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Após Dieselgate, Volkswagen testa marcas concorrentes para encontrar trapaça

Engenheiros da marca alemã queriam encontrar provas para distribuir culpa e tentar aliviar penas

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Patrick McGee
Frankfurt | Financial Times

Quando a Volkswagen foi apanhada trapaceando nos testes de emissão de poluentes por seus motores diesel, em 2015, uma das primeiras medidas tomadas por seus engenheiros foi iniciar um projeto secreto: obter carros de fabricantes rivais e conduzir testes quanto às suas emissões de poluentes. O objetivo era encontrar provas de trapaça generalizada por todo o setor, para que a culpa fosse distribuída de maneira mais ampla e as penalidades fossem diluídas, dizem duas pessoas da empresa.

Em outras palavras, seria útil que o Escândalo da Volkswagen se tornasse o Escândalo dos Carros.

Veículos da Fiat, Hyundai e outras montadoras foram testados por engenheiros da Volkswagen em busca de emissões nocivas de óxido de nitrogênio, na sede da empresa em Wolfsburg, no final de 2015 e início de 2016.

O dilema dos engenheiros era simples: a Volkswagen havia acabado de admitir que 11 milhões de seus carros foram equipados com software que detectava testes de laboratório e permitia que ingressassem em um modo de operação de baixas emissões quando isso acontecesse. Se os melhores engenheiros da Volkswagen haviam considerado a regulamentação onerosa a ponto de convencê-los a recorrer a uma fraude deliberada, o que os rivais da empresa poderiam ter feito?

Uma terceira pessoa da companhia insiste em que existia uma explicação mais inocente para os testes: engenheiros que não tiveram envolvimento com a trapaça original decidiram usar carros de fabricantes rivais como grupo de controle para testes que os ajudassem a compreender melhor o sofisticado software usado pela própria Volkswagen –que em parte foi fornecido por terceiros e também era usado por marcas rivais. "Não estávamos tentando sujar a imagem dos outros para fazer com que a nossa parece mais limpa", diz esse funcionário.

A Volkswagen se recusou a comentar o episódio, que não havia sido reportado anteriormente.

O que os engenheiros descobriram os chocou. As emissões de óxido de nitrogênio por marcas rivais foram consideradas "um completo desastre". O desempenho nas ruas era "completamente diferente dos dados técnicos", diz um empregado da Volkswagen informado sobre os resultados. O sumário geral das pesquisas para determinar se concorrentes também estavam distorcendo os resultados de testes de emissões foi claro: "Não é só a Volkswagen que está trapaceando".

O que não ficava claro é se os rivais estavam empregando a mesma estratégia da Volkswagen –ou seja, recorrendo a um dispositivo manipulador para iludir as autoridades regulatórias quanto ao desempenho ecológico de seus veículos–, ou se eles simplesmente eram melhores em contornar as regras dos testes, um problema que continua a existir hoje quanto aos carros a gasolina, como revelou a Comissão Europeia no mês passado ao revelar os "truques" mais recentes dos fabricantes de automóveis para explorar as lacunas em novos regulamentos quanto a emissões de poluentes que entrarão em vigor em 2020.

A distinção é confusa mas importante. A Volkswagen sofreu as consequências de cruzar as linhas e trapacear nos testes de emissões de óxido de nitrogênio nos Estados Unidos. Mas os esforços de outras montadoras para solapar legalmente os testes europeus quanto a emissões de óxido de nitrogênio e dióxido de carbono jamais resultaram em penalidades reais.

"Medidas de otimização legal foram conduzidas em larga escala", diz Nick Molden, presidente-executivo da Emission Analytics, que conduz testes de emissões de poluentes com veículos que rodam em ruas e estradas reais. "Isso se tornou parte tão entranhada do processo pelo qual carros são certificados que as montadoras nem entendiam ter feito algo de errado [...] esse é o escândalo na Europa: que essas ações não fossem ilegais". 

