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Tiago Ferro

Bob Dylan viaja com leitor para viver outras vidas em livro sobre canções

'A Filosofia da Música Moderna' é um convite para mergulhar no caleidoscópio da imaginação do Nobel de Literatura

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Tiago Ferro

Escritor, crítico literário e autor de 'O Seu Terrível Abraço' e 'O Pai da Menina Morta', vencedor do Prêmio Jabuti 2019 (ambos pela editora Todavia)

[RESUMO] Em seu mais recente livro, o músico e escritor Bob Dylan, prêmio Nobel de Literatura, comenta 66 canções que moldaram a cultura americana dos anos 1940 a 1970 e, com mão firme e imaginação solta, leva o leitor a buscar o sentido da vida, com seus altos e baixos, nessa trilha sonora que espalhou sonhos pelo mundo.

Após Bob Dylan espalhar dezenas de pistas biográficas falsas, conceder entrevistas enigmáticas e promover viradas bruscas e inesperadas na própria carreira, não se deve levar ao pé da letra a promessa inscrita no título de seu novo livro, "A Filosofia da Música Moderna" (Companhia das Letras).

Há algo evidentemente desencaixado entre uma obra filosófica e um astro pop, mas é bom não esquecer que esse mesmo artista teve a ousadia de levar o Prêmio Nobel de Literatura em 2016.

Bob Dylan recebe prêmio em Washington em 2012 - Christy Bowe - 29.mai.12/Globe Photos/Zumpress/Xinhua

Seja como for, e para nossa sorte, não é um livro com intenções acadêmicas. Tampouco o "música moderna" do título remete ao dodecafonismo ou qualquer coisa que o valha. Trata-se da canção popular em língua inglesa, principalmente a produção americana dos 30 anos após a Segunda Guerra Mundial. Uma era de ouro da inventividade e da mistura de referências e gêneros.

Surgia ali a trilha sonora de um país em rápida transformação, que se espalharia pelo mundo, tornando-se, entre as formas de arte mundanas, a mais pública e onipresente.

Dylan, ao longo de mais de 300 páginas repletas de ilustrações, apresenta 66 canções, sem qualquer fidelidade ao cânone ou intenções de estabelecer um novo. O livro é um convite para que o leitor mergulhe no caleidoscópio privado dos sonhos que forjaram a imaginação do próprio autor.

E não se trata de um artista qualquer, mas daquele que melhor encarnou os famosos versos de "Song of Myself", texto de 1855 de Walt Whitman, no qual o poeta do Brooklyn parece ter soprado diretamente nos ouvidos do bardo moderno as seguintes palavras: "Me contradigo?/ Tudo bem, então me contradigo,/ Sou vasto, contenho multidões".

As crônicas, se é que é possível classificar esses textos curtos, variam entre a paráfrase de canções, realizada com mão firme e imaginação solta, momentos de aguda interpretação formal de obras e histórias sobre algumas gravações e biografias. Não é raro que digressões sobre aspectos da vida atual em sociedade irrompam com naturalidade no texto.

Sem qualquer apresentação, damos de cara com o primeiro texto do livro, sobre a canção "Detroit City", de Bobby Bare, gravada em 1963, quase garantidamente uma referência distante do público brasileiro e talvez também do americano de hoje. Mas o espanto e o estranhamento são convertidos em encantamento logo nas primeiras linhas sobre Bare.

Daí em diante é preciso se entregar ao livro como fazemos ao escutar os primeiros acordes de "Like a Rolling Stone" ou "Positively 4th Street". Domar a obra seria o mesmo que tentar decifrar a multidão de personalidades artísticas encarnadas pelo artista.

Um dos achados da paráfrase realizada por Dylan é o uso reiterado do pronome "você". O recurso coloca o leitor no centro das canções, ou melhor, do outro lado do espelho, convidando-o a sentir o mundo junto com o intérprete.

"Detroit City" começa com os seguintes versos: "I wanna go home, I wanna go home, oh how I wanna go home/ Last night I went to sleep in Detroit City and I dreamed about those cotton fields and home". E então vem o Dylan: "Nessa canção você é o filho pródigo. Ontem à noite você foi dormir em Detroit. De manhã, perdeu a hora, sonhou com campos de algodão branco como a neve e teve alucinações com fazendas imaginárias".

Se Bare conta que sonhou com a vida familiar no campo, com a mãe e o pai, e que ele os tem enganado sobre o seu próprio sucesso na cidade grande, e daí o desejo de voltar para casa, Dylan extrapola o sonho como metáfora de uma ilusão social compartilhada.

"Não tem mãe, nem velho pai, irmã ou irmão. Estão todos mortos ou já se foram. A garota dos sonhos dele se casou com um advogado especialista em divórcios e tem três filhos. Como tantos outros, ele deixou a fazenda, foi para a cidade grande atrás de novas perspectivas e acabou se perdendo. É por isso que essa música funciona."

Na mesma "Detroit City", Bare ainda canta: "By day I make the cars/ by night I make the bars". Dylan reinventa o paralelismo dessa vida dupla atualizando a imagem com matéria atual: "De dia, trabalha na montadora com jipes, limusines e outros carros beberrões de gasolina; de noite, serve coquetéis em bares".

A paráfrase é, portanto, tão livre quanto envenenada. Retira muitas vezes o conteúdo do contexto original para alcançar os nossos dias e incluir sua própria visão da história. A experiência passa a ser compartilhada com o leitor, independente de distâncias temporais e barreiras geográficas.

Lembrando que a indústria cultural tornou esse universo muito familiar ao leitor brasileiro. Conhecemos Detroit, o aspecto da família rural branca e pobre do sul, dos artistas negros no norte industrializado, os protestos contra a Guerra no Vietnã, os cartazes de "procura-se vivo ou morto" etc.

