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Adania Shibli

Não somos fantoches de europeus privilegiados, diz autora palestina

Em texto inédito, Adania Shibli escreve que Feira de Frankfurt se pautou em lógica excludente para cancelar sua premiação

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Ilustração de Adams Carvalho Folhapress

Adania Shibli

Escritora e ensaísta palestina, é doutora em estudos culturais e de mídia pela Universidade de East London e autora, entre outros livros, de "Detalhe Menor" (Todavia), finalista do International Booker Prize

[RESUMO] Romancista palestina relata, em texto publicado exclusivamente pela Folha no Brasil, como soube do cancelamento da cerimônia de premiação, na última Feira do Livro de Frankfurt, de seu livro mais recente. Para a autora, a organização alemã que concede o prêmio não compreende os obstáculos racistas enfrentados por mulheres do Sul Global e o apoio que recebeu demonstra que a literatura é uma tábua de salvação para um sem-número de leitores ao redor do mundo.

Sentimentos. Não estou conseguindo acessar os meus sentimentos desde o início das mais recentes crueldades cometidas contra as pessoas de Palestina/Israel. Minha alma está paralisada pelo desespero. Ou vazio. As palavras desapareceram, elas me abandonaram.

Não consigo mais falar com ninguém, não tenho atendido o telefone nem saído do meu apartamento, a não ser para fazer coisas relacionadas a cuidar do meu filho e ao trabalho. Não consigo ler notícias ou artigos de opinião até o fim. Começo a ler, talvez por alguns segundos, depois meus olhos se desviam. Paro por alguns dias, imaginando como as pessoas conseguem encontrar palavras e ser articuladas enquanto eu não tenho nenhuma.

Ilustração de Adams Carvalho - Folhapress

Sinto-me limitada, inferior a qualquer outra pessoa que fale, escreva, que consiga dizer e expressar palavras com tanta nitidez e articulação. Ainda volto e tento ler, alternando entre as notícias em árabe, inglês e hebraico, e, mais uma vez, fico impressionada com o domínio linguístico de todos e com o meu fracasso quando paro de ler.

A única notícia que consegui terminar até o fim foi uma publicada pelo portal israelense Ynet, que data de 4 de outubro de 2023 e relata o caso de uma cobra que tentou engolir um ouriço inteiro. O artigo descreve como o desespero da cobra por comida, para sobreviver, a levou a cometer o erro de comer o ouriço. O ouriço, no entanto, força seus espinhos para fora na tentativa de revidar e tenta escapar, mas, por causa disso, fica preso na boca da cobra. A cobra morre, e o ouriço morre.

Começo a me questionar se essa é uma profecia animal, um aviso para nós, humanos. Então, me pergunto quais papéis a cobra e o ouriço estavam desempenhando? Dos israelenses e dos palestinos? Dos privilegiados e dos desprivilegiados? Das nossas realidades e das nossas esperanças? Da vida e da morte? Da linguagem e de mim? Carrego, sem parar, a cobra morta e o ouriço morto com meu próprio desespero e vazio.

Então, de repente, fui informada sobre um artigo no jornal alemão taz que expressava consternação por meu último romance, "Detalhe Menor" (Todavia), receber o prêmio Litprom em uma cerimônia na Feira do Livro de Frankfurt. Para mim, o artigo pareceu uma tentativa cínica de desviar a atenção da dor real, a dor dos outros, que não podemos experimentar nós próprios ou ao menos acessar. Além disso, eu não sentia muita coisa, o vazio era mais forte, mais cruel e continuava a me subjugar.

Alguns dias depois, fui informada sobre a decisão de cancelamento da cerimônia e dos eventos de que participaria, tudo apresentado a mim em um email bem curto. Isso ainda não despertaria muitos sentimentos. Só consigo pensar em como, com base em inverdades, é possível transformar as coisas, atingi-las na realidade, com tanta rapidez e facilidade; inverdades ou fatos inventados, criados por membros da imprensa e de instituições culturais na Alemanha.

