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Leonardo Avritzer

Resposta: Narrativa de limpeza étnica busca demonizar imagem de Israel

Clemesha recorre a casos frágeis para sustentar expulsão de palestinos e se alinha a Pappé em empreendimento ideológico

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Leonardo Avritzer

Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG

[RESUMO] Em resposta a Arlene Clemesha, historiadora que sustenta que a expulsão de palestinos de suas terras em 1948 foi um objetivo deliberado de Israel, autor contesta a suposta falta de legitimidade da ONU para aprovar o plano de partilha da Palestina e critica os trabalhos de Ilan Pappé, que considera um historiador secundário. Em sua avaliação, a obra do israelense se assenta em discursos imprecisos e panfletários e está comprometida com a demonização da imagem de Israel

Escrevi no início de dezembro, nesta Ilustríssima, uma réplica a um artigo de Arlene Clemesha, cujo argumento central era que existe uma nova historiografia israelense sobre a Nabka, o êxodo ou a expulsão dos palestinos da região originalmente reservada a eles pela resolução 181 da ONU. Segundo Clemesha, o principal autor ligado a essa bibliografia, o historiador israelense Benny Morris, adotava um meio-termo feliz, "já que reconhecia a expulsão, mas negava a motivação".

Com base na obra de Morris, a autora realizava o mesmo percurso que Ilan Pappé e ampliava a análise de Morris na direção de um plano preconcebido de expulsão dos palestinos da área reservada pela ONU para dois Estados, um israelense e outro palestino.

Soldados israelenses prendem os últimos combatentes na frente do Negev em novembro de 1948 - AFP

A réplica ao artigo se baseava em dois pontos principais: primeiro, que a obra de Morris não havia sido retratada adequadamente, porque o autor mostra múltiplas causas do êxodo ou da expulsão dos palestinos desde a saída voluntária que teria ocorrido em Haifa até a expulsão que teria ocorrido em Lod. A partir daí, defendi que não houve um plano israelense de expulsão dos palestinos, mas um conjunto variado de formas de êxodo, causado por um fato fundamental: a rejeição pelos palestinos do plano de partilha das Nações Unidas, de novembro de 1947.

Clemesha escreveu uma tréplica com três argumentos principais: o primeiro supõe a legitimidade de discordar de resoluções da ONU. De acordo com a autora, eu também discordaria de algumas decisões, como, por exemplo, da resolução 3.379, que equiparou o sionismo ao racismo. Surpreendentemente, Clemesha esquece de afirmar que 111 países também discordaram da resolução e a revogaram em 1991.

Em segundo lugar, a autora contesta que o êxodo ou a expulsão dos palestinos ocorreu fundamentalmente depois de abril de 1948, um argumento bastante consolidado na literatura especializada, como irei mostrar abaixo.

Por último, Clemesha insiste em afirmar que eu ignoro a obra de Ilan Pappé, considerada por ela "um dos principais historiadores israelenses". Farei na parte final deste artigo uma avaliação da obra de Pappé, um pesquisador secundário cuja estratégia intelectual é radicalizar teses por meio de operações duvidosas para construir um argumento que é mais ideológico que histórico.

A questão das resoluções das Nações Unidas, sua importância e sua centralidade para o conflito entre palestinos e israelenses constitui o ponto central do argumento da autora. Lembro aqui que o meu argumento no artigo de réplica foi o seguinte: uma parte do êxodo palestino —palavra que usei a partir do significado convencional na língua inglesa, "uma situação na qual muitas pessoas saem de um lugar ao mesmo tempo"— se deu em virtude da não aceitação da resolução de partilha da ONU.

Clemesha me respondeu da seguinte forma: "Uma ONU com menos de 30% de seus membros atuais, pois a maioria dos países do mundo ainda eram colônias, como era, de fato, a Palestina, sob a forma de um mandato britânico. A mesma ONU, em 1975 e com muitos mais membros, determinou "que o sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial", supomos que com a oposição (atual, claro, e perfeitamente legítima) de Avritzer".

Temos duas questões relevantes aqui para serem discutidas: o primeiro ponto é que, para a autora, é legítimo discordar de resoluções da ONU —uma afirmação duvidosa, porque muitas dessas resoluções constituem fundamentos do direito internacional. Ou seja, no limite, Clemesha está afirmando que a adesão ao direito internacional é um ato voluntário.