Passados quase três anos da explosão do Dieselgate, a Volkswagen continua a ser a única montadora a ter admitido culpa em tribunal dos Estados Unidos por trapacear em testes de emissões de óxido de nitrogênio e por mentir às autoridades regulatórias. A empresa teve de pagar indenizações em valor superior a US$ 25 bilhões (R$ 96,5 bilhões). 

OUTRO ESCÂNDALO

Na Europa, porém, não houve repressão comparável ao que muita gente define como "o outro escândalo de emissões" –nas palavras de um especialista em fiscalização de emissões, o uso de "maneiras legais mas prejudiciais" de exploração das lacunas na regulamentação da União Europeia pelas montadoras, a fim de obter os melhores resultados possíveis em testes de emissões de dióxido de carbono.

Era um segredo aberto no setor, há anos, que as montadoras estavam manipulando os testes de laboratório da União Europeia de inúmeras maneiras: inflar os pneus acima do limite, vedar portas, remover sistemas de som e desligar o ar condicionado eram apenas alguns dos métodos que ajudavam a reduzir as emissões em laboratório mas que era impossível reproduzir nas ruas.

Em 2014, um ano antes de o escândalo da Volkswagen ser exposto pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos, um estudo demonstrou que as montadoras de automóveis vinham exibindo ousadia cada vez maior na otimização dos testes da União Europeia, a fim de reduzir as emissões de dióxido de carbono registradas por seus veículos.

Entre 2001 e 2013, a disparidade entre as emissões de dióxido de carbono registradas em laboratório e as registradas nas ruas quase quadruplicou, de 8% para 31%, de acordo com o ICCT (Conselho Internacional de Transporte Limpo, em português). Em 2016, a diferença entre os resultados dos testes e as emissões reais chegou aos 42%.

Mesmo com as montadoras sob escrutínio e as autoridades regulatórias europeias pressionadas a aplicar as regras, a diferença entre a realidade e os testes vem se alargando - até atingir os 42% em 2016.
Dadas as recentes acusações da Comissão Europeia, no entanto, seria errôneo concluir que as montadoras estão aprontando de novo. Na verdade, elas jamais pararam de aprontar.

Quando os engenheiros da Volkswagen completaram seu relatório negativo sobre as práticas dos concorrentes, em 2016, a empresa decidiu não publicá-lo. A montadora havia acabado de adotar uma estratégia de cooperar plenamente com as autoridades dos Estados Unidos, em parte com o objetivo de acelerar um acordo; e não queria causar a impressão de que estava evitando suas responsabilidades. Os resultados dos testes foram fornecidos a institutos independentes, caso estes quisessem verificá-los. E a Volkswagen seguiu adiante.

Passados alguns meses, porém, acusações implicando a Mercedes, Fiat-Chrysler e Opel, entre outras montadoras, começaram a emergir, à medida que os institutos e os fiscais da União Europeia executavam testes abrangentes sobre as emissões de óxido de nitrogênio.

Prédio da montadora Opel na Alemanha
Alemanha investiga montadora Opel por relação com escândalo do diesel - Daniel Roland/AFP

Recalls de veículos para consertar ou modificar o software que controla as emissões se tornaram ocorrência regular, desde então. Mas a Europa não tomou medidas fortes de penalização –e com isso reprimir– o uso de truques legais para solapar os testes de dióxido de carbono, o que explica por que os problemas persistem, de acordo com William Todts, diretor executivo da Federação Europeia do Transporte & Meio Ambiente (T&E), uma organização que promove o uso não poluente de energia.

Em contraste, os Estados Unidos, que operam as práticas de fiscalização mais rigorosas, de acordo com o ICCT, tomaram medidas fortes. Nos EUA também existe uma forte discrepância entre os resultados de testes de laboratório e as emissões reais, mas a EPA pondera seus resultados de modo a levá-la em conta; com isso a disparidade é eliminada e as informações sobre consumo de combustível são confiáveis.

"Na Europa, ninguém estava verificando", diz Todts. "Ninguém jamais declarou que agir assim ia longe demais. Essa é a grande diferença. As práticas poderiam ter sido consideradas ilegais se alguém as estivesse julgando, mas ninguém estava julgando".