Como alguém que encontra uma tábua de salvação deixando o real para vagar no imaginário, não é uma prática que eu condenaria, ou seja, confiar em "inverdades". Só gostaria que isso fosse reconhecido como ficção e não divulgado como verdade e fato.

Algumas dessas inverdades são expressas por um jornalista do taz, que afirma que o meu romance propaga a violência contra os israelenses e que sou "uma ativista comprometida com o BDS" (Boicote, Desinvestimento e Sanções ao Estado de Israel); depois, pela Litprom, que declara que a decisão de cancelar o evento foi tomada em conjunto comigo. As "inverdades" ou ficções da literatura nunca conseguem ter tais efeitos no mundo real, talvez para o melhor.

A relevância da literatura não é provocar mudanças, mas intimidade, reflexão, trazer os outros de volta a nós mesmos; talvez um campo para considerar como nos relacionamos conosco e com os outros, da vida à dor; para nos guiar na direção de como viver melhor. Ou, citando meu amigo escritor Rafael Cardoso, que certa vez citou um pintor brasileiro: "Para tornar o desconhecido melhor".

O mesmo crítico do taz, se é que podemos nos referir a ele como "crítico literário", também expressou algo que pode ser considerado parcialmente sofisticado e me fez pensar mais a respeito. Ele afirma que alguns dos personagens do romance, por serem estupradores e assassinos israelenses, não têm nome nem rosto.

Isso é parcialmente sofisticado porque ele usa essa observação para repisar seus pontos de vista ideológicos, negligenciando os demais personagens, que também são, incluindo todos os palestinos, personagens sem rosto e sem nome. Ele provavelmente não faz essa observação sobre os personagens palestinos porque sempre os vê e os considera dessa forma, sem rosto e sem nome.

E foi exatamente isso que permitiu uma nova compreensão para mim, que escrevo, do motivo pelo qual esses personagens sem nome e sem rosto sempre aparecem na maioria dos meus textos, não apenas no meu último romance. Eu me dei conta de que a sensibilidade literária com a qual tenho intimidade é concebida por essa falta de rosto e de nome com a qual me deparei durante toda a minha vida em Palestina/Israel e em outros lugares em relação aos árabes em geral, não apenas aos palestinos, juntamente com outros subalternos, na forma como são representados pelos dominantes na realidade.

De repente, entendi por que eu só conseguia sentir proximidade com personagens sem rosto e sem nome durante todos esses anos em que venho escrevendo. É uma ausência fascinante: que lugar os sem-nome, os "ninguéns" podem encontrar na literatura e que tipo de forma literária eles podem inspirar.

Adania Shibli durante o International Festival 2019, em Manchester, no Reino Unido - Chris Payn - 11.jul.19/Northern Soul

Acho que outro crítico alemão estava se perguntando sobre o final do meu romance e sobre qual perspectiva ele estava tomando, se era, portanto, o final. Essa é uma pergunta vital, que também nos leva a um tipo diferente de personagens sem nome e sem rosto: os fantasmas. Será que todos esses personagens sem nome e sem rosto podem ser qualquer coisa além de fantasmas literários?

No entanto, posso garantir ao jornalista do taz uma coisa: se um dia ele inspirar um personagem em um texto meu, ele também será apenas um personagem sem rosto e sem nome.

Nesse meio-tempo, a Litprom continua declarando que está procurando um novo local e um novo horário para realizar a cerimônia. Quando me informaram sobre o cancelamento, respondi que não tinha certeza de que estaria de acordo com esse plano, mas que veríamos mais tarde.

Acho que, se a Litprom ainda quiser conceder o prêmio ao meu romance, talvez o correio possa ser uma boa opção. Eles podem enviá-lo pelo correio, com assinatura de recebimento, e eu posso fazer uma pequena cerimônia com o velho carteiro que normalmente leva até a minha porta qualquer pacote pesado ou correspondência que precise ser assinada. De toda forma, às vezes eu ofereço a ele um bolo se tiver uma fatia à disposição. Eu me sentiria ainda mais tocada por uma cerimônia como essa, uma forma desejada de intimidade, que espelha a da escrita.

