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Clara Drummond

'Pobres Criaturas' expõe puritanismo de novas gerações

Cenas de sexo mais ousadas migraram do cinema para o streaming, refletindo fenômenos culturais e econômicos

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Clara Drummond

Jornalista e escritora, autora de "Os Coadjuvantes" (Companhia das Letras)

[RESUMO] O texto analisa a representação do sexo no cinema, com foco nas críticas às cenas de "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos. A autora discute a crescente infantilização do cinema comercial, dominado por corpos perfeitamente esculpidos, mas sem resquícios de desejo. O fenômeno, argumenta, está relacionado à estratégia de lucro dos longas-metragens, baseada em uma audiência suscetível.

Em 2013, Bernardo Bertolucci conversava com uma plateia de cinéfilos em um evento da Cinemateca Francesa. O clima era tão descontraído e amigável que o diretor se sentiu à vontade para revelar que a famosa cena de sexo anal lubrificado com manteiga em "O Último Tango em Paris" (1972) não havia sido feita com o consentimento da atriz Maria Schneider.

Emma Stone e Mark Ruffalo em cena do filme 'Pobres Criaturas' de Yorgos Lanthimos
Emma Stone e Mark Ruffalo em cena do filme 'Pobres Criaturas', de Yorgos Lanthimos - Divulgação

A ideia havia ocorrido a ele e ao ator Marlon Brando na manhã da filmagem, e a jovem de apenas 19 anos foi intencionalmente mantida no escuro. "Ela não sabia de nada porque eu queria capturar sua raiva e humilhação como mulher, e não como atriz. Queria que fosse real".

Bertolucci despejou essa bomba como quem conta uma curiosidade qualquer, mostrando o quão pouco ele próprio e a indústria na qual fez carreira haviam evoluído naqueles 40 anos. De 2017 para cá, no entanto, as mudanças aceleraram consideravelmente seu passo. Desde a eclosão do movimento #MeToo, muita coisa mudou nos set de filmagem.

Hoje, é praxe que um "coordenador de intimidade" esteja presente durante as cenas de sexo para que os atores se sintam confortáveis. Nunca houve tanta segurança e cautela em relação a cenas dessa natureza. Ainda assim, vivemos um período especialmente pudico em Hollywood.

Segundo as estatísticas do IMDb, a última vez que se viu tão pouco sexo nas telas de cinema foi nos anos 1960 —ou seja, quando ainda estava em vigor o Código Hays (um conjunto de normas morais aplicadas pelos estúdios cinematográficos entre 1934 e 1968).

É nesse contexto que estreou "Pobres Criaturas", filme dirigido por Yorgos Lanthimos que concorre a onze prêmios no Oscar. O projeto demorou mais de dez anos para sair do papel por conta do forte teor sexual presente na história. "Eu conversei com vários produtores, mas todos acharam que a liberdade sexual da personagem era um pouco excessiva", conta Lanthimos.

E, mesmo depois da estreia, o filme continuou sendo alvo de críticas por sua representação bastante gráfica do sexo. Inclusive, foi necessário que a atriz, Emma Stone, defendesse extensivamente o uso da sexualidade na narrativa.

No entanto, aqui não há a discrepância de poder que existia entre Berlolucci e Schneider. Emma Stone, além de ser uma das produtoras do filme, também tem substancialmente mais influência que o diretor —ele é um diretor indie, ela é uma das atrizes mais famosas e bem pagas de Hollywood.

"Eu fico incomodada quando dizem: a cena de sexo foi escrita e dirigida por um homem. Esse tipo de argumento tira a minha agência como produtora. O sexo é apenas um dos aspectos que leva ao crescimento existencial da personagem, junto com a comida, dança, viagem e filosofia".

Bella Baxter, protagonista da obra, é uma versão freudiana do monstro de Frankenstein: uma mulher de cerca de trinta anos criada em laboratório que tem o cérebro de uma criança pequena. Portanto, experimenta as pulsões sexuais infantis sem a autocensura dos adultos.

Ao longo dessa jornada, Bella aprende sobre o mundo e sobre o patriarcado. Por isso, quando começa a trabalhar como prostituta, encara como uma simples transação, sem o tabu que a profissão carrega. E aí entende que a vida sexual não é só êxtase, mas também tédio, constrangimento e desconforto.

Em dado momento, percebe que uma conexão emocional pode tornar o sexo com estranhos mais tolerável, e faz o seguinte pedido a um cliente: "Eu vou te contar uma piada e você me conta uma memória infantil".

Embora Yorgos Lanthimos seja um homem heterossexual, as diversas cenas de sexo não se enquadrariam no que teórica Laura Mulvey denominou de "male gaze", que é o olhar desejante masculino que objetifica o corpo na mulher através da câmera.

A nudez e o sexo explícito estão lá, mas o foco é sobretudo na expressão facial, a fim de investigar os efeitos daquelas experiências sexuais têm na subjetividade da personagem. O olhar clínico torna o filme estranho e engraçado, e não sexy.

"Os mais jovens acham cenas de sexo chocantes. Não faz sentido: por um lado, existe uma explosão no consumo de pornografia, por outro, um movimento em direção ao puritanismo na comunicação de massa", comenta Mark Ruffalo, que interpreta o par romântico de Emma Stone.

Segundo uma pesquisa da UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles), 47.5% das pessoas entre 13 e 24 anos acreditam que as cenas de sexo são desnecessárias no cinema e na televisão.

No entanto, são aspectos econômicos, não culturais, que apontam para um diagnóstico mais certeiro do fenômeno. Nos últimos anos, as cenas de sexo mais audaciosas migraram para a televisão, em séries como "Game of Thrones" (2011-2019), "Girls" (2012-2017), "Euphoria" (2019) e "I May Destroy You" (2020), todas da HBO.

É paradoxal que a ascensão dos serviços de streaming seja em parte responsável pela crescente infantilização do cinema comercial, dominado pelos corpos perfeitamente esculpidos, mas sem nenhum resquício de desejo, dos super-heróis da Marvel e D.C.

A pandemia só acelerou um processo que já estava em andamento: o fim do costume de sair de casa para assistir a um filme nas salas de cinema. Em 1987, o filme com maior bilheteria mundial foi "Atração Fatal", precursor de uma leva muito bem-sucedida de thriller eróticos, como "Instinto Selvagem" (1992) e "Proposta Indecente" (1993), além de abrir espaço para obras autorais, mas lucrativas, como "Sexo, Mentiras e Videotape" (1989). Nessa época, os estúdios cinematográficos podiam se dar ao luxo de investir em histórias intimistas, estranhas e ousadas. Na pior das hipóteses, caso a bilheteria não fosse suficiente, era possível compensar com a venda de DVD e VHS.

O streaming dificultou ainda mais a possibilidade de uma história encontrar seu público —e fonte de renda— meses depois de sair de cartaz. Hoje, para um longa-metragem ser minimamente lucrativo, precisa de uma audiência ampla que possa abranger não só crianças como também o mercado internacional, incluindo países com restrições morais rígidas, como China e Oriente Médio —a comunidade LGBT, que lutou tanto para ter sua vida sexual representada nas telas, pode ser a maior vítima desse retrocesso.

Não é surpresa que Hollywood prefira investir em filme de boneco —afinal, nem genitália eles têm.

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