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Tecnologia divide igrejas entre veneração e blasfêmia

Uso de aplicativos e outras ferramentas digitais em cultos religiosos provoca debates

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Anna Virginia Balloussier
Anna Virginia Balloussier

Repórter especial, escreve sobre religião, política, eleições e direitos humanos.

[RESUMO] Desde a invenção da prensa por Gutenberg, no século 15, a revolução tecnológica assombra missionários e vem mudando drasticamente as igrejas pelo mundo. Com a pandemia, alastrou-se o uso de novas ferramentas de comunicação virtual nos cultos, o que contrapõe fiéis que percebem nisso um magnífico instrumento de evangelização ou apenas heresias da modernidade.

"Meu filho de 7 anos acabou de perguntar se d.C. [depois de Cristo] significa ‘depois dos Computadores’", gracejou o engenheiro de software Mica Gorrell anos atrás. O post ganhou vida própria na internet, replicado como sintoma de tempos que espicharam o conceito de "Deus ex machina".

A expressão em latim, que podemos traduzir como "Deus que surge da máquina", tem raízes no teatro na Grécia Antiga. A técnica consistia em jogar um ator em cena, com auxílio de maquinários, para representar um deus que oferece soluções mirabolantes a um impasse entre mortais. Seriam, portanto, recursos narrativos que parecem cair do céu.

O pastor Ed René Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca, faz culto online em auditório vazio, durante a pandemia - Eduardo Anizelli-15.mar.20/Folhapress

A imagem de uma potência divina que emana da tecnologia foi evocada no auditório de uma unidade da ACM (Academia Cristã de Moços), no centro de São Paulo. Um andar acima de jovens se exercitando em roupas de lycra, um pastor canadense com doutorado na americana Duke University abria no começo de setembro o 1º Congresso Internacional de Teologia da Fatipi, faculdade gerida pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.

No entanto, ao contrário do macete teatral para resolver os imbróglios do roteiro em um passe de mágica, as novas ferramentas de informação e comunicação acabaram produzindo novos dilemas às igrejas cristãs, argumenta Jason Byassee.

A era digital dividiu púlpitos mundo afora, ora abraçada por aqueles que nela veem um magnífico megafone para a evangelização, ora repudiada por quem só enxerga heresia em modernidades que "prometem fazer coisas que só Deus pode fazer", afirma o palestrante.

Neste octógono religioso, caem no braço dois lados que recauchutam perspectivas definidas por Umberto Eco como apocalíptica e integrada. A primeira resiste a inovações tecnológicas que empolgam as massas, vistas como mola propulsora para um Armagedom cultural. A segunda as acolhe com entusiasmo.

Em "The Gutenberg Elegies: The Fate of Reading in an Electronic Age" (as elegias de Gutenberg: o destino da leitura numa era eletrônica, em tradução livre), o ensaísta Sven Birkerts pende para o time dos pessimistas.

"O Diabo não se move mais com cascos fendidos, cheirando a enxofre. Ele afirma nos ajudar o tempo todo a ter um futuro mais brilhante e mais fácil, e seu discurso marqueteiro é discreto. Os dedos tocam nas teclas, um mar de fatos e sensações são baixados e dissolvidos no sistema nervoso. Poços de dados infinitos são acessados e manipulados", afirma. "Do fundo do coração ouço a voz que diz: ‘Recuse’."

Muitos tentaram. Em vão. Missionários já temeram telégrafos, rádio, televisão, até mesmo a escrita. A revolução tecnológica provocada por Johannes Gutenberg, inventor de uma máquina capaz de reproduzir textos a rodo, fez a Igreja Católica gelar.

O clero receava que a técnica da imprensa corroesse sua autoridade, e foi exatamente isso o que aconteceu. A Reforma Protestante deu no que deu porque panfletos com escritos do ex-monge Martinho Lutero puderam rodar a Europa, algo impraticável na era dos textos replicados artesanalmente.

A visão apocalíptica tem notas de escatologia bíblica, braço teológico que se debruça sobre o juízo final prescrito no Novo Testamento. A integrada, contudo, também tem seus arroubos messiânicos, segundo Byassee. Os barões do Vale do Silício, afinal, "deveriam nos pagar royalties", por emular tão bem a retórica cristã da prosperidade.

Atribuir qualidades divinas à tecnologia pode soar escandaloso a ouvidos mais tradicionalistas. Difícil, contudo, tapar os olhos para a presença dessa força com pretensões de onipresença, onisciência e onipotência no dia a dia dos fiéis.

Se no princípio era o verbo, hoje é o ChatGPT que se propõe a redigir sermões. Futuristas já flertam até com uma imortalidade via upload da memória e da consciência, uma concepção de transcendência até então mais comum ao discurso religioso.