Já há muito tempo, venho pensando em não fazer mais eventos públicos desse tipo. Comecei a vivenciar uma exaustão extrema nesses eventos públicos em termos dos níveis enormes de compartilhamento sobre o processo de escrita que, por sua natureza, exige silêncio.

Entretanto, a celebração do livro, ao mesmo tempo que honra a intimidade do processo de escrita, já surgiu quando a notícia sobre o cancelamento da cerimônia de premiação tinha se espalhado. O apoio imenso que continuou chegando de tantos leitores de todo o mundo, de escritores, tradutores, editores e até mesmo agentes literários, de alguma forma me fez também entender que a literatura é uma tábua de salvação para muitos, muitos de nós.

Mais ou menos um dia depois de ser informada sobre o cancelamento, recebi um email de um dos meus editores citando o que a Feira do Livro de Frankfurt havia anunciado simultaneamente como uma declaração pública, ou seja, que eles desejam abrir mais espaço para vozes israelenses e judaicas. Em geral, estou mais que pronta para ceder meu lugar, não apenas, nesse caso, na Feira do Livro de Frankfurt, a qualquer pessoa que precise dele com urgência.

Generosidade; dar um passo atrás para permitir que alguém tenha um lugar, um refúgio é o que eu, provavelmente como muitos outros, aprendi com a literatura. A literatura tem sido uma base ética para mim desde a infância. Em árabe, a palavra para literatura e ética é a mesma, "adab".

A declaração da Feira do Livro de Frankfurt, no entanto, espelha outra coisa. Ela reflete a lógica excludente de visões políticas específicas, sugerindo que "para que isto seja, aquilo não pode ser" ou "este humano é mais digno que aquele". Testemunhamos essa lógica nas ideologias nacionalistas e, em ascensão, no discurso de governos, na Alemanha e em outros lugares.

Na verdade, alguns dias depois de me dar a notícia do cancelamento de todos os meus eventos na feira do livro, e não apenas da cerimônia de premiação, a Litprom me escreveu da mesma maneira indigna dizendo que poderia voltar a realizar um desses eventos, o que provavelmente eles só cogitaram depois da consternação do público, não por preocupação real comigo como escritora.

Tentei reagir de forma diferente da indignidade infligida, explicando que, como não sou fantoche de ninguém e como ninguém deveria ser, não sou fantoche deles; cancelando meus eventos e depois cancelando um dos cancelamentos, como se fôssemos crianças pegando uma margarida e arrancando suas pétalas, se perguntando "eles me amam/não me amam".

Escrevi que talvez a Litprom, em seus muitos anos de trabalho, não tenha compreendido adequadamente as escritoras do Sul Global, a quem está concedendo o prêmio. Elas certamente não são fantoches para serem manipuladas por um presidente europeu privilegiado do Norte Global, e aqui não estou falando de uma pessoa, gênero ou etnia específica, mas de uma mentalidade.

As mulheres escritoras e as mulheres do Sul Global em geral podem ser, se quisermos parafrasear o poeta Aimé Césaire, tigresas que rugem quando está em jogo o que elas tanto prezaram ao longo da vida. Foi assim que elas chegaram onde estão contra todas as probabilidades e dificuldades que enfrentaram e, portanto, não se intimidam com os pequenos obstáculos racistas postos em seu caminho por essa mentalidade e esse tratamento do "Norte Global".

Mas então, em defesa do romance, algumas pessoas apontaram que ele faz referência a uma história real de uma jovem beduína que sofreu assédio sexual e foi baleada por soldados israelenses no deserto de Negev em 1949.

Eu mesma me abstenho de fazer tais referências e conexões entre literatura e realidade. Perguntar se a história é real ou fictícia em um romance é tão relevante quanto perguntar se a mesa ou a cadeira em um romance são reais ou fictícias. Um romance ficcional é um romance ficcional, assim como suas preocupações.

