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André Jobim Martins

Reedição de livro cultuado de Sevcenko amplia debate sobre modernismo de 1922

Sem ser invulnerável à ideia de mitologia moderna da vida paulistana, alvo de críticas, obra revela alguns de seus limites

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André Jobim Martins

Doutor em História pela PUC-Rio e pesquisador de pós-doutorado no IEL-Unicamp

[RESUMO] "Orfeu Extático na Metrópole", de Nicolau Sevcenko, ganha nova reedição pela Companhia das Letras no final de fevereiro. O livro, sustenta artigo, prepara um pano de fundo para as narrativas de modernidade excepcional de São Paulo, visão contra a qual alguns críticos se insurgiram no centenário da Semana de 1922.

O movimento modernista de São Paulo nunca pareceu tão intempestivo quanto em 2022, ano de celebração de seu centenário. Enquanto o país atravessava os últimos círculos infernais da experiência bolsonarista, manifestações adversas aproveitaram a efeméride para questioná-lo.

Poucos dias antes do aniversário da Semana de 22, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o escritor Ruy Castro proclamou, entre outras provocações ao movimento, a ilegibilidade de "Serafim Ponte Grande", de Oswald de Andrade. Segundo ele, o romance oswaldiano só poderia ser lido com a "bula" (entenda-se, ensaio crítico) de Haroldo de Campos, do qual leu, com fingida seriedade, trechos carregados de termos técnicos.

Vista aérea do edifício Altino Arantes, no centro de São Paulo - Eduardo Knapp - 29.jun.22/Folhapress

Apareceram, é claro, discursos mais fundamentados, como "Modernidade em Preto e Branco" (Companhia das Letras, 2022) do historiador da arte Rafael Cardoso, e dois livros quase homônimos: "A Ideologia Paulista e os Eternos Modernistas" (Unesp, 2022), do professor da Unicamp Francisco Foot Hardman, e "A Ideologia Modernista" (Todavia, 2022), do crítico literário e professor da UFRGS Luís Augusto Fischer.

Começa a deitar raízes o diagnóstico de que a consagração da Semana de 22 instituiu um repertório estético e crítico que se articulou numa maneira de ler a história da cultura brasileira de forma não somente enviesada, mas perpassada por uma dimensão exclusivista. Tal gesto, ao desqualificar expressões e sujeitos que não se acomodam a seus pressupostos —vistos como pré ou pouco modernos—, interdita o aparecimento de uma visão mais lúcida e democrática sobre a história e a identidade do Brasil.

Basta lembrar da alcunha de "escritor de bairro" atirada a Lima Barreto no número 4 da revista Klaxon, de agosto de 1922, acrescida, com gosto e eficácia duvidosos, da imagem de um Lima a descer a Ladeira da Saúde com uma navalha e a intenção de dar uma "rasteira" nos klaxistas a uma distância de 20 metros —intenção malfadada, pois as suas "pernas espirituais" teriam somente dez centímetros.

Mesmo com essa composição desengonçada, a associação entre o negro carioca, a navalha e a rasteira não tarda a revelar o tipo de racismo de salão que Francisco Foot Hardman achará, dissimulado com mais destreza, em "Pronominais", de Oswald. O poema do "bom negro" que, assim como o "bom branco", diz "me dá um cigarro" no lugar de seguir a gramática normativa.

Para o crítico, a dinâmica subjacente à afirmação aparentemente niveladora da diferença, por efeito de uma conciliação assimétrica, atribui ao outro uma condição necessariamente subalterna.

Já o livro de Rafael Cardoso, ainda que não se resuma a uma afronta ao movimento, busca resgatar, como modernas, expressões da cultura de massa, como o rádio e o grafismo no Rio, injustiçadas pela historiografia que consagrou o modernismo paulista.

Também é forte no livro a ideia complementar de que o cânone modernista seria, nos termos do autor, "muito menos do que assombroso, até pelos padrões modestos de quem o consagrou". De quem ele está falando aqui? O livro se empenha em acentuar os aspectos problemáticos das obras de Mário e Oswald de Andrade.

Há, ainda, uma perceptível indisposição com a obra de Tarsila do Amaral, a mais consagrada expressão do modernismo nas artes visuais. A pintura "A Negra" é chamada de "representação brutalizada de uma negra genérica". Já "Morro da Favela", por sua vez, se reduz a um resultado da "simbiose" de seu pensamento com o de Oswald e à releitura, "naïf" e "caricatural", de ilustrações de Di Cavalcanti e J. Carlos. As duas telas integrariam, portanto, uma operação deliberada de autoexotização da pintora, feita para causar impressão moderna na intelectualidade parisiense.

