.

Olhei novamente para a foto do calendário. O sorriso do casal não me pareceu mais tão absurdo. Saí de lá levando um pedido para fazer um exame antimülleriano e descobrir, afinal, o volume de óvulos ainda existente dentro de mim.

O antimülleriano é um hormônio produzido pelos ovários que dá uma estimativa, de forma indireta, sobre a quantidade de óvulos. A média de uma mulher em idade fértil fica entre 1 e 4 ng/ml. O meu deu 0,16 ng/ml.

Ou seja, eu era uma mulher de caixa vazia. Vazia a ponto de um óvulo gritar e fazer eco. Mesmo assim, a médica achou que valeria a pena tentarmos tirar alguma coisa. O preço era alto. A garantia de sucesso, nenhuma.

Iniciei o tratamento, tomando, durante dez dias, injeções de Menopur, Orgalutran e Ovidrel. Era esperado que eu gerasse de 15 a 20 óvulos, mas só saíram dois. O que, na prática, equivalia a nada, pois é comum que algum morra no processo de descongelamento, outro na hora de fertilizar.

Posto isso, eu precisava decidir entre guardar ou descartar aqueles dois óvulos. Guardar custava. Mesmo nem sendo gente, óvulos já dão despesas. Já pagam por quartos de hotel. Para as empresas de criopreservação, também conhecidas como hotéis de óvulos, tanto faz se você ocupar uma gaveta com dois ou 20 óvulos. A anuidade é a mesma, R$ 1.500.

Com essa despesa e com tão poucas perspectivas de sucesso, fazia mais sentido dispensá-los. O que fiz? Como uma chocadeira platônica, embalada por lufadas de gelo seco, mandei a minha dupla para o freezer.

Todo ano, quando o boleto chegava, eu escrevia um email pedindo o descarte da minha dupla, mas não conseguia apertar o "send". O tempo foi passando. Conheci meu companheiro, que tem dois filhos, e com quem estou até hoje. Um dia, me toquei que já tinha 44 anos e uma dupla de enteados que, sem nenhum custo, a vida me deu.

Finalmente, fui lá e dei "send".

F. é minha amiga de infância. Desde que embalávamos bebês de plástico, ela sonha em ser mãe, mas sua vida cigana, como comissária de bordo da Air France, fez com que protelasse o plano. Casou-se aos 40 anos. A partir daí, praticou o exercício reprodutivo à exaustão. Um ano depois, nada.

O casal começou a se preocupar. Procuraram o hospital público Cochin, maior referência em reprodução da França, e conseguiram uma consulta para dali um ano.

Nesse meio tempo, em vez de relaxar, ficaram tensos, despiram-se e praticaram muito, sem resultados, o que os fez procurar, antes da consulta já agendada, um hospital particular. No American Hospital, lhes recomendaram que não perdessem mais tempo e fizessem logo uma fertilização, no valor de 4.500 euros. Alarmados que estavam, toparam. Nenhum embrião vingou. No Cochin, também não.

Ao final dessas duas tentativas, ela já estava prestes a completar 43 anos, idade-limite para fazer fertilização na França. Teria, portanto, apenas uma última chance. Empenharam-se em extrair o maior número possível de óvulos, esperando que ao menos quatro ou cinco evoluíssem para serem implantados no seu aparelho reprodutivo. Enquanto isso, tudo o que F. deveria fazer era esperar.

Nos voos feitos nessa época, ela rezava tanto e tão fervorosamente para os embriões evoluírem que um passageiro chegou a pensar que estava frente a frente com a primeira aeromoça com medo de avião.

A fé não fez milagre. Tiveram que desembolsar 3.000 euros para mais uma tentativa em uma clínica particular, que também não deu certo. Cogitaram se candidatar à adoção, mas, além de a espera ser longa, casais com a idade deles só podem adotar crianças com mais de 5 anos, o que os fez desistir.

Seu marido, que sempre simpatizara com a doação de óvulos, talvez porque o filho seria biologicamente dele, passou a advogar a favor dessa alternativa. Foram até a ilha de Chipre, também conhecida como a meca dos casais inférteis, onde é possível escolher até o sexo do bebê, mas F. não se encorajou.

Gerar com o óvulo alheio mataria de vez as últimas esperanças que ainda agitavam suas trompas: ter um filho com seu nariz, seu joanete, seus olhos, seu otimismo. Um otimismo que ela julga tão louvável quanto condenável, pois se, por um lado, é bom acreditar que as coisas vão dar certo, por outro, a tranquilidade excessiva pode criar cenários adversos. "Me arrependo de ter começado a tentar ter filho tão tarde", ela desabafa, agora com 45 anos, enquanto almoçamos.

Fazia tempo que não nos víamos e F. me atualiza, contando que as tentativas frustradas de engravidar foram deixando marcas por todos os lados. Os anos de ansiedade constante fizeram com que engordasse dez quilos. Dilapidaram o dinheiro que tinham guardado. O casamento passou por várias crises, pois às vezes um resolve culpar o outro, mesmo sabendo que, no fundo, ninguém tem culpa, ou então discordam sobre o que deveria ter sido feito, ou questionam-se intimamente sobre o futuro de uma relação incapaz de consumar o sonho dos dois.