Talvez eu possa apontar aqui as questões literárias que levaram a todos os elementos que vieram a constituir "Detalhe Menor", inclusive a narrativa em seu âmago. Em Palestina/Israel, você cresce percebendo que a linguagem está além de ser uma ferramenta a ser instrumentalizada para contar ou comunicar. Ela pode ser atacada, pode ser quebrada, pode ser abusada. A questão é: como você pode confiar na linguagem quando ela também lhe causa dor, quando ela o abandona e você tem de enfrentar a crueldade sozinha, sem palavras?

Isso me fez procurar as formas narrativas que uma linguagem como essa pode permitir e as infinitas possibilidades que ela pode esconder entre suas camadas e que podem emergir do amor que você tem por ela, do amor que ela ainda pode ter por você. Na realidade, a linguagem geralmente é empurrada para uma forma principal, a narrativa racional compreensível e nítida. Mas, e se você não tiver toda a capacidade de fazer isso, que linguagem surgiria então? Como você faz para escrever com uma linguagem ausente ou com cicatrizes?

Todas essas perguntas me assombraram antes de eu começar a escrever o romance com todos os seus elementos; por um lado, traçando uma forma narrativa da linguagem que podemos aceitar; por outro, uma forma narrativa que menosprezamos porque dificilmente podemos acessar e a que talvez desejemos não ter acesso.

Se quisermos usar a linguagem das investigações forenses, posso dizer que "Detalhe Menor" tem explorado, em uma parte, uma forma literária enquanto segue os passos de uma linguagem a que podemos ter acesso e, na outra parte, enquanto segue os passos de uma linguagem a que nunca poderemos ter acesso.

Agora, depois de terminar de escrevê-lo, posso entender melhor essas questões que me levaram à forma literária e ao conteúdo desse romance, incluindo a estrutura e o estilo da narrativa, todos eles moldados por experiências linguísticas específicas.

Em resumo, fazer qualquer conexão com eventos reais não é a força por trás da minha escrita literária em geral e, especificamente, não em "Detalhe Menor".

O que a linguagem pode acessar hoje em dia, fico me questionando com medo. Medo.

Desde criança, eu desprezava o medo, ao mesmo tempo que testemunhava como as pessoas ao meu redor agiam de acordo com ele. Por isso, comecei a me disciplinar contra o medo. Na época, também me perguntei: qual é o meu maior medo? Concluí que era um lugar na casa da nossa família onde minha imaginação infantil dizia que um monstro vivia quando estava escuro.

Para me disciplinar, implorei a meus pais que me deixassem sozinha em casa uma noite. Eles eram loucos o suficiente para ouvir ou, talvez, eu fosse persistente o suficiente para convencê-los. Ao lado desse lugar, havia um interruptor de luz. Apaguei todas as luzes da nossa grande casa e comecei a caminhar até aquele local no escuro, sabendo que, quanto mais me aproximava, mais perto estava do monstro, mas também do interruptor de luz. Lembro-me até hoje do último movimento da minha mão antes de chegar ao interruptor de luz, onde imaginei que o monstro a quebraria. Mas o monstro não o fez: foi gentil o suficiente para permitir que eu acendesse a luz e que ele desaparecesse.

Isso continua sendo um lembrete de como superar meus medos, inclusive o medo de escrever, o medo da linguagem. Duas coisas, porém, permanecem imunes a esse método. Dois medos, um relacionado ao mundo e outro à escrita.

Tenho medo de que nunca cheguemos ao ponto de olhar ao redor e dizer que hoje é melhor que ontem. O segundo medo é perder a linguagem; que eu acorde um dia e não tenha nenhuma linguagem. Nos últimos meses, tenho me lembrado desse medo.

Esses dois medos também estão me assombrando com a morte de alguns escritores que me deram acesso à vida. Mohanned Younis, Gilles Deleuze, Ghérasim Luca, Primo Levi, Sylvia Plath. Todos eles cometeram suicídio. De alguma forma, sinto que seus atos confirmam que os meus dois medos não são resultado da minha própria imaginação, mas apontam para os limites da realidade; os limites da linguagem.

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