É verdade que Cardoso irá enfatizar a centralidade de Tarsila na concepção da antropofagia, mas numa dimensão menos artística do que social, de amarração do grupo, que é convertido de "movimento estético" a "círculo de amigos e colaboradores" praticantes de uma "sociabilidade restrita, quase de panelinha". O elogio que há à obra da pintora é uma morna referência ao (relativo, que fique claro) "pioneirismo" do "Morro da Favela" como tematização erudita de seu objeto.

Se, de fato, como concede Cardoso, as teorizações oswaldianas sobre a antropofagia desenvolvem ideias "nascidas no âmbito da visualidade", é estranho que seu ensaio dedique atenção tão seletiva à pintura de Tarsila. Não há consideração crítica de telas notáveis produzidas em torno do período antropófago, como "Urutu", "Sol Poente" e "A Lua", para não falar de "Antropofagia", apenas mencionada de passagem, ou do antológico "Abaporu", a mais popular expressão do modernismo paulista, que chegou até a estampar copos de requeijão duas décadas atrás.

"Antropofagia" merece maior atenção de Cardoso em um ensaio, publicado em inglês, sugestivamente intitulado "Peles Brancas, Máscaras Negras", do qual "Modernidade em Preto e Branco" reproduz vários raciocínios, mas com resultados diversos.

Lá, Tarsila aparece como uma artista contraditória, mas inequivocamente sofisticada, sendo "A Negra" denominada "um artefato místico de engenhosa composição" ("a power figure of artful proportions"). Confrontando os dois textos, sou tentado a concluir que Cardoso, como os antropófagos, mira efeitos diferentes conforme o público que pretende alcançar.

Diante da profusão de ataques à "ideologia paulista", como fica a leitura de "Orfeu Extático na Metrópole", de Nicolau Sevcenko (1952-2014), clássico claramente posicionado do lado oposto dessa peleja? O texto lançado em 1992 sai em reedição pela Companhia das Letras no final de fevereiro, com nova diagramação, mas sem revisões ou paratextos adicionais.

Avaliar o mérito estético das produções consagradas como modernistas não é a questão central do autor, mas o fato é que este livro cerebral e caótico prepara um pano de fundo contra o qual as narrativas da "modernidade" excepcional de São Paulo se acomodam muito bem. Se a crítica recente a 1922 e ao modernismo tem na denúncia do "mito" (no sentido de fabricação fraudulenta) um de seus cavalos de batalha, o livro de Sevcenko adquire renovado interesse na medida em que, sem ser invulnerável a ela, revela alguns de seus limites.

Qual é o tema do livro? O recondicionamento dos corpos e mentes diante da súbita hipertrofia de São Paulo, talvez? A concreção simbólica da cidade como meio onde se produz a rede dos sentidos da vida moderna, quem sabe? Arrisco dizer que o livro é sobre certa mitologia urbana moderna como solo existencial da vida paulistana, sobre a sua construção em meio à experiência da rápida e avassaladora urbanização.

O texto demonstra, em movimento que se repete ao longo dos capítulos, a arrojada tese de que, na São Paulo dos "frementes anos 20", a história da vida real se confunde com a história da fabricação (geralmente inconsciente) de um mito, que se torna ele próprio o substrato das formas de compreensão e representação da vida.

O que se narra aqui é o nascimento de uma nova dicção, de um novo ritmo, de uma nova ideia de vida na qual as manifestações modernistas não são mais do que a sublimação erudita, crista vistosa de uma grande onda, merecedora de análise, mas situada na continuidade de um complexo muito mais amplo de formações culturais enraizadas na experiência histórica.

O mito, com sua pregnância plástica, exerce uma fascinação tautológica —o retorno ao mito, característico da mentalidade popular e erudita dos anos 20, se desdobra no raciocínio do historiador, que assume uma voz eloquente, oracular.

Os rituais da nova forma de vida, como as competições esportivas, tornam-se veículos de distensão da vivência das fricções cotidianas: "A cidade não vê o esporte de fora, ela se vê nele", "lhe dá vida, corpo e voz". O conteúdo do mito? A "paixão do movimento", a "religião da velocidade", a "magia da energia superlativa" gestadas no ritmo frenético da São Paulo dos anos 20, enfim, o "mito da ação" (mais fáustico do que órfico, eu diria), da construção de uma "Babel invertida", que une e congraça a humanidade, "mito erótico e holístico", observa Sevcenko.