Em segundo lugar, a autora defende outro argumento ainda mais duvidoso —que as resoluções das Nações Unidas, em seu primeiro momento, não eram válidas porque a maior parte dos países eram colônias— e pergunta se eu considero válida a resolução que igualou o sionismo ao racismo. À pergunta colocada em números quantitativos, me eximo de responder.

No entanto, Clemesha esquece que, em dezembro de 1991, a própria Assembleia Geral da ONU revogou a decisão por maioria de 111 votos. A omissão de um fato tão importante como esse pode ser considerada um lapso por parte da autora? Dificilmente para uma especialista em história árabe.

Mas o ponto mais importante aqui é que o argumento "eu sigo as resoluções da ONU de que eu gosto" —algo que, em geral, é atribuído ao Estado de Israel— aparece como o centro do argumento da autora. Vale a pena apontar que, no contexto no qual é colocado, ele serve para desconsiderar um fato muito mais relevante: os palestinos e os países árabes não ignoraram a resolução de partilha da Palestina.

Eles reagiram com exércitos de quatro países contra ela, gerando uma guerra que teve consequências: a principal delas foi o êxodo da população da região originalmente reservada para um Estado palestino. Assim, existe um consequencialismo entre o ato de não aceitar a resolução de partilha e o êxodo, em parte voluntário e, em parte, resultado de ações militares.

Com o intuito de invalidar esse argumento, Clemesha tenta negar um segundo fato histórico: até abril de 1948, na guerra civil que se iniciou no começo de dezembro de 1947, o número de refugiados palestinos não era muito elevado.

A autora afirma: "Avritzer defende que o 'êxodo' palestino teria começado apenas em abril de 1948. Essa também é uma falsa alegação recorrente em fontes da história oficial de Israel e já contestada por boa parte da chamada nova historiografia israelense. Em março-abril, os ataques das milícias sionistas tornaram-se de fato mais intensos, mas não começaram nessa data. Basta lembrar que, de dezembro de 1947 a março de 1948, foram expulsos 250 mil palestinos. Bairros inteiros das porções árabes de Jerusalém, de Jaffa, além da já mencionada Haifa, foram esvaziados nos três primeiros meses de 1948". Cabe aqui lembrá-la que fontes palestinas dizem o mesmo.

Por exemplo, o general Ismail Safawar, comandante do comitê militar da Liga Árabe afirmou, em março de 1948: "Apesar de enfrentamentos e batalhas terem começado, os judeus nesse estágio estão tentando conter a luta o máximo possível na esperança de que a partilha seja implementada e um governo israelense seja formado" (Benvenisti, 2002).

Em primeiro lugar, vale a pena esclarecer ao leitor por que essa data é tão importante. Se, de fato, tal como afirma Clemesha sem base em qualquer documento historiográfico, o êxodo palestino teria sido provocado por Israel, então o problema da guerra poderia ser relativizado. Porém, como irei mostrar, esse não foi o caso.

Duas questões aparecem aqui como decisivas: a primeira é a escolha de cidades pela autora, que não poderia ser pior para exemplificar seu argumento. Como Clemesha, ao que parece, aceitou minha argumentação em relação a Haifa, uma vez que não existe nenhum historiador sobre o conflito que localiza a saída de palestinos dessa cidade em dezembro de 1947, resta discutir os casos de Jaffa e de Jerusalém.

As forças do chamado Irgun, a organização de extrema direita que deu origem ao partido Likud, atacaram Jaffa em 25 de abril de 1948. É polêmico se as forças da Haganá, que dariam origem ao Exército de Israel, sabiam do ataque. De qualquer maneira, os ingleses não sabiam e protestaram com as autoridades israelenses até que, em 28 de abril, as forças britânicas realizaram um ultimato às forças de Israel, ameaçando inclusive bombardear Tel Aviv.

As hostilidades cessaram, e Jaffa foi conquistada em maio por forças israelenses que não expulsaram a sua população. Hoje, existem 60 mil israelenses e 30 mil palestinos em Jaffa, uma cidade binacional.