Em seguida contou que ela e o marido vêm desenvolvendo uma horta em casa, na periferia de Paris, plantando abóboras, rabanetes, cenouras, batatas, "ciboulettes". Pensei em novos caminhos, na fertilidade da vida como provedora de outras histórias para aquilo que nunca teremos.

"Que bom que vocês estão focando outras coisas", digo para ela. F. me olha com surpresa. Pergunta se não reparei na sua dieta, no prato sem glúten e lactose que ela havia acabado de pedir ao garçom. E então me conta que segue focada, que o dinheiro para a fertilização acabou, mas eles arrumaram uma médica natureba que está desintoxicando seu corpo para que engravide naturalmente, algo difícil, mas não impossível.

"Nessa noite mesmo, antes de voar para o Brasil, trepamos duas vezes e depois fiquei de pernas pra cima, plantando bananeira pro negócio ficar todo lá dentro", me conta. "Será que agora vai?", pergunto. E pela primeira vez não enxergo em seu rosto aquele otimismo tão familiar.

A reprodução assistida é uma mãe para a humanidade. Segundo o Comitê Internacional para Monitoramento de Técnicas de Reprodução Assistida, de 1978, quando nasceu o primeiro bebê de fertilização in vitro, até 2018, a técnica já gerou 8 milhões de bebês, para a sorte de famílias que nunca conseguiriam ter filhos de outra maneira. Não tenho números relativos aos casos que não deram certo, mas não é preciso ir muito longe para saber que também são muitos.

O que me faz pensar que a maternidade tardia, uma grande conquista, deve ser vista com simpatia, mas também com cautela, pois além de a reprodução não ser garantida, há outros fatores que a medicina ainda não consegue reverter. Aos 25 anos, por exemplo, uma mulher tem chance de 1/15.951 de ter um filho com síndrome de Edwards (doença genética que provoca atrasos no desenvolvimento do feto ou malformações graves ao nascimento que reduzem drasticamente a expectativa de vida do bebê). Aos 44 anos, as chances são de 1/359.

Longe de mim dizer qual a hora ideal para ter filhos. Cada um tem na hora que quer ou que pode, e qualquer motivo para protelar é legítimo. Assim como é legítimo nem querer ter filhos. Há uma pergunta, contudo, que me ronda: se a maternidade tardia tem tantos poréns, por que tantas, e cada vez mais, pessoas optam por ela?

Tento encontrar a resposta nas mães ou não mães tardias que conheço. Algumas dizem que protelaram a gravidez por questões profissionais; outras, por questões financeiras; e outras ainda, porque queriam aproveitar um pouco mais a vida —viajar, fazer coisas que seriam mais difíceis tendo filhos.

Eu sinto que há algo além disso. Algo subliminar que percebo nos dedos estalados, na demora para elaborar as respostas. Algo que reconheço porque também está dentro de mim: a ideia de que a maternidade é um ato solitário. De que elas terão, sim, que parar de trabalhar por pelo menos quatro meses. De que elas poderão, sim, ser prejudicadas profissionalmente por essa escolha. De que elas irão, sim, ter muito menos tempo, tendo que lidar com mais tarefas da casa e ficando mais distantes da sua realização pessoal.

Claro que ninguém espera criar um filho sem investir energia —quem não investe não está criando, está apenas vendo-o crescer. No entanto, de onde vem a perspectiva de tamanha privação? Com certeza, não de um cenário fictício, de um delírio ovariano coletivo, mas do que nos cerca. Uma realidade em que geralmente mulheres cuidam muito mais dos filhos que os homens.

Começando pela licença-maternidade prevista em lei, de quatro meses para elas e apenas cinco dias para eles, uma assimetria que imprime na sociedade a ideia equivocada de que a responsabilidade na criação de um rebento é mais da mãe, quando, mesmo nos primeiros dias após o parto, as tarefas, com exceção da amamentação, podem ser divididas igualmente. Tanto que, em alguns países, como a Suécia, pai e mãe têm direito aos mesmos dias de licença e ainda podem decidir como usá-los, criando cenários em que o pai fica em casa e a mãe volta para o trabalho.

Situação realmente distante da nossa, já que a precarização do trabalho no Brasil transformou a própria licença-maternidade, dividida como for, em mais um privilégio. Também não vem do nada a ideia de que a mulher pode ser prejudicada profissionalmente por sua escolha em ser mãe , visto que gravidez, licença-maternidade e tempo dedicado aos filhos ainda são vistos com maus olhos no Brasil por várias empresas, podendo atravancar contratações, promoções e aumentos.

Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, mulheres com filhos ganham até 40% menos que mulheres sem filhos, que por sua vez ganham em média 20% menos que os homens, ainda que executem a mesma função.

Quem sabe em um país com maior igualdade de gênero nada disso acontecesse, mas aqui a diferença salarial ainda é alimentada pela crença injusta (e oportunista) de que mães rendem menos no trabalho. Injusta, mas alicerçada em outra disparidade real: é inegável que as mulheres são mais absorvidas pela vida doméstica, pois um conjunto de regras silenciosas e perversas ainda ditam que limpar a casa, comprar presente de aniversário para o colega e participar do grupo de WhatsApp da escola são tarefas mais delas que deles.

Mesmo quando as coisas dão errado e o bebê não vem, como no caso de F., é sempre sobre ela, e não sobre ele, que recai a pergunta: "Por que demorou tanto para tentar ter filhos?".

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