"Orfeu Extático" é objeto do crivo inquiridor que Luís Augusto Fischer, em "A Ideologia Modernista", submete a tudo quanto possa emprestar credibilidade às narrativas consagradoras do modernismo paulista —econômico nos elogios, ele avalia, ainda assim, que o livro é "ótimo".

Os aliados no combate ao que denomina "modernistocentrismo", como Ruy Castro, recebem tratamento mais ameno, mesmo nos eventuais reparos do professor da UFRGS. Na sua leitura de "Metrópole à Beira-Mar" (Companhia das Letras, 2019), de Ruy, Fischer ironiza o "riocentrismo" do autor —ironia que, por sua vez, servirá de plataforma à denúncia da naturalização do bairrismo paulista dos "modernistocêntricos".

Já na insistência com que afirma São Paulo como a "cidade aberta ideal para acolher a experiência modernista", Sevcenko teria feito, segundo Fischer, uma "projeção do presente sobre o passado", "anacronismo" perpetuador de uma "visão escatológica" da história. Também terá superestimado a "fremência" dos anos 20 paulistas, com sua sensibilidade de "baby boomer" habituado à mudança como modo normal de vida.

Aqui, penso que é Fischer quem subestima o impacto existencial de viver numa metrópole que dobra de população num decênio, com ou sem rock’n’roll e revolução sexual. O foco do comentário crítico é a exposição do que seria um argumento implícito de Sevcenko: "São Paulo soube ser a metrópole moderna brasileira, enquanto o Rio se modernizou errado".

Acrescento às críticas de Fischer uma observação sobre os elementos visuais do livro, que têm grande poder de sugestão na experiência de leitura. Na capa, há uma reprodução da tela "O Homem Racional", do pintor búlgaro naturalizado italiano Nicola Diulgheroff; e no frontispício, uma ilustração de Jean Cocteau.

Na página final, quando a narrativa ganha intensidade emotiva incomum para um trabalho de natureza acadêmica como este, a primeira estrofe de um poema em francês de Manuel Bandeira serve de fecho. Abaixo, há um desenho do artista estadunidense William Rowe —um aspecto noturno estilizado de um prédio art-déco que lembra o edifício Altino Arantes, um dos mais conhecidos da capital paulista.

Eis a tradução da estrofe com a qual Sevcenko termina o estudo: "Gatinho branco e cinza/ Fique aqui no quarto/ A noite é tão escura lá fora/ E o silêncio pesa". No parágrafo anterior a esses versos de morbidez inquietante, há a indicação de que eles são de um "tuberculoso insone, isolado no alto de um morro".

O "morro", imagina-se, se refere à residência de Bandeira no Morro do Curvelo, em Santa Teresa, no Rio, ainda que esse poema, "Chambre Vide", esteja no livro "Libertinagem" (1930) como escrito em Petrópolis, no ano de 1925.

O caderno de imagens começa estrategicamente com uma "figura órfica" feita por um artista sob o pseudônimo "Chin" para a revista carioca "Ilustração Brasileira", exemplar de uma tendência em publicações ilustradas da época, segundo o autor.

Na sequência, há um pano de boca de Picasso, fotos e ilustrações da também carioca "Para Todos" (dirigida por Álvaro Moreyra, aliado do grupo da Semana no Rio) e, depois, fotos de Josephine Baker e Man Ray, entre outras expressões alheias a São Paulo e ao Brasil.

Só na segunda metade do caderno encontraremos imagens, aliás muito impressionantes, da cidade que é o objeto principal do livro —mas não da arte modernista ali produzida.

É mesmo um conjunto exótico para um livro que tem "São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes Anos 20" como subtítulo. Mas, se compreendo o espírito do livro, a justaposição é, se não totalmente insuspeita, explicável.

"Orfeu Extático" dedica amplas análises a materiais sem relação direta com São Paulo, nem sempre cuidando de enquadrá-las diretamente no eixo principal da argumentação. Assim o faz porque propõe a tese de que o espetacular ritmo de crescimento da cidade no início do século 20 faz dela um caso único no mundo. Com aproximadamente 65 mil habitantes em 1890, a capital terá 270 mil em 1908, e depois dobrará mais duas vezes nos dois decênios subsequentes.