O pastor e teólogo Jason Byassee (segundo da esq. para a dir.) no Congresso Internacional de Teologia da Fatipi (Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil) - Divulgação

Recentemente, André Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha, polarizou o segmento ao ofertar cultos em embalagem digital. É o tal do metaverso. Funciona assim: a pessoa cria um avatar e, de casa, entra num templo feito de pixel. Um telão exibe a pregação de um pastor da casa. Em vídeo intitulado "Até batismo teve!", o youtuber evangélico Rafael Bitencourt questionou a iniciativa: "Isso tá errado? Fé artificial? A igreja tá certa ou perdeu o foco?".

Valadão chegou a comprar briga com um seguidor que fustigou a novidade. "No metaverso pessoas fazem negócios, se prostituem, apostam e por aí vai. Tava já na hora da igreja chegar lá. Você é mais um dos atrasados que tem um celular hoje na mão, mas um dia disse que TV era do Diabo, e internet também. Você não é crente, não."

Há ferramentas mais invasivas. Adotado por algumas igrejas americanas, o Covenant Eyes se dispõe a combater a pornografia entre fiéis. Diz a propaganda: "Seja o farol de esperança que atravessa a névoa e conduz as pessoas por meio de um processo cheio de graça até os pés da cruz".

Na prática, o que o aplicativo faz é instalar um software espião para que pastores consigam monitorar a atividade online de potenciais pecadores, com aval deles. Uma espécie de Big Brother celestial. Com ajuda da inteligência artificial, pode identificar "atividades preocupantes" e bloquear o acesso a elas.

Se o usuário procurar, digamos, conteúdo proibidão, seu líder religioso ou algum amigo indicado pode receber uma notificação e o repreender. A promessa é "permitir liberdade através de transparência".

Impulsionados pela pandemia de Covid-19, que suspendeu reuniões religiosas por todos os cantos, alguns dispositivos tecnológicos foram incorporados sem grandes embaraços à rotina das igrejas. Caso da transmissão online de cultos, evolução das pregações televisionadas que desde os anos 1980 encharcam a grade de programação.

Onde está seu Deus agora? Não necessariamente na interação presencial entre os membros de uma congregação. Palavras de Jesus Cristo segundo o Evangelho de Mateus, "onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali eu estou no meio deles", passaram a valer para as cercanias digitais.

"A igreja sempre foi um corpo virtual. São Paulo escreveu cartas a cristãos de comunidades que nunca encontraria. Na época, a tecnologia era despachá-las por navios para serem lidas em outras igrejas", diz Byassee.

Agora a remessa proselitista chega de imediato às nossas vidas, o que bagunça um tanto o coreto religioso, repara Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e colunista da Folha.

"No islamismo, há aplicativos que ajudam a localizar a posição da cidade de Meca para fins de orações. Em muitas igrejas pentecostais nos EUA, câmeras usam reconhecimento facial para identificar semanalmente os frequentadores. No Brasil, são comuns os grupos de oração no WhatsApp."

A tecnologia por si só não é de Deus, tampouco do Diabo, diz Lemos. Depende de quem a aplica, e como. Pode amplificar as práticas religiosas ou substituí-las. E também pode acirrar conflitos embasados na fé, "colocando pessoas que pensam similar juntas, promovendo o chamado ‘group thinking’, e fazendo estratégias de radicalização circularem com maior eficácia online", aponta. "Ela não está imune aos impactos que provoca em outros campos sociais."

Mas é fácil entender por que causa tanto rebuliço nas igrejas. A velocidade com que avanços tecnológicos preenchem cada poro social, e os poderes paradoxais que lhes atribuímos de salvar e aniquilar a humanidade, convergem com o sistema operacional de boa parte das crenças.

Mesmo Hollywood parece se emocionar com essa intersecção, diz Byassee. Ele dá dois exemplos: o interesse amoroso de Neo, o messias da distópica "Matrix" (1999), é Trinity, nome em inglês que serve também à Santíssima Trindade composta por Pai, Filho e Espírito Santo.

"O Show de Truman" (1998), sobre um homem que desde que nasceu tem todos os seus passos transmitidos num reality sem ele saber, traz um produtor-executivo todo-poderoso. Ele se chama Christof, corruptela para "Christ off", ou Cristo fora, e até fala com o protagonista com uma voz divina que vem de cima.

O que vale, no fim, é aprender a dosar a quantidade de tecnologia que deixamos entrar nas nossas vidas, sugere o pastor convidado a falar no congresso presbiteriano em São Paulo. Missão fulcral para a liderança cristã no século 21 depois de Cristo, e na década 4 depois da primeira leva de computadores pessoais lançada pela IBM.

"De prejudicial, diria que, com essa nova realidade, nós perdemos a capacidade de fazer uma leitura aprofundada das coisas e, em vez disso, pastoreamos superficialmente. Os dispositivos colonizam nossa imaginação e atenção, que são lugares-chave para a oração", afirma. "De útil, podemos aprender com as igrejas ao redor do mundo sem ter que levar pessoas como eu de um continente para outro."

Um só corpo em Cristo, se Deus e o 5G quiserem.

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