No caso de Jerusalém, as evidências contradizem ainda mais acentuadamente as alegações feitas por Clemesha. Em fevereiro de 1948, o filho do mufti da cidade, Abd al-Qadir al-Husseini, ocupou o corredor que conduz de Tel Aviv a Jerusalém, bloqueando o acesso à cidade. Entre fevereiro e abril, a Haganá tentou romper o bloqueio, mas obteve sucesso apenas no final desse mês.

Nos dias seguintes à declaração de independência de Israel, em maio de 1948, a chamada Legião Árabe, na esteira da saída dos ingleses da Palestina, se movimentou em direção à Latrun, região-chave para o controle de Jerusalém. A legião bloqueou a parte ocidental da cidade outra vez, em um momento em que os suprimentos de alimentos e água não chegavam a durar dez dias (sobre o bloqueio de Jerusalém, recomendo o romance "Meu Michel", de Amós Oz).

Ao mesmo tempo, as tropas jordanianas tomaram Jerusalém Oriental e expulsaram a população judaica da cidade velha. Assim, ao longo dos meses de maio e junho, Jerusalém esteve sitiada e diversas operações militares para furar o bloqueio fracassaram.

No final de setembro daquele ano, o gabinete israelense desistiu da reconquista de Latrun e uma via alternativa de acesso a Jerusalém foi aberta, pondo fim a quase sete meses de bloqueio. Assim, a ideia defendida por Clemesha, que os israelenses aterrorizaram os habitantes palestinos de Jerusalém, decididamente não condiz com qualquer relato histórico sobre os episódios na cidade em 1948.

Desse modo, é possível perceber um curioso paradoxo entre o argumento de limpeza étnica e os casos que a autora nomeia como prova. Se tomarmos a definição da ONU, elaborada no contexto da guerra da ex-Iugoslávia, podemos entendê-la como "o ato de tornar uma área etnicamente homogênea através do uso da força e da intimidação por meio da remoção de pessoas de um determinado grupo dessa área". Nenhum dos três exemplos mobilizados por Clemesha parece compatível com a definição.

No caso de Haifa, a própria autora reconhece "certa demonstração de simpatia pelos palestinos por parte do prefeito de Haifa". Em Jaffa, a população é etnicamente diversa hoje; em Jerusalém, houve a expulsão mútua de judeus e palestinos de bairros da cidade. Assim, o argumento da limpeza étnica parece um argumento ideológico tomado emprestado daquele que Clemesha considera um dos principais historiadores israelenses, Ilan Pappé. Analisemos sua obra para avaliar se lhe cabe esse título.

Em parte da sua tréplica ao meu artigo, a autora afirma que "Ilan Pappé defende a existência de um plano para a limpeza étnica, mas, já que Avritzer estranhamente resolve ignorar por completo a obra de um dos principais historiadores israelenses e menosprezar os escritos de um dos mais importantes historiadores palestinos, Walid Khalidi [...]". De fato, concordo em parte com Clemesha. Decidi ignorar a obra de Ilan Pappé, mas não a de Khalidi, que citei em parte da minha discussão sobre Haifa.

Certamente, Ilan Pappé não está entre os principais historiadores israelenses. O que ele faz é transformar debates acadêmicos em posicionamentos ideológicos, desrespeitando os elementos históricos fundamentais que estruturam esses debates. Pappé realiza essa operação tanto na discussão sobre as origens coloniais do Estado de Israel quanto na discussão sobre limpeza étnica.

A discussão de que Israel é uma entidade colonial se baseia em uma literatura fundamentalmente equivocada. Fatos básicos da história do sionismo e da formação do Estado de Israel têm de ser negados para que seja aceita a narrativa colonial.

Afinal, se tomarmos algumas das principais teorias sobre o colonialismo ou o pós-colonialismo, certas características têm de estar presentes, como a presença de uma metrópole europeia com um projeto econômico extrativista associado a uma proposta de hegemonia cultural exercida por meio da linguagem e da cultura.