Que as montadoras de automóveis continuem a contornar as regras da União Europeia, portanto, é resultado de regulamentação ineficiente. Afinal, engenheiros têm a missão de produzir motores que passem em testes, da mesma forma que estudantes concentram seus esforços naquilo que pode cair no exame.

"Os fabricantes sempre responderão a requisitos literais das autoridades regulatórias", disse John German, pesquisador sênior do ICCT. "Se algo não estiver especificado na regulamentação, tirar vantagem do fato não é ético, na verdade - mas tampouco é ilegal".

Nos Estados Unidos, a EPA dita e fiscaliza as regras; na Europa, Bruxelas dita as regras mas a fiscalização cabe às autoridades nacionais. "Ninguém tem o mandato ou a autoridade legal que a EPA tem", diz German.

Os críticos do sistema da União Europeia dizem que a independência das autoridades nacionais e seus incentivos para agir são questionáveis. Por exemplo, a autoridade alemã de transportes, KBA, fica em posição difícil quanto a impor multas de bilhões de euros à indústria automobilística, que emprega 800 mil alemães.

Quando, em abril de 2016, a KBA constatou que os carros da Mercedes, Opel e Volkswagen estavam registrando poluição abaixo da real por desligarem os controles de emissões em temperaturas não encontradas nos procedimentos de teste, a agência ordenou o recall de 630 mil veículos. Mas não impôs multas: simplesmente ordenou que as montadoras parassem de explorar essa lacuna.

"É muito difícil brigar com os caras que criam empregos", diz Óscar Rodriguez Rouco, analista automotivo do Banco Sabadell, de Madri. "Não creio que qualquer montadora de automóveis venha um dia a ter problemas sérios com multas, da parte das autoridades europeias".

Bruxelas chegou a lançar uma ação judicial contra a Itália no ano passado, para todos os efeitos acusando o país de ter permitido que a Fiat Chrysler escapasse aos padrões de emissões e talvez até que a empresa violasse a lei. "O escândalo das emissões demonstrou que a responsabilidade por fazer cumprir a lei e punir aqueles que a violam não pode mais caber apenas aos países membros", disse Elzbieta Bienkowska, comissária da indústria da União Europeia, em maio de 2017, em resposta ao caso da Fiat Chrysler.

Os testes de emissões da União Europeia estão sendo reformados, ainda que gradualmente. Os testes simples de laboratório sob o NEDC (Novo Ciclo de Condução Europeu, em português), desenvolvidos décadas atrás e descritos pela T&E como completamente desacreditados estão sendo substituídos por testes mais longos, projetados para reproduzir melhor as condições encontradas nas ruas e estradas.

UNIÃO EUROPEIA

O novo sistema também confere à Comissão Europeia poderes para verificar carros que já estejam rodando nas ruas, e para penalizar as montadoras em até 30 mil euros por carro que descumpra as regras.

Mas os críticos dizem que Bruxelas não está fazendo o suficiente. "Eles removeram algumas das lacunas, tornaram o ciclo mais agressivo, mas ele continua a ser mais ameno que as condições reais de circulação", disse Molden. "Os compradores de carros ainda constatam que seus veículos emitem 20% mais dióxido de carbono do que os testes apontam".

No mês passado, porém, a divisão de pesquisa da Comissão Europeia anunciou que as montadoras já estão manipulando os novos testes de emissões de dióxido de carbono - antes mesmo que seu uso se torne obrigatório, no mês que vem.

O Centro Conjunto de Pesquisa da União Europeia determinou que carros continuavam a ser configurados a fim de produzir resultados baixos de emissões durante testes sob o padrão NEDC, mas que adotavam uma configuração diferente para realizar emissões mais altas sob o novo regime de testes, o padrão WLTP (Teste Mundial Harmonizado de Veículos Leves).

