Novos ditadores evitam violência para fingir que são democráticos, aponta livro

'Democracia Fake' discute como governantes abandonam tática do medo por manipulação mais sutil

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Ana Luiza Albuquerque
Ana Luiza Albuquerque

Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários

[RESUMO] Livro "Democracia Fake", publicado recentemente no Brasil, alerta para nova estratégia de ditadores contemporâneos. Buscando forjar um verniz democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais, esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas.

Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali.

Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados.

Demonstrações ostensivas de força, como as da ditadura militar brasileira, são evitadas por ditadores contemporâneos - Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe.

Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro "Democracia Fake" (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.

A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade.

O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de "ditadores do spin" —não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantêm uma fachada democrática.

Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. "Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões", afirma. "Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores."

O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade. "Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião", escrevem os autores.

O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.

O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria.

Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.

"A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas", diz Guriev. "Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares."

A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de "coquetel da modernização", uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.

"Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior", afirma Guriev. "Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata."

Apoiadores de Vladimir Putin comemoram na Praça Vermelha, em Moscou, os resultados das eleições parlamentares de 2007 - Vasily Fedosenko - 3.dez.2007/Reuters

Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido.

Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo.

A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos.

Treisman diz que, se Trump for eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. "Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]", afirma. "A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele."

Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de "bem-informados", subconjunto da população com "educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais", que documentam e denunciam os abusos do governante.

"Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia", diz Treisman. "Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro."

Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolás Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev.

Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo.

"Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência", afirma Guriev. "Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado."

Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris. Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia.

Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.

Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo.

Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles. Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas. Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias.

Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.

Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. "A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica", diz Guriev.

Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o "coquetel de modernização" que empurra as nações em direção à democracia.

Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.

Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria.

Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação.

Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.

Democracia Fake

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