Em nenhum dos critérios, a formação do Estado de Israel se encaixa bem, uma vez que os movimentos migratórios que envolveram o empreendimento sionista tiveram origem entre grupos subalternos da Europa Oriental e da Rússia, que não professavam uma teoria da colonização. Ao mesmo tempo, vale a pena lembrar que os imigrantes judeus da Palestina não fizeram qualquer esforço visando ao estabelecimento de um processo de hegemonia linguística e cultural em relação aos palestinos.

Mais recentemente, alguns autores utilizaram o termo "settler colonialism" (Wolfe, 2006) para caracterizar o Estado de Israel, tentando equipará-lo a casos como os dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia.

As dificuldades são semelhantes: ainda que Israel pudesse ter supostamente a sua origem na colonização britânica do Oriente Médio, essa não envolveu em qualquer momento a associação entre o Reino Unido e o movimento sionista para adquirir grandes porções de terra para a colonização. Pelo contrário, os britânicos criaram enormes dificuldades para a aquisição de terrenos pelo movimento sionista (Strawson, 2019).

Em seu livro "Dez Mitos sobre Israel", Ilan Pappé deu o passo perigoso de realizar a transição de um debate acadêmico bem-informado, que começou ainda em 1967 na revista Les Temps Modernes, com contribuições de Maxime Rodinson e Claude Lanzmann, para um discurso panfletário cheio de imprecisões e distorções.

Sua principal tese, altamente discutível inclusive entre os autores que ele cita equivocadamente com frequência, é "um estudo meticuloso e abrangente sobre como o nacionalismo palestino surgiu antes da chegada do sionismo e pode ser encontrado nos trabalhos de historiadores palestinos como Muhammad Muslih e Rashid Khalidi. Eles demonstram com clareza que setores da elite e de fora dela na Palestina se envolveram na criação de um movimento e um sentimento nacionais antes de 1882" (Pappé, 2022, p. 40).

Só que em seu livro "Palestinian Identity: the Construction of Modern National Consciousness" (identidade palestina: a construção de uma consciência nacional moderna), Khalidi situa muito cuidadosamente a emergência de uma identidade nacional palestina nos anos iniciais do século 20, em primeiro lugar como uma comunidade imaginada, termo de Benedict Anderson.

Assim, sem me alongar, Pappé e Clemesha realizam o mesmo empreendimento histórico duvidoso. Eles adentram debates acadêmicos sofisticados, que ajudam a entender elementos destrutivos do conflito —em especial o êxodo ou, em alguns casos, a expulsão dos palestinos da região originalmente reservada pela ONU para um Estado palestino— e os transformam em um debate ideológico no qual não prevalece a melhor explicação histórica, baseada em evidências, mas a narrativa que contribui com o objetivo do empreendimento: a demonização da imagem de Israel na esquerda por meio da exponenciação de narrativas relacionadas ao colonialismo ou à limpeza étnica, caras a esse público.

Nessa minha contribuição, a última deste debate, tentei mostrar que a análise ideológica não corresponde a evidências históricas, o que a obra dos dois autores tem em comum. Pappé continua citando um caso de massacre em Tantura depois da anulação da tese pela Universidade de Haifa, da retratação do seu autor e da admissão de falsificação de entrevistas após um processo judicial.

Clemesha fala em limpeza étnica e cita três casos que não condizem com a análise. Será que ela não soube escolher os casos? É possível, mas o mais provável é que ambos já estejam além daquilo que se chama história e tenham transformado um debate histórico em ideológico, com o intuito de satisfazer os grupos radicalizados das redes sociais.

Perdem com isso aqueles que entendem que a radicalidade acentua as características destrutivas do conflito entre palestinos e israelenses, como estamos vendo neste momento. O uso do conflito para radicalizar falsas soluções não irá conduzir nem à boa historiografia nem à boa política.

Obras citadas

"Colonialism" (Israel Studies, 2019), de John Strawson

"Dez Mitos sobre Israel" (Tabla, 2022), de Ilan Pappé

"Palestinian Identity: the Construction of Modern National Consciousness" (Columbia University Press, 2009), de Rashid Khalidi

"Sacred Landscape: the Buried History of the Holy Land since 1948" (University of California Press, 2002), de Meron Benvenisti

"Settler colonialism and the elimination of the native" (Journal of Genocide Research, 2006), de Patrick Wolfe

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