A lógica é criar uma referência mais alta para as emissões em 2020 - o ano em que o padrão NEDC será substituído pelo WLTP -, porque as metas para 2025 e 2030 se basearão em reduções percentuais ante um padrão de referência.

Para obter emissões menores no teste NEDC, as montadoras podem testar os carros com baterias cheias, habilitar tecnologia que liga e e desliga o motor automaticamente, e realizar mudança manual rápida de marchas. Para elevar as emissões em função do WLTP, elas realizam testes separados usando um veículo com a bateria quase descarregada, desabilitam a função de ligar e desligar o motor e mudam de marcha mais devagar.

Bruxelas reconheceu que criou essa lacuna inadvertidamente ao escrever as regras do WLTP. As autoridades estavam tentando impedir que as montadoras trapaceassem o sistema por meio de limitações artificiais de emissões - mas não pensaram que elas poderiam tentar fazer com que seus carros parecessem mais poluentes do que são.

Depois de ser alertada quanto a essa possibilidade por organizações ambientais, a Comissão Europeia buscou provas e descobriu que algumas montadoras estavam inflando seus resultados de emissões no padrão WLTP por até 13%, e em média por 4,5%. Ao mesmo tempo, elas continuam a "sistematicamente" subestimar suas emissões sob o padrão NEDC em 4%.

As montadoras de automóveis estão essencialmente explorando o fato de que metas absolutas estão sendo substituídas por metas mensuradas em termos percentuais. Sob as regras atuais, as emissões médias de uma linha de carros não poderão exceder 95 gramas de dióxido de carbono por quilômetro, em 2020. Não seria realista esperar que esses mesmos veículos emitam menos de 95 gramas por quilômetro em condições mais rigorosas de teste.

As metas percentuais para o padrão WLTP em 2021 ainda não foram decididas. Organizações ambientais acreditam que elas devam ser 10% mais alta que as 95 gramas, mas as montadoras de automóveis dizem que 20% seria mais apropriado.

As provas obtidas pela Comissão Europeia parecem demonstrar que as montadoras, ao criar argumentos em favor de um número mais alto, testaram seus carros de maneira a oferecer as provas de que necessitavam. Os incentivos certamente são para que ajam assim: a Volkswagen estimou certa vez que cada grama de redução nas emissões de dióxido de carbono por sua frota europeia de veículos custa 100 milhões de euros.

Em resposta a essas acusações, a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis apontou que inflar o volume de emissões em 2020 seria "contraproducente", porque maiores emissões significam impostos mais altos para os compradores de carros. "Um fabricante que declare valores de dióxido de carbono exagerados perderia competitividade e fatia de mercado dramaticamente, e isso não interessa a pessoa alguma", afirmou a organização.

Todts, da T&E, sugere que haja um cartel em operação. "A única maneira de esse truque funcionar é que todas as montadoras estejam juntas nisso", ele diz, acrescentando que Bruxelas já está investigando as montadoras alemãs por formação de cartéis quanto a outros tecnologias, por exemplo o tamanho dos tanques de AdBlue, uma solução usada para neutralizar as emissões de poluentes por carros diesel.

Uma explicação mais simples é que as lacunas são evidentes para os engenheiros automobilísticos, que manipulam o sistema há duas décadas e sabem como operam seus rivais.

"É o dilema do prisioneiro", diz Peter Mock, diretor executivo do ICCT na Europa. "Se você presume que é o único a estar inflando os números do WLTP, sabe que ficará em desvantagem, Mas se você presume que todo mundo percebeu essa lacuna, vai presumir também que todos a explorarão, e você não estará sozinho. Assim, cada montadora individualmente decide agir desse jeito".

Bruxelas diz que está agindo para eliminar a lacuna e possivelmente emendar a lei.

Mock apoia essa ideia, mas aponta que sempre existirão lacunas. Um desafio maior, segundo ele, é que as montadoras mudem de marcha quanto ao cumprimento das normas. "As montadoras de automóveis têm a responsabilidade social de serem mais honestas e de não tentarem explorar qualquer lacuna que encontrem", ele diz.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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