Menor do que o Rio até por volta de 1960, São Paulo representaria —melhor até do que Paris, Berlim ou Nova York— a experiência de crescimento vertiginoso específica aos anos 1920. Isso porque o processo material de hipertrofia "coincide" aqui com o florescimento da sensibilidade e das práticas de significação das vanguardas baseadas no Atlântico Norte (em cidades que, mesmo no caso de Nova York, não perderam todo senso de continuidade com sua história pregressa).

Assim, mesmo não sendo manifestações do modernismo paulista, expressões paradigmáticas da vanguarda —como a poesia de T. S. Eliot, ou, no Brasil, a de dois moradores da pitoresca rua do Curvelo, como Bandeira e Ribeiro Couto— "casam" perfeitamente com a experiência histórica paulista. Não "pertencem", estritamente falando, a São Paulo, mas são incorporadas por afinidade a um universo simbólico centrado na cidade.

Como vínculo genético (coisa que Sevcenko não propõe diretamente), a operação pode passar por mistificadora, mas não como evidência da adequação de formas de expressão a formas de vida. É como se as antenas dos arranha-céus paulistas, retomando o fecho do livro e a sugestão órfica do título, atraíssem o peso das noites de almas intranquilas pelo mundo afora capazes de se comunicar, no êxtase criativo, com o mundo latente da energia cósmica moderna.

Raciocínio ousado, arriscado mesmo. Mas, caso eficaz, abonador, em alguma medida, do movimento no qual críticos da "ideologia paulista" veem um salto desonesto: a equiparação, nem sempre explícita, que os entusiastas do modernismo paulista costumam estabelecer entre "modernização" (processo que, materialmente falando, de fato tem em São Paulo seu polo brasileiro durante o século 20) e "modernismo" (complexo de manifestações culturais que, supõe-se, responde, de modos vários, a esse processo).

No seu perspicaz prefácio de "Orfeu Extático", Maria Odila da Silva Dias filia a pesquisa do ex-aluno Sevcenko às "Passagens" de Walter Benjamin e a Carl Schorske, o magistral historiador da Viena de Freud, Schoenberg e Klimt. Sevcenko não o cita, mas certamente leu este pesquisador de inclinação bem mais elitista do que ele na seleção de materiais pertinentes à investigação da história da cultura.

Concordo com a tese da influência benjaminiana, mas tenho a impressão de que o estilo de "Orfeu" —exuberante na variedade de temas e insights sugestivos, que se derramam em eloquente dispersão— tem menos a ver com a delicadeza e a ironia hiperrefinadas da narrativa de "Viena fin-de-siècle" (Companhia das Letras, 1988), reminiscente de Flaubert e Schnitzler. O estilo estaria mais relacionado com a verve difícil de transmitir por paráfrase que foi a marca, entre nós, da historiografia de Gilberto Freyre, precoce leitor brasileiro de James Joyce.

No trabalho do historiador pernambucano, como no do paulista, o empenho não está tanto em produzir uma argumentação "redonda", e sim em envolver quem lê numa absorvente atmosfera, que pode terminar, como já se observou sobre Freyre, mesclando a apresentação viva e inteligente das formações simbólicas subjacentes à vida cotidiana com a afirmação do mito como visão de mundo, ideal ético e régua estética.

O historiador Nicolau Sevcenko em prédio da USP, em imagem de 2011 - João Wainer/Folhapress

Também comum aos dois, ainda que diversamente manifesta, é a disposição trágica de suas visões da São Paulo ascendente e do Nordeste açucareiro decadente. Outro escritor de sensibilidade parecida, Sérgio Buarque de Holanda, inspiração direta de Sevcenko e a quem "Orfeu Extático na Metrópole" é dedicado, surge como personagem da narrativa —não como historiador, mas como um jovem crítico literário.

Depois da agitação modernista, Sérgio viria a ser um estudioso especialmente arguto da imaginação mitológica, notadamente em "Visão do Paraíso", livro estranho e luminoso, como esse que se vem discutindo.

Mesmo que estivesse equivocado em todos os seus argumentos (sustentar isso seria certamente um exagero), passados 32 anos de sua primeira publicação, "Orfeu Extático na Metrópole" já não seria apenas uma tese à espera de refutação. Pertence ao acervo das grandes expressões da cultura brasileira.

Orfeu Extático na Metrópole

  • Preço R$ 99,90 (544 págs.)
  • Autoria Nicolau Sevcenko
  • Editora Companhia das Letras
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