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Thiago Brito

Projeto para preço de livros não é tunga, como diz Gaspari

Mecanismo que limita descontos é incentivo ao crescimento e à diversidade do mercado livreiro

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Thiago Brito

Doutor em direito pela USP e sócio de Sampaio Ferraz Advogados

[RESUMO] A criação da política de preço fixo de livros, discutida no Congresso desde 2015 e apoiada por entidades do setor, é fundamental para preservar um mercado diverso e pulverizado, defende autor, em um período em que a Amazon, por seu poder de mercado, inviabiliza o modelo de negócio de livrarias tradicionais.

No último Dia Mundial do Livro, comemorado em 23 de abril, uma pauta antiga do universo livreiro foi atacada.

Trata-se do projeto de lei que tramita desde 2015 no Congresso Nacional, por proposição da então senadora Fátima Bezerra (PT-RN), que objetiva instituir uma Política Nacional do Livro e introduzir no Brasil um incentivo regulatório existente em outros países, o "fixed book price" (FBP), que determina que os livros sejam vendidos pelo preço fixado pelas editoras por um determinado prazo.

Prateleira da livraria Cabeceira, em São Paulo - Adriano Vizoni - 10.mai.22/Folhapress

Em coluna publicada na Folha e no Globo, Elio Gaspari definiu o PL como um mero tabelamento de preços para proibir descontos na venda de livros, uma "tunga dos livreiros". O autor sustentou que livros não são diferentes de sabonetes, caminhões ou sanduíches e, como mercadorias que são, devem se sujeitar ao "processo de destruição criadora do capitalismo".

No artigo, aparece, em contraponto aos livreiros, o elogio ao "novo", como "um jovem chamado Jeff Bezos" —que saiu do mercado financeiro, percebeu falhas no mercado livreiro, começou em um "galpão em Seattle" e criou a Amazon, hoje a "maior livraria do mundo", com estimada "metade do mercado de livros no Brasil"— que teria revolucionado o mercado ao entregar rapidamente e dar descontos.

O projeto, também conhecido como PL Cortez, tem apoio de todas as entidades que representam a indústria do livro no país. Na realidade, se insere em um contexto internacional: desde o início do século 19, livreiros e os Estados vêm buscando estimular e preservar a existência de um mercado livreiro pulverizado, diverso e competitivo e pautado pelas especificidades do seu funcionamento, diante das ameaças abusivas e predatórias adotadas por agentes com poderio econômico incomparável ao de livrarias.

Em 1962, quando a política de FBP foi submetida ao escrutínio das autoridades antitruste do Reino Unido, surgiu a expressão "livros são diferentes", que ficou famosa e expressa bem duas ideias: de um lado, a noção dos livros como suportes culturais, portadores de ideias, expressões e conhecimentos de um povo, merecedores, assim, até mesmo de proteção ou de incentivo constitucional, como é o caso da imunidade tributária; de outro, a ideia de que, também do ponto de vista econômico, livros são bens singulares, em certa medida insubstituíveis, circulando com dinâmica própria.

Livros remetem ao infinito ou, ao menos, existem em dimensões muito maiores que uma vida inteira de leitura possa abarcar, embora Borges, em "A Biblioteca de Babel", tenha brincado com a ideia de uma biblioteca completa, com todos os livros já publicados e a publicar. Na verdade, cada biblioteca e cada livraria são extremamente diversas em relação às outras.

Porém, dada a assimetria de grandes varejistas online em relação aos livreiros, estratégias de preços com descontos muito agressivos se revelaram impossíveis de serem acompanhadas, tornando o modelo de negócio tradicional das livrarias insustentável, o que, por vezes, as obrigou a fechar as portas. Dados da ANL (Associação Nacional de Livrarias) demonstram que, de 2011 a 2023, o Brasil perdeu mais de 500 livrarias. Nesse ano, o país tinha 2.972 livrarias ativas, mas, dos 27 estados brasileiros, apenas seis possuíam mais de cem livrarias.

Em artigo publicado em 2017 ("Regimes de preço fixo do livro: para além da clivagem entre regulação social e econômica"), o ex-superintendente do Cade e professor da Uerj Carlos Ragazzo e o pesquisador João Lima argumentam que a introdução de uma política de preço fixo no Brasil pode criar incentivos para a entrada de novas livrarias no mercado e a melhoria da experiência dos consumidores, estimulando a leitura e libertando o mercado da escravidão dos best-sellers.

Entre os benefícios esperados, os pesquisadores também enunciaram o estímulo à bibliodiversidade, o aumento da capilaridade geográfica das livrarias e compensações adequadas aos autores.

É inevitável retornar a Amazon, heroína do artigo de Elio Gaspari, considerando o agravamento atual do mercado livreiro.

Nos EUA, berço da corporação, as entidades Open Markets, Authors Guild e American Booksellers Association enviaram carta a Lina Khan, presidente do FTC (Comissão Federal do Comércio, órgão antitruste e de proteção dos consumidores), e Jonathan Kanter, procurador da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça. As organizações expuseram preocupações e queixas graves a respeito da atuação da Amazon e de seus impactos no mercado livreiro, que contribui para a garantia da liberdade de expressão, de identidades, de informação e de pensamento e é fundamental para a manutenção da própria democracia.

O FTC ingressou com uma denúncia judicial contra a Amazon em razão desse monopólio, que se vale de estratégias anticompetitivas. Entre os prejudicados apontados na ação, estão os compradores —que podem experimentar perda da qualidade dos produtos e serviços quando se passa a incluir nas buscas, por exemplo, anúncios publicitários enviesados— e os vendedores —forçados a remunerar crescentemente a plataforma por meio dos próprios anúncios publicitários, do aumento de taxas e da remuneração associada à utilização dos serviços de logística para clientes Prime.

A aprovação do PL Cortez é, portanto, urgente, bem como a avaliação de novas medidas para desenvolver o mercado livreiro nacional. "A maior livraria do mundo" sustentou recentemente, em manifestação perante o Ministério da Fazenda em uma tomada de subsídios, ter como missão "ser a empresa mais centrada no cliente do mundo". Em nenhum trecho desse documento, contudo, aparecem as palavras livros ou livraria.

A Amazon afirma candidamente que tem menos de 1% do mercado varejista do Brasil e defende que não há necessidade de qualquer nova regulação assimétrica de big techs, como a própria empresa. Ao mesmo tempo, a corporação fundada por Bezos revelou a gigantesca infraestrutura que a torna imbatível em variados segmentos, com rede logística incomparável a de qualquer livraria.

A própria Amazon, porém, não se apresenta como livraria —pelo menos não mais hoje em dia. De fato, seria uma ingenuidade considerar seus propósitos atrelados com qualquer valor cultural ou de cunho social que caracterizam setores econômicos inteiros que dependem dela. Para a gigante global, livros, sabonetes, caminhões e sanduíches de fato parecem iguais.

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