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Dirce Waltrick do Amarante

'Pobres Criaturas' é muito mais convencional do que parece

Filme indicado a 11 Oscars acumula clichês que esvaziam discurso feminista e sexual

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Um dos destaques do Oscar deste ano, "Pobres Criaturas", dirigido por Yorgos Lanthimos e protagonizado por Emma Stone, vem sendo elogiado por sua suposta ousadia ao retratar a libertação feminista e sexual de sua protagonista. No entanto, destaca autora, essa temática complexa é retratada de maneira rasa, lançando mão mecanicamente de uma série de clichês e de cenas de nudez tediosas que minam o efeito corrosivo que o filme pretende ter.

Baseado no livro homônimo do escritor escocês Alasdair Gray, publicado em 1992, "Pobres Criaturas" (2023), filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, tem se destacado nas discussões sobre os indicados ao Oscar deste ano.

Com roteiro assinado pelo australiano Tony McNamara, e protagonistas americanos como Emma Stone, Willem Dafoe e Mark Ruffalo, o filme acolhe uma miscelânia de nacionalidades, mas o resultado está dentro do padrão da indústria do cinema hollywoodiano —ou seja, bem executado, porém sem grandes surpresas.

Emma Stone em cena do filme 'Pobres Criaturas'
Emma Stone em cena do filme 'Pobres Criaturas' - Reprodução

Quem conhece "Dente Canino" (2009) e "O Lagosta" (2015), dois filmes de Lanthimos nos quais ele atuou também como roteirista, pode ficar um pouco (ou muito) decepcionado com "Pobres Criaturas".

O fato é que o roteiro de McNamara é simples. Ele segue a conhecida jornada do herói, no caso, da heroína (Emma Stone), uma espécie de Frankenstein que deu certo, em parte porque não foi abandonada por seu criador, que ela chama de Deus. Esse Deus, no entanto, não cria a sua Eva da costela do Adão, mas do cérebro de outra mulher, um bebê que ela esperava e que a teria levado ao suicídio.

Esse novo cérebro, sem memória, sem conceitos nem preconceitos, passa a ser reprogramado por ela quando volta à vida. Ao longo dessa reprogramação, uma famosa frase de Simone de Beauvoir poderia ser invocada: "Não se nasce mulher, torna-se mulher". E ela se torna uma mulher além de seu tempo: livre, contestadora, culta e aberta a experiências até então permitidas somente ao sexo oposto.

Há quem tenha se apegado a essa imagem de mulher para considerar o filme incontestavelmente feminista. Mas há detalhes que poderiam ser discutidos: além de seu criador ser um homem, a heroína tem uma vida confortável e está ciente de que tem um porto seguro, onde há homens que a aguardam e zelam por ela. Por isso, talvez, ela possa se dar ao luxo de se aventurar.

No filme, a sua beleza é sempre destacada, não por acaso seu nome é Bella. Caberia citar aqui a feminista estadunidense bell hooks, que, ao falar da imagem da mulher em meados do século 20, parece estar descrevendo também a protagonista de "Pobres Criaturas": "Em filmes, na televisão e em anúncios públicos, imagens de mulheres magrelas, de cabelos pintados de loiro e com aparência de quem mataria por uma bela refeição tornou-se a norma".

Isso não significa não reconhecer o valor da beleza, pois "é preciso amar nosso corpo e a nós mesmas", e, como segue afirmando hooks, "a rígida rejeição feminista dos desejos de beleza enfraqueceu as políticas feministas".

Mas a beleza a que hooks se refere é aquela que acolhe diferentes corpos e cores, e não aquela da estética sexista, criada por homens (brancos) e que parece ser a "norma" no cinema, principalmente em filmes mais comerciais.

O fato é que a comédia corrosiva de Lanthimos é muito mais convencional do que se pensa. Quando aborda temas atuais e complexos, o faz com menos poder crítico e satírico do que o desejável, acumulando mecanicamente clichês psicológicos e culturais que se tornam estéticos e esvaziam, em consequência, a potência de cenas e de discussões que deveriam ser instigantes.

Uma sequência cênica que poderia render uma boa discussão é a que se passa em um bordel, onde Bella tem relações sexuais com vários homens. As cenas são neutras: nem pornográficas, nem eróticas, nem chocantes. Por se estenderem demais e serem, de certa forma, previsíveis, podem provocar um certo tédio, talvez o mesmo sentido pela personagem ao longo dessa aventura parisiense.

A "pornografia" do filme, contudo, estaria no fato de mostrar demais, expor demais, um "didatismo inconcebível" se considerarmos o tipo de comédia que ele pretende ser.

Assim, o filme seria pornográfico no sentido dado pelo ensaísta, dramaturgo e escritor alemão Botho Strauss. Ao falar da atuação teatral, e por extensão da cinematográfica, ele afirmou: "Hoje, contudo, dominam os pornográficos no teatro —estética e literalmente. Interesso-me pelas associações e situações eróticas, mas hoje não se associa e se situa, mostra-se apenas o lado pornográfico das coisas".

A essa afirmação de Strauss, o pensador coreano Byung-Chul Han poderia acrescentar: "O erótico se diferencia do pornográfico pelo seu caráter indireto e sinuoso. Ama as distâncias cênicas. Contenta-se com alusões, ao invés de expor diretamente as coisas". E prossegue: "Direto é o modo do pornográfico. Demora, desaceleração e desvios são modalidades temporais do erótico".

Talvez "Pobres Criaturas" seja direto demais, explícito demais, não deixando que os "signos circulem sem se revelarem" tão explicitamente.

Desse modo, a comédia acaba reservando pouquíssimo espaço para a imaginação do espectador, que absorve passivamente um enredo cada vez mais raso à medida que Bella madurece ao vivenciar experiências pouco excitantes ou interessantes em todos os sentidos.

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