Em algum lugar o pouco confiável Dylan contou que, enquanto ouvia canções no rádio, ainda criança, sentiu que com elas podia fugir, viajar e, principalmente, viver outras vidas. É justamente essa a aposta de "A Filosofia da Música Moderna".

O leitor vai encarnar diferentes personalidades e sentimentos ao longo dessas páginas, a melhor tradução dos efeitos da canção moderna. E, como tem consciência o autor, cada um desses aspectos age de diferentes maneiras em cada um. "O que importa é como uma canção faz o ouvinte se sentir em relação à própria vida."

São muitos os caminhos oferecidos pelo livro. O leitor vai ser o filho pródigo, mas também o prodígio, as pessoas vão ser alérgicas a você, você vai se divertir com os sentimentos alheios e na sequência se deixar levar por uma impostora, vai ser um tolo, um fora da lei, nostálgico e melancólico, um sonhador, um inconformado, um assassino e um surpreendente serial killer, vai atravessar o país, vai ser uma criança italiana na Costa Oeste, e também vai pertencer, ainda que uma única vez, ao círculo das elites. Na maioria das vezes os planos saem dos trilhos, e você dá a volta por cima ou apenas desiste, se entrega ao álcool ou às drogas.

Jogado de um lado para o outro, o leitor sente as rápidas e turbulentas transformações que atravessaram os Estados Unidos no período. Uma cartografia histórico-afetiva que privilegia a visão de mundo dos excluídos vai sendo construída página a página.

O antiacadêmico Dylan também oferece lições de crítica. Principalmente sobre o papel da criatividade e da boa escrita para melhor traduzir formas artísticas em palavras. Um exemplo está na canção de Elvis Costello: "'Pump It Up' é vibrante e muito bem feita. Apresenta ganchos delicados e aparência suja, propaganda enviada dos céus e calúnias incompreensíveis".

Ou quando descreve Perry Como, "o anti-ídolo" americano: "Ele é o contrário da última moda, da lista das mais tocadas, da ostentação. Já era um Cadillac antes dos 'rabos de peixe'; uma Colt 45, não uma Glock; um bife com fritas, não cozinha californiana. Perry Como faz e acontece. Não tem artifícios, não violenta uma sílaba para inserir notas desnecessárias".

O outro achado do livro são as pequenas histórias, como a de Elvis, a partir de "Viva Las Vegas". Em Dylan não há lugar para esquematismo, moralismo ou punitivismo. Sua "América" é imperfeita e por isso grandiosa. O que lhe interessa são as versões alternativas do país que escapam pelas brechas muito estreitas de uma sociedade regulada por todos os lados pela lógica da eficiência e do mercado.

De acordo com o autor, "Viva Las Vegas" é uma canção sobre a fé. Não a dos pioneiros ou dos pastores da TV, mas "o tipo de fé que te faz ficar em pé no saguão de mármore de um hotel suntuoso com neon piscando enquanto milhares de mulheres bonitas trajando collants de paetês te servem drinques de graça e flertam pra conseguir uma gorjeta em uma cidade de luzes radiantes, cheia de lojas de penhores e suicídios, e ainda assim você acha que vai ganhar".

Sonho e delírio no constante dobrar as apostas e se endividar. Armadilha para um mundo de ilusões, mas também de oferta inédita de prazer. "Las Vegas, a encruzilhada do mundo moderno, o Jardim do Éden, a Terra dos Sonhos", atravessa a história de Elvis, do Coronel Tom Parker e também atualiza sem parar o velho circo americano itinerante com suas curas milagrosas.

Elvis encarna, noite após noite no hotel Hilton, a mistura caótica desse universo sombrio e ofuscante de arte e entretenimento, sonho e frustração, lantejoulas e o vampirismo das drogas lícitas e ilícitas, que é o tempo em looping, sedutor e terrível, daquele país.

Também conhecida como "Sin City", paraíso e inferno se alternam incessantemente na cidade que descarta, um após o outro, sonhos gerados por ela mesma: Sinatra, depois Elvis e hoje uma torre Eiffel ao lado de pirâmides egípcias, castelos medievais e todo tipo de oferta de junkie food e "strip clubs". Dylan reconhece o encanto, ou ao menos seu papel no imaginário norte-americano ao dissolver a realidade no espetáculo, mas não se ilude. No fim, "a banca sempre ganha".

Encerrado o livro, as fronteiras entre cultura séria e pop soam como penduricalhos inúteis. Em 2016, a Academia Sueca não trouxe um forasteiro para o hall de ilustres escritores. Foi além. Lembrou em alto e bom som, com muita poesia, guitarra e uma voz sedutoramente rouca, que a literatura não se restringe ao ato de leitura solitário e silencioso. Ela também é oral, pública e pode ser cantada e dançada.

Dylan, do alto de seus 82 anos, deu ainda mais um passo adiante nessa conversa, ao fazer o leitor buscar o sentido da vida nas experiências disponíveis ao sujeito moderno, com todos seus altos e baixos, não nos conceitos frios da filosofia acadêmica, mas no "a-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom" do gigante Little Richard.

É impossível não buscar as canções do livro no Spotify. Da minha parte, muitas foram decepcionantes, afinal, não fazem parte do meu mundo. Mas certamente há multidões de experiências vividas indiretamente por cada um de nós na trilha sonora de nossas vidas. E com elas, muitos futuros alternativos a serem sonhados.

A Filosofia da Música Moderna

  • Preço R$ 249,90 (352 págs.); R$69,90 (ebook)
  • Autoria Bob Dylan
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Bruna Beber e Julia Debasse
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